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Jornalista lança um saboroso e divertido dicionário de culinária

JORGE LEÃO TEIXEIRA

Aurélio Buarque de Holanda, no prefácio que escreveu para a primeira edição do léxico que transformaria seu nome em sinônimo de dicionário, lembrava que Littré gastou mais de 30 anos na elaboração do seu famoso Dictionnaire de la Langue Française, dedicando a ele cerca de 14 horas de trabalho diário. A certa altura da intensa labuta, exausto, tendo comido dois vidros de geléia às 4 horas da madrugada, em vez de um como costumeiramente fazia, sobreveio-lhe uma indigestão e o medo de morrer deixando sua obra inconclusa, o que o levou a pedir o auxílio da filha para acelerar o serviço.

Cláudio Fornari não penou como Littré para concluir o seu Dicionário-Almanaque de Comes & Bebes – Acessórios, Bebidas, Comidas, nem se empanturrou com potes de geléia, arriscando-se a uma indigestão – é um gourmet comedido –, mas levou cinco anos para completá-lo, trabalhando ora até o alvorecer, ora do nascer do sol ao cair da tarde, com intervalos para justos desabafos, como aqueles de um diálogo do poema de Raul Bopp, "Cobra Norato", que ele usou como epígrafe na abertura da obra, editada pela Nova Fronteira:

"– Arre que eu estou com sede./ – E eu com fome..."

Ao explicar o porquê da denominação dicionário-almanaque, Fornari recorre aos verbetes de mestre Aurélio, que definiu dicionário como o "conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado", enquanto o almanaque é uma "publicação que, além de um calendário completo, contém matéria científica, literária, informativa e, às vezes, recreativa e humorística".

"Minha preocupação foi justamente fazer um dicionário-almanaque em que o consulente também seja um leitor ocasional, distraindo-se enquanto aprende ou aprendendo enquanto se distrai. Para atingir esse objetivo planejei uma obra que pode ser meio pedante e até meio vulgar, mas não desperdiça as oportunidades de usar o humor e a abonação literária como isca."

Fornari faz questão de frisar que não se trata de um livro de receitas no velho estilo das bíblias culinárias de Tia Evelina e Rosa Maria, best-sellers de copa e cozinha, entre outros, como o livro argentino de uma certa Doña Petroña, que era o oráculo culinário de sua mãe e de muitas donas-de-casa gaúchas. "Como dicionário, é um intérprete de palavras e expressões, não apenas vernaculares, mas também de gírias e termos familiares, regionais e estrangeiros. Como almanaque é um garimpeiro de dados acessórios, contribuições culturais e fatos pitorescos, tornando as consultas mais leves e ricas, de leitura interessante. Enfim, o que norteou o meu trabalho foi a preocupação em facilitar informações para quem recorrer à obra, permitindo que entenda com clareza a linguagem, às vezes esotérica, usada no mundo da gastronomia." Quanto a possíveis falhas, inevitáveis, Fornari apela para Samuel Johnson, citando uma sua observação, ao mesmo tempo objetiva, generosa e crítica: "Os dicionários são como os relógios: o pior deles é melhor do que nenhum, e nem mesmo do melhor se pode esperar que seja totalmente exato".

Mesmo debitando possíveis erros a sua pessoa, ele lembra que a preocupação em suprir o leitor de informações que fugiam a um dicionarista enriqueceu a obra com um "Apêndice", que lista os códigos de antioxidantes, antiumectantes, estabilizantes, espessantes, aromatizantes, flavorizantes, acidulantes e conservantes usados na indústria de alimentos, a fim de que o público tenha condições de ler os rótulos e entender o que está engolindo. O autor também sugere que seja consultada a bibliografia, a qual pode orientar aqueles que estão empenhados em formar uma gastronomoteca.

