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O Brasil que batalha

 


Marli Goldenberg: esforço e recursos próprios / Foto:
Carol Quintanilha

Desemprego alimenta espírito empreendedor da população

ANTONIO GRAÇA e IVAN MASETTI

O brasileiro é um empreendedor. A afirmação pode soar estranha quando se fala de um povo ao qual já se tentou vincular a imagem de acomodado, mas há fatos e números que provam sua capacidade de iniciativa. Segundo pesquisa feita pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM), da London Business School, da Inglaterra, realizada em 29 países e divulgada no ano passado, o Brasil está entre os cinco com maior atividade empreendedora no mundo. Antes dele, pela ordem, estão México, Nova Zelândia, Austrália e Coréia. A pesquisa revela que 14% da população adulta no Brasil está envolvida com a abertura de negócios ou com a gestão de empreendimentos jovens, isto é, iniciados há no máximo três anos e meio.

O talento empreendedor é nato no brasileiro, que tem um excelente senso de oportunidade para negócios, afirma José Eduardo Giorfi, assessor de políticas públicas do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-SP). Apesar disso, segundo Giorfi, prepondera o empreendedorismo de necessidade, em geral ditado pela busca de uma atividade econômica que substitua o emprego perdido ou não encontrado. Na última década, em todo o mundo, as empresas demitiram muito mais do que empregaram, devido a fatores como redução de custos, aporte de novas tecnologias e terceirização de áreas.

No Brasil, dados da conjuntura econômica recente confirmam essa tendência. Pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) mostra que, no período que vai do final de 1994 ao final de 2001, a indústria paulista eliminou 570 mil postos de trabalho, uma redução de 27%. Dá para entender por que, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1991 e 2001, o trabalho por conta própria cresceu 133% em seis regiões metropolitanas do país – Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. O estudo do GEM vem confirmar a avaliação do consultor do Sebrae. Na classificação dos países por empreendedorismo de necessidade, o Brasil aparece em terceiro lugar, precedido de Índia e México. No critério empreendedorismo de oportunidade, o país ocupa a sexta posição, atrás de Nova Zelândia, Austrália, México, Estados Unidos e Irlanda.

É nesse cenário que um exército numeroso e silencioso, em geral pouco notado pela sociedade, trava uma batalha cotidiana e sem trégua. São as micro e pequenas empresas brasileiras, aquelas que empregam no máximo 99 pessoas ou têm faturamento bruto anual até R$ 1,2 milhão. Segundo o IBGE, o Brasil possui 3,5 milhões de empresas, das quais nada menos que 98% são micro e pequenos estabelecimentos, sejam eles de serviço, comércio ou indústria. De acordo com o Sebrae, esse contingente responde por 20% do Produto Interno Bruto brasileiro (PIB) – a soma de todas as riquezas produzidas no país no período de um ano, que hoje está em cerca de R$ 1 trilhão. Representa ainda 28% do faturamento do setor privado nacional. Além disso, essas empresas são reconhecidamente as maiores empregadoras. O caso do estado de São Paulo é exemplar. Levantamento do Sebrae mostra que em 1999 elas eram responsáveis por 67% do total de pessoas empregadas.

Indústria aeronáutica

Embora concentradas no setor terciário (comércio e serviços), que demanda menos capital para instalação e operação, segundo Pedro João Gonçalves, consultor de economia do Sebrae, as micro e pequenas empresas compõem uma malha que está presente em todos os segmentos da economia. Classificam-se nessa categoria desde o salão de beleza até estabelecimentos comerciais que vendem material de construção, passando por indústrias de tecnologia de ponta, que fornecem, por exemplo, peças para aviões. A multiplicidade dos segmentos em que atuam atesta a eclética vocação dos micro e pequenos empresários.

Elas podem se deter diante de barreiras como a dificuldade de obter capital, mas a complexidade tecnológica, por exemplo, não constitui impedimento para sua inserção. Ilustra isso o fato de, entre dezembro de 1997 e dezembro de 1999, no ranking das micro e pequenas empresas de serviço, o segmento de informática ter passado da sétima para a quarta posição. Outro exemplo pode ser encontrado entre as fornecedoras da Embraer, em São José dos Campos (SP). Tendo como proprietários, em vários casos, ex-funcionários da própria fábrica de aviões, elas produzem desde projetos de engenharia a peças de alta precisão para os mais modernos modelos de aeronaves. E agora começam a exportar, provando que sua tecnologia tem padrão internacional. No entanto, a participação das micro e pequenas empresas brasileiras na pauta de exportações do país ainda é inexpressiva. Apenas 2% delas vendem regularmente para o mercado externo. O presidente do Sindicato das Micro e Pequenas Indústrias (Simpi), Joseph Couri, lembra que nos Estados Unidos estabelecimentos com até 19 trabalhadores são responsáveis por 54% das exportações. Na Itália, empreendimentos com até 14 empregados respondem por 64%.

