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Periferia em movimento

 


Ilustração: Leandro Szyszko

Jovens encontram no hip hop estímulo e espaço para se desenvolver

IMMACULADA LOPEZ

O hip hop cruzou o caminho de Altair Gonçalves no começo dos anos 80. Chegou pelas antenas espetadas nas casas simples da Vila Missionária, na periferia sul da capital paulista, onde morava com sua família numerosa. Foi num programa de televisão que Altair viu pela primeira vez os passos de uma nova dança, que impressionava pelo domínio de corpo. Era o break (em inglês, quebrar), caracterizado por movimentos "quebrados". A dança vinha embalada por uma música de ritmo contundente, chamada rap, nome formado pelas iniciais de rhythm and poetry (ritmo e poesia).

Identificado com a liberdade dessa arte de rua, Altair começou a pesquisar sua origem e deparou-se com um movimento cultural que incluía ainda os traços coloridos do graffiti, desenhados nos muros, e o som dos DJs, ou disc-jóqueis, presente nos bailes e festas.

Em diferentes bairros da capital paulista, outros jovens faziam as mesmas descobertas e logo começaram a se reunir para dançar e ouvir música no Largo de São Bento e na Galeria 24 de Maio, no centro da cidade. Era o início da cultura hip hop no Brasil.

Esse movimento estético-político-cultural nasceu no final dos anos 60 nas ruas pobres de Nova York, produzido por jovens negros e latinos. Não por acaso, foi conquistando outras periferias urbanas pelo mundo afora, garantindo um espaço de expressão livre para os excluídos de outros circuitos de lazer, arte e educação nas cidades. Através do break, do rap e do graffiti – os chamados três elementos do hip hop, aos quais se acrescenta o DJ –, a juventude da periferia conseguiu uma valiosa oportunidade de falar de seu mundo e construir uma identidade.

"Enquanto diziam que éramos delinqüentes, o hip hop nos mostrou que tínhamos a liberdade de criar, falar, pensar e agir", explica Altair, que logo trocou o break pelos versos de rap. No dia-a-dia, continuou a vida como a maioria dos jovens de sua comunidade. Ainda menino, abandonou a escola para lutar pela sobrevivência, trabalhando como jardineiro, servente de pedreiro, eletricista. Em 1988, participou do primeiro disco de rap da história da música brasileira – Hip Hop, Cultura de Rua e descobriu seu caminho. Altair virou Thaíde e, ao lado do DJ Hum, tornou-se um dos mais respeitados rappers do país.

"O hip hop causou em mim uma grande transformação. Se antes não conseguia olhar nos olhos dos outros, falar e ser ouvido, hoje sei quem sou e qual é o meu valor", diz Thaíde, aos 34 anos de idade. E continua: "O hip hop faz a gente prestar atenção no que foi, no que é e no que pode ser. Nos diz que podemos permanecer de pé nessa luta e ir além".

Ao contrário de alguns rappers que usam a música para instigar a violência ou o uso de drogas, os verdadeiros representantes do movimento hip hop buscam denunciar sua dura realidade para gerar consciência e transformação. Foi o que aconteceu com Thaíde e outros sobreviventes da periferia, que viram amigos e vizinhos desistirem, serem presos e até morrerem.

Autor de oito discos e atual apresentador do programa "Yo!", da MTV, Thaíde desenvolveu-se junto com o movimento e continua enfrentando suas mudanças e desafios. "Acho que a cultura hip hop está no seu momento mais preocupante", diz ele.

Identidade ameaçada

Em diferentes cidades do país, o hip hop está presente hoje em shows, eventos, grifes de roupa, sites, revistas, além de despertar o crescente interesse das gravadoras comerciais, das casas noturnas de classe média e até mesmo das redes de televisão. A mesma expansão que expressa uma conquista do movimento, porém, traz ameaças à essência de sua identidade. Essa é a fonte de preocupação de Thaíde, pois o hip hop nasceu da periferia, pela periferia, para a periferia.

