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Frutos da floresta

 


Castanha-do-brasil / Foto: Divulgação

No Amapá florescem boas experiências de convívio com a natureza

HENRIQUE PITA

Quando se fala em Amazônia, logo vem à mente a idéia de gigantismo. Com efeito, essa região privilegiada do Brasil desafia qualquer superlativo. São 5,1 milhões de quilômetros quadrados, cerca de 60% de todo o território brasileiro. Área recoberta pela maior floresta tropical do planeta, que esconde 22% das espécies conhecidas de plantas. Banhada por 20% de toda a água doce do mundo, tem no rio Amazonas, com mais de 3 mil espécies de peixes, seu principal ponto de referência. Em volume de água, ele é o maior do mundo. As reservas minerais conhecidas também apresentam valores estratosféricos, assim como as vegetais.

Infelizmente, o gigantismo das qualificações também se presta para o lado negativo. A região é campeã em áreas devastadas, número de mortes em conflitos fundiários, garimpos clandestinos, extração ilegal de madeira e ritmo acelerado de desmatamento.

Seria muito ingênuo supor que tamanho espaço poderia permanecer intacto, totalmente protegido. As próprias proporções territoriais dificultam o controle. Além disso, os interesses de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e aventureiros de todos os tipos desafiam as tentativas de proteção. O que essa região privilegiada precisa, dizem os especialistas, é de um projeto de desenvolvimento voltado para a exploração racional das riquezas, sem destruir a biodiversidade.

Fácil de falar, bonito de ouvir. Mas, na prática, é fonte de debate tão gigantesco quanto a própria Amazônia. Assunto polêmico que chegou a gerar notícias falsas, alimentadas pela Internet, que colocavam em livros didáticos norte-americanos um mapa do Brasil mutilado, com a Amazônia internacionalizada sob o pretexto de proteção ambiental.

A ocupação da Amazônia sofreu seu maior impulso durante o governo militar. Foi a época da Transamazônica, do "Ame-o ou deixe-o", do famoso Projeto Jari. Foi nas margens do rio Jari, no sul do Amapá, que o milionário norte-americano Daniel Ludwig, incentivado pelo governo brasileiro, resolveu implantar um sonho: instalou um pólo agroindustrial sem similar no planeta, voltado inteiramente para a exportação de celulose e arroz. Calcula-se que US$ 1 bilhão foram enterrados ali, numa empreitada que deu emprego, na época, para 25 mil pessoas. Era a maior fazenda particular do mundo, com 1,6 milhão de hectares. Para produzir o papel, o empresário importou a fábrica pronta do Japão, juntamente com uma termoelétrica, além da gmelina, árvore destinada à produção de celulose. A espécie não resistiu às pragas e acabou substituída pelo eucalipto. O sonho acabou em 1982, quando Ludwig vendeu o conglomerado para um grupo brasileiro.

Amapá

As tentativas frustradas de ocupação em massa, levadas a efeito pelos governos da ditadura, partiram de um enfoque equivocado. A Amazônia era vista a distância, de fora para dentro. Poucos se preocuparam em conhecê-la primeiro e ouvir quem vive nela antes de criar políticas para seu desenvolvimento.

Essa foi a idéia mestra defendida em um encontro realizado de 28 a 30 de novembro de 2001 em Macapá, capital do estado do Amapá. O evento reuniu lideranças regionais e representantes de organizações ligadas à Amazônia. Na pauta, o presente e o futuro dos habitantes da região.

O estado do Amapá, que até 1988 era território da União, tem uma história recente recheada de experiências interessantes. Orgulhosos de suas florestas – com apenas 3% de desmatamento – os amapaenses estão sendo protagonistas de um novo tipo de desenvolvimento, adotado pelo governador João Alberto Capiberibe desde 1997. O modelo prega a utilização racional dos recursos da floresta, de forma sustentada. Isso inclui a extração de madeira, pesca e a colheita da castanha, açaí e seu beneficiamento. "Graças a esse modelo, crescemos 10% em 1999", disse o governador. Um índice superior a qualquer outro apresentado pelo país.

O caminho encontrado foi abandonar a política de grandes projetos e partir para iniciativas menores. A criação de uma reserva florestal de 840 quilômetros quadrados destinada a ecoturismo, exploração da castanha e fabricação de farinha, biscoitos e azeite foi um passo decisivo. Cooperativas permitem que a produção seja comercializada sem atravessadores. A Comaja – Cooperativa Agroextrativista de Laranjal do Jari, por exemplo, tem mais de 200 associados e beneficia 1,5 mil quilos de castanha por dia. Em 1998, foram feitas as primeiras exportações para o mercado francês. Em Montpellier, na França, uma fábrica produz azeite biológico a partir da castanha, produto considerado de primeiríssima qualidade. Colhido na floresta, o fruto não tem a mínima chance de receber banhos de inseticidas.

O azeite já está sendo produzido no Amapá, graças a acordos de transferência de tecnologia. Assim, além de exportar a castanha, os produtores logo poderão comercializar no mercado interno e externo o próprio azeite, com evidente ganho de valor agregado.

O segredo, diz Capiberibe, é respeitar a natureza e distribuir a renda de forma equânime. Opinião compartilhada por seu colega do Acre, o governador Jorge Viana, que afirmou na conferência que seu estado foi o primeiro a certificar madeira. O Acre iniciou também um programa de desenvolvimento sustentado, seguindo o exemplo dos amapaenses.