Mas, quando há estímulo e apoio, essas empresas, a exemplo das fornecedoras da Embraer, mostram que também estão habilitadas a exportar. Dados do Programa Gerador de Negócios Internacionais (PGNI), do Banco do Brasil (BB), criado para atender as empresas de pequeno e médio porte, revelam que é crescente a participação desses empreendimentos na totalidade dos recursos financeiros tomados para exportação. Em 1998, o PGNI respondeu por 33% do total dos negócios de exportação do banco. Em 1999, foram 40%, e em 2000, 48%. Até novembro de 2001, quando os negócios de exportação do banco somaram US$ 4,8 bilhões, esse índice havia chegado a 50%. A evolução da participação do programa surpreendeu os próprios dirigentes do BB.

Se exportar é o que importa, como apregoava um dos slogans do governo para melhorar o desempenho das vendas externas, a tarefa, no entanto, não é nada fácil. Exige contatos internacionais, adequação dos produtos às exigências do comprador, manutenção do padrão de qualidade e regularidade na entrega, além, é claro, da administração dos trâmites burocráticos e financeiros, como taxas de câmbio, por exemplo. Tendo isso em vista, o Sebrae, em colaboração com outras entidades, desenvolveu um programa de consórcios, que facilita a vida do micro e pequeno empresário que quer vender lá fora. Por meio deles são reunidas empresas do mesmo ramo ou ramos afins e elaborado um projeto. Os consórcios contam com um gerente próprio e desenvolvem um plano de marketing e uma marca pela qual as mercadorias serão exportadas. O gerente administra toda a parte financeira e burocrática, e o Sebrae, por sua vez, promove encontros, participação em feiras e rodadas de negócios no exterior. Até dezembro, em São Paulo, já havia cinco consórcios em funcionamento e dez em formação. Entre eles, está o Tropical Spice, iniciado em 1999 e integrado por 21 fabricantes de roupas femininas, que vendem para países como Inglaterra, EUA, Japão, Espanha e Chile. Em 2000, o consórcio vendeu US$ 50 mil. Entre janeiro e outubro de 2001, já tinha faturado US$ 270 mil. É uma prova de que, havendo apoio, essas empresas também dão conta do recado em matéria de exportação.

Vida curta

Mas para chegar à condição de exportadora uma pequena empresa precisa vencer uma verdadeira corrida de obstáculos, que é a própria sobrevivência. Ainda segundo o Sebrae, 71% dos estabelecimentos encerram suas atividades antes de concluir o quinto ano de vida. Entre os fatores que determinam essa altíssima taxa de mortalidade, a falta de planejamento é um dos principais. Em negócios, garra apenas não garante o sucesso. Com a concorrência cada vez maior, é o planejamento que decide o jogo. Isso significa, entre outras coisas, conhecer o mercado em que se atua. Outra causa de fracasso é a falta de dedicação exclusiva ao negócio. Tanto é que, segundo o Sebrae, 78% dos empresários que continuam em atividade após cinco anos dedicam-se integralmente a seu empreendimento.

A falta de uma política de crédito específica para o segmento, que possibilite taxas de juros adequadas e exigências factíveis de garantias, além de outros mecanismos para a capitalização dessas empresas, é outra dificuldade. Entre as que fecharam as portas, 18% apontam a falta de capital ou crédito como causa. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apresenta números que, à primeira vista, impressionam quando se trata de empréstimos para empresas de menor porte. Segundo dados divulgados em dezembro passado, foram concedidos financiamentos de R$ 4,5 bilhões de janeiro a outubro de 2001, num total de 121 mil operações. Mas, além de estarem incluídos nesse número os empréstimos às empresas de porte médio, essa quantidade de operações, afirma Couri, é muito pequena quando comparada ao número de micro e pequenos empreendimentos existentes no Brasil. Isso porque as condições para o micro e o pequeno empresário obterem crédito são desanimadoras.

Proprietária da Siscome Artesanato, que produz réplicas de alimentos para vitrines, Margareth Moura conhece bem o problema: "Uma das maiores dificuldades é a falta de capital. Os financiamentos têm juros exorbitantes. Quem aceita termina trabalhando para o banco. Não aconselho ninguém a pegar", afirma. Dono de uma loja de materiais de construção, Katsomori Miasato concorda com Margareth Moura: "Banco é uma arapuca, por causa dos juros altos. Nunca tentei pegar empréstimo".

Outra pesquisa do Sebrae, feita em 1999, mostra que 79% dos micro e pequenos empresários nunca recorreram aos créditos bancários. E 36% dos que algum dia solicitaram tiveram negado o pedido por insuficiência de garantias. Para Couri, a grande vitória das micro e pequenas empresas é o reconhecimento nacional de que elas são a saída para a economia brasileira. No entanto, conforme ele mesmo pondera, a dificuldade para obter recursos limita muito seu desenvolvimento. "É preciso mexer na estrutura de crédito e criar mecanismos para capitalizar a micro e pequena empresa, inclusive por meio da Bolsa de Valores", defende.