"O artista tem obrigação de manter um vínculo com sua origem", opina o rapper. Essa ligação, entretanto, não deve impedi-lo de buscar novos públicos e espaços. "Todos podem sentir o hip hop e fazer parte dele. Claro que preferimos que as pessoas entendam nossa mensagem, mas não podemos evitar que alguns apenas curtam a música."

Por outro lado, continuar ligado à comunidade não significa uma proibição de ascensão social. Segundo Thaíde, o artista não deve esquecer suas origens, mas tem o direito de melhorar de vida. Em diversos bairros, rapazes e garotas do movimento transformam seu talento em negócios inovadores, conquistando uma brecha num mercado de trabalho bastante excludente. Foi assim que nasceu, por exemplo, a gravadora 4P, criada em 1997 pelo rapper Xis e pelo DJ KLG. O nome faz alusão ao slogan do movimento negro "poder para o povo preto".

A 4P começou como gravadora independente, lançando trabalhos dos proprietários e de talentos desconhecidos. Em seguida, tornou-se também produtora, organizando eventos como o Hip Hop DJ, que anualmente reúne mais de 50 DJs na cidade de São Paulo. Para completar, a marca batizou uma grife que inclui os típicos bonés, calças e camisetas usados pelos "manos" e pelas "minas" do hip hop. Os produtos são vendidos na loja da 4P, localizada na histórica Galeria 24 de Maio, que hoje concentra diferentes lojas de discos, roupas e salões de cabeleireiro de estilo black.

"Acredito que o hip hop é um campo de trabalho que ainda pode crescer muito", avalia Xis, como é conhecido Marcelo dos Santos, que acaba de lançar o CD Fortificando a Desobediência, pela gravadora Warner. Ele sonha em desenvolver os empreendimentos da 4P e abrir caminho para outros jovens. "Tudo o que o hip hop conseguiu até hoje foi praticamente sozinho, mas acho que está na hora de conquistarmos novos espaços e parcerias."

Na opinião de Thaíde, também não é possível fechar-se ao mercado e à mídia. "Ela é superexperiente no que faz e, muitas vezes, traiçoeira, mas não se pode fugir. Temos de enfrentá-la e mostrar que estamos preparados para representar nossa comunidade", diz ele. Essa postura não é comum a todos os integrantes do movimento. Alguns grupos de rap, como os famosos Racionais, ainda se negam a participar das programações das grandes emissoras de TV ou lançar discos através de selos comerciais.

A indústria do entretenimento, por sua vez, tem suas intransigências. "Apesar dos avanços, as gravadoras de porte e as emissoras ainda resistem ao hip hop porque terão de ouvir coisas que incomodam e estremecem suas estruturas", diz Thaíde. A quase totalidade dos incontáveis grupos de rap do país continua lançando seus trabalhos por gravadoras independentes, rádios comunitárias e eventos alternativos.

Graffiti não é pichação

O hip hop também se queixa da falta de locais para suas apresentações. Exceção à regra, o Sesc de São Paulo tem oferecido oportunidades diversas, em eventos abertos aos artistas. Foi assim no encontro internacional de rappers realizado nas unidades Belenzinho e Itaquera, no campeonato de DJs, já em sua quinta edição, e em inúmeros outros shows, competições e oficinas.

Na dificuldade para encontrar novos espaços pesam também os estigmas e preconceitos que acompanham os jovens da periferia, sobretudo os negros. Um dos casos em que isso é mais gritante é o do graffiti. Confundida por muito tempo com pichação, essa modalidade ainda enfrenta resistências para se afirmar como arte. Na verdade, pichadores e grafiteiros têm em comum apenas as latinhas de spray e a procura por muros limpos. Enquanto a pichação busca demarcar territórios entre gangues, o graffiti dá vida à criatividade dos jovens.