A exploração racional dos recursos naturais no Amapá tem um nome: PDSA. É a sigla de Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá, instituído por decreto estadual em agosto de 1995, com base nas recomendações aprovadas na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco 92), realizada no Rio de Janeiro.

Com o PDSA, a política do governo deixou de favorecer as grandes serrarias ou fábricas gigantescas, como o Projeto Jari. Diversas unidades de conservação foram criadas, incluindo áreas inteiras de castanheiros. Terras extensas, antes pertencentes à Jari Florestal, foram transferidas para domínio público. Os castanheiros, árvores majestosas que atingem 50 metros de altura, são generosos: chegam a viver centenas de anos, e cada planta pode produzir, por safra, 500 quilos de castanha.

A extração dessa fruta pelas comunidades fixadas junto à floresta, trabalhadores organizados em cooperativas, vem propiciando o sustento de muita gente. Em alguns casos, o beneficiamento da castanha já pode ser feito no próprio local. Pequenos investimentos permitiram a aquisição de secadores, importantes para reduzir a umidade e ampliar o tempo de estocagem. Prensas para a produção de óleo também são utilizadas, graças a convênios com centros de cooperação internacional da França.

No Amapá, megaprojetos são rejeitados por princípio. A preferência é por empreendimentos pequenos, que garantem uma distribuição de renda mais equânime. A extração de madeira, por exemplo, somente é permitida quando há manejo correto. Isso significa o mapeamento das árvores, seleção criteriosa e corte controlado, além de outros cuidados como o transporte adequado das toras, evitando-se que outras espécies sejam derrubadas pelo caminho.

Empreendimentos que agridem o meio ambiente, como vastas plantações de soja, também não têm vez no Amapá. O estado se orgulha, embora sofra críticas por isso, de ter rejeitado um projeto de US$ 150 milhões de madeireiros da Malásia.

Lei estadual

Uma lei estadual, de autoria da deputada Janete Capiberibe, representou um marco na história do desenvolvimento do Amapá. Sob número 388, aprovado no dia 10 de dezembro de 1997, o texto estabelece regras claras sobre o acesso a recursos naturais e disciplina o uso da biodiversidade, garantindo sua proteção e valorizando o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais. O alvo principal é a biopirataria, que prospera onde não há controle. Segundo a autora da lei, é comum verificar, nos maiores laboratórios do mundo, a comercialização de produtos feitos a partir de materiais biológicos e genéticos extraídos da Amazônia. Em outras palavras, os conhecimentos que as comunidades locais e indígenas têm sobre plantas medicinais vêm sendo patenteados em outros países, sem nenhuma participação, em termos de direitos autorais, da população. "Calcula-se que 57% dos 150 remédios mais receitados nos Estados Unidos provêm da flora e da fauna", diz Janete. São plantas, animais ou microorganismos originários da Indonésia, do Brasil e de outros países, que chegam a gerar bilhões de dólares somente nos EUA.

A biopirataria, no entanto, não é novidade. Todos sabem como o café chegou ao Brasil em 1727, quando Francisco de Melo Palheta foi enviado à Guiana Francesa. Diz a história que dom Francisco era dotado de esperteza e certo charme, suficientes para que madame d’Orvilliers, mulher do governador francês, lhe enviasse um buquê de flores que trazia escondidos brotos e sementes de café.

Na Amazônia, no auge da exploração da borracha, falsos pesquisadores distribuíam balas e doces para as crianças, em troca de sementes da seringueira. Levadas para a Malásia, essas sementes foram responsáveis, anos depois, pela crise da borracha no Brasil.

Hoje não faltam igualmente pesquisadores espalhados pela floresta, e o objetivo certamente não é a seringueira. Infiltram-se em comunidades tradicionais e aldeias indígenas, coletam amostras, exemplares e conhecimentos, que remetem a seus países, onde a pesquisa se completa e culmina no registro de patentes.

Apoio francês

Alain Ruellan é engenheiro agrônomo francês, doutor em estudos do solo e suas relações com a atividade humana. Dirigiu diversas instituições e programas de pesquisas, trabalhando sempre com o desenvolvimento sustentável, seja em sua terra, seja em países da África e no Brasil. Consultor internacional e conselheiro do governador do Amapá, Ruellan oferece a receita para a Amazônia: utilizar com sabedoria as riquezas naturais e humanas da região. A madeira, diz ele, não é o único recurso local. Existe um meio biológico riquíssimo, que esconde potencialidades em alimentos, medicamentos, materiais e energia. Há também uma cultura tradicional, detentora de conhecimentos antigos, como os dos índios, populações ribeirinhas e migrantes. O futuro da Amazônia não está na agricultura e pecuária produtivista, afirma o engenheiro francês, nem nas monoculturas agrícolas e florestais. E a região nunca poderá ter uma população exclusivamente urbana. Ao contrário, deve ser ocupada por sociedades "que saibam viver dela, na cidade ou na floresta".

O caminho é a agricultura familiar, sistemas de exploração agroflorestais, extrativismo controlado, pesca, artesanato, microempresas de transformação e turismo. Atividades que o Estado deve apoiar, incentivar e promover, através de parcerias.

Nem tudo são flores, porém, diz Ruellan. As dificuldades são imensas. A mais evidente talvez seja a oposição política. Grandes interesses estão sendo contrariados, com reações previsíveis. Mas a principal, sem dúvida, é a falta de conhecimento. "A Amazônia está sendo destruída antes de ser conhecida", afirma ele. E conclui: "Proteger a floresta não significa afastar as pessoas dela. Ao contrário, sua presença deve ser contínua e devidamente apoiada".