Cláudio Fornari é jornalista formado pela Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1959, ingressou por concurso na FAO, órgão da ONU voltado para os problemas da alimentação mundial, ficando responsável pelo setor de comunicação na América do Sul, em que militou até se aposentar: "Um emprego privilegiado, pois durante muitos anos trabalhei no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, viajando pelas áreas que eram da nossa jurisdição e também para Roma, sede da FAO, o que me permitia circular pela Europa e pelos Estados Unidos. Também pude aprimorar meu paladar e enriquecer minha biblioteca, durante todo o tempo que estive a serviço da FAO. Além disso, minha mulher, Luciana, é uma cozinheira extraordinária e muito me ajudou para publicar esse livro. Daquelas viagens recolhi dados curiosos como as formas de brindar a saúde em cerca de 30 idiomas e as informações para o verbete denominado gastronopornéia (impróprio para menores), que usa a liberdade de linguagem corrente na gastronomia, que vai desde o ‘pão bundinha’ até o popular ‘cu-de-jegue’, cachaça alagoana servida com limão e sal, no estilo da tequila, passando por pratos típicos brasileiros e estrangeiros de nomes pouco comportados".

Outro verbete aborda as várias versões sobre a origem da palavra cocktail, e conta a historinha de um barman e um matemático americanos que calcularam quantos cocktails poderiam ser feitos com o estoque de bebidas de um bar de primeira categoria, chegando a um total de mais de 17 milhões de receitas, das quais 273 consideraram "ótimas ou aceitáveis". O verbete referente ao currículo do sorvete também é curioso, remontando aos relatos das Mil e Uma Noites, às viagens de Marco Polo e até às legiões de Nero.

O Dicionário-Almanaque tem respostas e informações para atender curiosos e pesquisadores, desde o significado de palavras misteriosas como abadágio, chanfana, dióspiro, trofoterapia e xerofagia, até a procedência dos melhores queijos e vinhos. Ao consultá-lo, ninguém mais vai confundir arak e arek, conhaque e armanhaque, cherry e sherry. Ficará também sabendo quais são os vinhos mais caros do mundo e o queijo mais antigo. Tudo isso temperado por epígrafes, citações e confissões de escritores e personalidades do Brasil e do mundo sobre a arte de consumir comes e bebes, sabendo escolhê-los e apreciá-los. Cada letra é precedida de uma epígrafe particular: na letra B há o dito histórico de Maria Antonieta, que mandou o povaréu comer brioche; na letra I, Joaquim Nabuco lembra que "um fato que nos alegra pode ser causa de uma depressão profunda, assim como uma iguaria que saboreamos pode resultar em cansaço mortal"; na letra L, sabiamente, Mário da Silva Brito lembra que "os louros da glória não prestam como tempero"; e, na letra U, Luis Fernando Verissimo previne que "a uísque dado não se olha o selo".

Verissimo, por sinal, é um entusiasta do Dicionário-Almanaque de Cláudio Fornari, tendo escrito a orelha do livro, em cuja primeira frase lembra que "comer e se comunicar são as duas funções que o homem faz com mais estilo e variedade que os animais". Frisando, mais adiante, que "o excesso de literatura e a gula têm o mesmo efeito, enjoam, o que não nos impede de reincidir nos dois, na primeira oportunidade."

Cláudio Fornari diz que ninguém faz as coisas sozinho. Agradece a Joaquim Campelo Marques, que nele acreditou e trabalhou como seu consultor, aos amigos Alfredo de Belmont Pessôa e Christian Escot, ao filho Ernani Neto, aos chefs e quituteiras que conheceu em sua vida e, mais que qualquer pessoa, a sua mulher, pela paciência e apoio ao que ele chama de "minhas brincadeirinhas para matar o tempo". Uma delas, já concluída, é o divertido Minidicionário do Antiportunhol, que reúne 400 palavras grafadas da mesma maneira em português e espanhol, mas com significado diferente. Amante da equitação, oficial da reserva da arma da cavalaria, prepara com um amigo, coronel Lannes Caminha, um livro de arte sobre a presença do cavalo na equitação, no turfe, na literatura, na pintura, na vida rural e em outros setores.

Tradutor de três livros de Jorge Luis Borges, Cláudio Fornari já teve mais de 5 mil livros em casa. Após se aposentar doou quase todos, conservando e ampliando sua paixão pelos dicionários, que hoje dominam sua biblioteca. O Dicionário-Almanaque de Comes & Bebes, reconhece, foi um mecanismo de compensação para quem passou a vida profissional lidando com a fome do mundo na FAO. E diz que, mesmo quando está diante de um prato saboroso, muitas vezes recorda uma frase que ouviu de Josué de Castro, na Europa: "O mundo chegará a um ponto em que existirão dois grupos: os que não comem e os que não dormem com medo dos que não comem".