"Comecei marcando meu nome nas paredes. Era só brigar e pichar", lembra Antônio Duque de Souza Neto, conhecido como Tota. Anos mais tarde, ele fez seu primeiro desenho e encontrou nos traços do graffiti uma nova forma de se desenvolver. "Na escola, a gente ficava meio por baixo, até que descobri que podia aprender algo novo." Esse processo se repete na vida dos adolescentes hoje ensinados por Tota em diferentes espaços culturais da Grande São Paulo.

Ao lado de outros artistas, ele tem lutado pelo reconhecimento artístico de seu trabalho. Em 1997, com alguns colegas, bateu às portas da prefeitura de Santo André, buscando apoio para mostrar sua arte à cidade. Assim nasceu a 1ª Mostra de Graffiti de Santo André, que se repetiu nos últimos três anos e deve ocorrer novamente em 2002, incluindo participações internacionais.

"Identificamos no graffiti uma forma de expressão legítima da juventude", diz Vânia Cristina Ribeiro, responsável pela coordenação do evento na prefeitura de Santo André. A parceria com os jovens tem sido um grande desafio, pois há a preocupação de não se apropriar de uma manifestação que nasceu e se fortaleceu fora dos circuitos formais. "Buscamos criar continuamente uma relação respeitosa, baseada no diálogo", conta Vânia, ressaltando que todos os detalhes da mostra são discutidos e decididos juntamente com uma comissão dos próprios grafiteiros.

A cada ano, são recebidas mais de mil inscrições de todo o país. Os trabalhos selecionados são realizados com o apoio da prefeitura em um espaço público da cidade. "Percebemos o amadurecimento profissional e artístico do grupo, pois além de mostrar seu trabalho eles têm a chance de trocar informações e aprofundar suas reflexões com representantes de diferentes partes do país", diz Vânia.

A exemplo de Santo André, outras prefeituras têm buscado alianças com o movimento hip hop. A Coordenadoria da Juventude de São Paulo, por exemplo, coloca o hip hop como prioridade máxima de suas ações. Na avaliação de seu coordenador, Alexandre Youssef, apesar de o hip hop ter nascido e sobrevivido por suas próprias forças, deve ser valorizado, promovido e apoiado pelo poder público. "Afinal, o hip hop é o mais importante movimento social da juventude brasileira, constituindo um espaço precioso de articulação, participação e reivindicação dos jovens", resume Youssef.

Grito da periferia

Além do governo, diferentes entidades não-governamentais que atuam na área da infância e da adolescência despertaram para a força criativa e social do hip hop. Na zona leste da capital paulista, por exemplo, o Cedeca Sapopemba (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan) abriu suas portas para o hip hop há quase 11 anos. "Ele chegou por meio dos próprios meninos, que começaram a cantar rap. Parecia um grito da periferia", conta Francelino de Assis Bonfim, coordenador do projeto Arte em Movimento da entidade, que envolve mais de 400 adolescentes, entre 7 e 18 anos.

Em 1994, o Cedeca Sapopemba lançou o festival Rap em Festa, que foi crescendo a cada ano. Realizado em uma escola pública do bairro, reuniu no ano passado mais de 2,5 mil pessoas, que vibraram com 75 grupos de rap, dez equipes de break e dez de grafitti, vindos de vários cantos da Grande São Paulo e até mesmo de outros estados. Cada ano, um tema de cidadania é proposto pela coordenação e discutido durante quatro meses com os participantes. "Damos demonstração de uma periferia organizada, que pode se reunir sem violência, com consciência e solidariedade", diz Francelino.

Buscando ampliar e aprofundar o conhecimento dos adolescentes, o Cedeca Sapopemba começou a oferecer oficinas semanais de rap, break, graffiti e DJ. "Não tenho dúvida de que o hip hop tem um grande poder. É ao mesmo tempo diversão, arte, política e educação", enfatiza o coordenador. Ele acredita que o hip hop pode crescer e se renovar sem perder sua identidade. "Ele nasceu da periferia para a periferia, mas hoje é um movimento da periferia para o mundo", diz, otimista.