Recentemente algumas iniciativas foram tomadas para aumentar a oferta de crédito para esse segmento, como o Banco do Povo, ligado à Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho do estado de São Paulo, o Programa de Microcrédito do Sebrae e o CrediAmigo, do Banco do Nordeste do Brasil. Alguns grandes bancos também começaram a se interessar pelo mercado de microcrédito, a exemplo do Unibanco, que criou a Microinvest. Aprovada pelo Conselho Monetário Nacional em novembro último, a instituição financeira pretende montar 26 lojas no país em cinco anos. É uma evidência de que emprestar ao microempresário é bom negócio. Até porque, conforme lembra Couri, ele é bom pagador. "Muitas vezes, o microempresário tem como principal patrimônio o próprio nome. Por isso paga. E, quando não paga, negocia", afirma.

Carga pesada

Na área tributária, o grande problema é a voracidade do Fisco. No Brasil, o total de tributos pagos chega a 34% do PIB, uma das taxas mais altas do mundo. Nos Estados Unidos, é de 29% e no México, de 16,8%. Não bastasse seu peso, a carga tributária é iníqua, pois sabidamente onera mais os assalariados e os pequenos empresários e beneficia corporações como os grandes bancos.

Instituído em dezembro de 1996, o Simples, mecanismo pelo qual se concentram seis tributos, reduzindo seu custo e desburocratizando os procedimentos, foi um avanço nessa área para beneficiar o pequeno empresário. No entanto, ainda é pouco. Até porque só podem optar por ele, no caso de microempresas, estabelecimentos com faturamento bruto anual de até R$ 120 mil. No caso das pequenas empresas, o teto é de R$ 1,2 milhão.

Apesar de todas as dificuldades, os empreendedores estão aí. A história de Marli Goldenberg é exemplar. Proprietária da Bicho do Pé, que hoje fabrica 7 mil pares de sapatos para crianças por mês e conta com 18 funcionários, Marli diz que para o bom empreendedor cada dia é um desafio e uma conquista. A afirmação traduz bem sua trajetória. Quando começou, há dez anos, comprava retalhos de couro para reduzir o custo da matéria-prima. Desenhava os modelos, fazia as vendas e as cobranças. Sempre investiu a partir de recursos próprios. "Nunca consegui pegar dinheiro no banco por causa da demora e da burocracia", conta. Hoje, Marli dispõe de uma estrutura comercial com vários representantes, sua marca é conhecida e tem aceitação no mercado. "Minha grande satisfação é ver o produto final, que expressa todo o trabalho da gente. E olhar para trás, ver tudo o que batalhamos e os obstáculos que vencemos", declara.

Avesso aos empréstimos bancários, Katsomori Miasato também trabalha duro há sete anos para tocar sua loja de materiais de construção, que tem 12 funcionários. Engenheiro civil e ex-dono de pizzaria, ele diz que vale a pena. "Apesar das dificuldades, como microempresário posso crescer, porque dependo do meu esforço. Como funcionário, isso nem sempre acontece", afirma. Outra a quem não falta espírito empreendedor é Margareth Moura, que luta muito, desde 1991, quando abriu a Siscome. Tendo entre seus clientes alguns estabelecimentos de peso como o McDonald’s, ela diz estar investindo a vida na empresa. Mas a luta é compensada pela satisfação de vencer os desafios. Até porque, segundo ela, empreender é estar se desafiando todo dia.


Campeões do empreendedorismo
(Fonte: Global Entrepreneurship Monitor – GEM)

Geral
1º México
2º Nova Zelândia
3º Austrália
4º Coréia
5º Brasil
De necessidade
1º Índia
2º México
3º Brasil

Dicas para empreender
(Fonte: Sebrae)

• Ao abrir um negócio, escolha ramos que conheça ou com os quais tenha familiaridade.

• Planejar é decisivo. Estude o mercado, definindo os clientes e identificando os concorrentes.

• Escolha o local tendo em vista a natureza da atividade. No caso de uma loja, por exemplo, visibilidade é fundamental. Considere também facilidade de acesso e estacionamento.

• Dimensione muito bem o investimento em equipamentos e instalações.

• Calcule bem o capital de giro necessário e tenha reservas. Todo empreendimento leva tempo para dar retorno.

• Cuidado ao escolher o sócio. Não basta apenas amizade. É preciso afinidade com o negócio e complementaridade de aptidões profissionais.

• Busque consultoria tanto para iniciar uma atividade quanto para solucionar problemas que vão surgindo. O próprio Sebrae presta esse tipo de assessoria.

• Não se isole. Mantenha contato com entidades de classe e com os concorrentes, que são ótimas fontes de informação e com os quais se pode fazer parcerias.