Muitos dos meninos do Cedeca sonham ser como o rapper Thaíde. Mas ele adverte: o maior desafio atual é preservar a união e o respeito entre os participantes do movimento. "Não podemos esquecer que o principal elemento do hip hop não é o rap, o break, o graffiti ou o DJ, mas sim o elemento humano."


Filosofia de vida

Pernambucano, filho de uma família de quatro irmãos, Joaquim de Oliveira Ferreira, chamado de Nino Brown, é conhecido como historiador da cultura hip hop. Hoje, aos 39 anos, ele resgata na sua origem a identificação com o movimento: "Ainda criança me mudei com a família para São Paulo. Viemos em busca de uma vida melhor e fomos morar próximo ao centro da cidade. Logo tivemos de ir para a periferia, num bairro que não tinha nem água encanada. E eu comecei a me inquietar com tudo aquilo".

Com apenas o ginásio completo, Nino virou metalúrgico e, nos finais de semana, começou a freqüentar os bailes black. "Vibrávamos com o som de James Brown. Era uma música que mexia com a nossa alma." Foi o ponto de partida para começar a pesquisar, ler, recortar e guardar tudo o que encontrava sobre a cultura negra e o emergente movimento hip hop.

Em 1984, descobriu as rodas de break na Galeria 24 de Maio, no centro da cidade, e se identificou com o conteúdo social desse movimento. Dez anos mais tarde, não hesitou em escrever uma carta para a Zulu Nation, núcleo pioneiro de hip hop dos Estados Unidos, fundado em 1973 pelo DJ Afrika Bambaataa, em Nova York. "Ele foi o primeiro a reunir os vários elementos do hip hop. Os jovens viviam uma realidade de drogas e violência, então Bambaataa propôs que eles usassem o que sabiam fazer – rimar, dançar, grafitar – em seu benefício", conta Nino.

Aceito como integrante da Zulu Nation, Nino Brown dedicou-se ainda mais a pesquisar o desenvolvimento da cultura no Brasil. "Não acredito que o hip hop vá salvar o mundo. Mas ele nos dá autonomia e uma filosofia de vida."


Graffiti e educação

No Projeto Quixote, na zona sul de São Paulo, o hip hop tornou-se um valioso aliado na construção da cidadania entre os adolescentes em situação de exclusão social. Numa iniciativa inovadora, o projeto lançou em maio do ano passado a Agência Quixote Spray Arte, que une a arte do grafitti e a educação para o trabalho. No papel de aprendizes, adolescentes recebem uma bolsa-auxílio e participam de um completo programa pedagógico, conduzido por educadores, psicólogos e grafiteiros profissionais.

Ligado à Universidade Federal de São Paulo, o Quixote dedica-se à prevenção do uso de drogas entre crianças e adolescentes através da promoção do direito à saúde, arte e educação. Entre outros desafios, busca criar oportunidades de renda e trabalho para garotos e garotas que têm baixa escolaridade e pouca experiência profissional.

"Com o hip hop a gente consegue transformar a educação", garante o grafiteiro Alexandre Ricardo dos Santos, que assina seus trabalhos como Anjo e é um dos educadores da Agência. Seu colega de equipe, o grafiteiro e breaker Acássio Leandro de Melo, o Cóe, destaca que o hip hop pode ampliar as perspectivas de vida dos jovens. Nascidos na periferia, ambos descobriram no hip hop um estímulo para estudar e uma alternativa de renda e trabalho.

Para se manter, a Agência Quixote Spray Arte oferece produtos e serviços diferenciados, como graffitis em fachadas, banners, produção de cenários e de vitrines, além de workshops de iniciação ao graffiti e break e camisetas exclusivas pintadas à mão.