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Gelson Lenhart: busca de qualidade / Foto: Fábio Koleski

Pequenos produtores lutam por melhor condição de trabalho e de vida

SPENSY PIMENTEL

A banda musical Eco Sul, formada por nove jovens militantes do sindicalismo rural, todos filhos de agricultores, é presença constante nos eventos da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) – como por exemplo a abertura de uma feira de produtos do setor, que atraiu mais de 40 mil pessoas, no 2º Fórum Social Mundial, realizado de 31 de janeiro a 5 de fevereiro deste ano em Porto Alegre. Suas canções, em típico ritmo sulino, como o xote e o vaneirão, estão recheadas de versos com expressões como "agroecologia", "reforma agrária", "sindicalismo", "terra solidária" e, principalmente, "agricultura familiar". Mas isso não acontece só com as músicas da banda. A agricultura familiar está em toda parte, em bandeiras, faixas, bonés e camisetas.

"Há um grande esforço para construir um novo ator social e político no meio rural brasileiro", diz o agrônomo e economista José Graziano da Silva, do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Uma iniciativa que vem mudando, aos poucos, a cara da agricultura.

Até cinco anos atrás os economistas faziam malabarismos com o censo agropecuário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para chegar a números mais ou menos confiáveis para o setor. Em 1997, a Problemas Brasileiros (nº 323, setembro/outubro) já mostrava os primeiros passos da agricultura familiar e o debate dos especialistas em torno das estatísticas.

Hoje, a atividade já tem uma definição clara. "É o estabelecimento agrícola que conta com a gestão e a mão-de-obra de uma família e constitui para ela sua principal fonte de renda", conceitua o economista Arnoldo de Campos, do Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais (Deser), ONG vinculada às organizações do setor na região sul. Pode até haver contratação de empregado, mas é temporária e limitada, e não supera 20% do total do trabalho na propriedade. Exatamente o oposto do empreendimento patronal ou empresarial.

O marco de referência para a agricultura familiar foi o 1º Grito da Terra, uma série de manifestações promovida em maio de 1995 pelo departamento rural da CUT (Central Única dos Trabalhadores) dos estados da região sul, pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul, ligada à Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), e pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra). Um grupo de produtores sem acesso ao crédito rural tomou uma iniciativa que culminou no lançamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf, em 1996. "Uma conquista dos movimentos sociais", define Gilson Bittencourt, secretário nacional da Agricultura Familiar, cargo no Ministério do Desenvolvimento Agrário que, aliás, também foi fruto dessa luta.

Graziano lembra que eram milhares de pequenos produtores dispersos, sem organização, que foram buscar uma bandeira, uma unidade. Hoje a liderança sindical e política da agricultura familiar ainda é disputada por diferentes entidades, ligadas ou não a organismos consolidados como a Contag, a CUT ou o MST, mas a força e a rapidez com que o conceito vem se firmando têm impressionado os especialistas.

Há dez ou 15 anos, poucos produtores rurais brasileiros se diriam "agricultores familiares". O que havia eram colonos, bóias-frias, sitiantes, fazendeiros, e até os sem-terra. A própria organização política e sindical refletia essa confusão até o início dos anos 90. O temor gerado pelos sem-terra incentivou uma aproximação entre proprietários rurais. O melhor exemplo foi a União Democrática Ruralista, surgida como reação dos latifundiários. Era tão forte que levou seu líder, Ronaldo Caiado, a se candidatar em 1989 à presidência da República.

Os sindicatos de trabalhadores rurais representavam tanto os colonos como os agricultores familiares, que muitas vezes tinham um ou dois empregados contratados. Hoje, o Ministério do Desenvolvimento Agrário calcula que 37,8% de tudo o que a agropecuária produz vem do setor familiar. Segundo dados do censo agropecuário de 1995/96, do IBGE, há 4,3 milhões de estabelecimentos rurais familiares no país. Para efeito de planejamento, o ministério os classifica em três faixas. Isso porque 31% dos tais 37,8% são produzidos por cerca de 1 milhão de propriedades, uma espécie de "elite" do setor. Estão no mercado, são organizadas e, quando o governo não atrapalha, têm plenas condições de se manter e até de expandir seus negócios. Em contrapartida, há 1,5 milhão que não têm perspectiva de se sustentar com a atividade rural. Geralmente porque a propriedade é muito pequena, usada apenas como habitação, pois o morador já está envolvido na economia urbana, e nem sequer se considera agricultor.

Em situação intermediária estão outros 1,5 milhão. Esses, com um "empurrãozinho", poderão sustentar a família trabalhando a terra. Basta lhes garantir crédito, assistência técnica e capacitação. "Só o crédito não adianta. O dinheiro pode chegar e a pessoa não saber o que fazer com ele", explica Gilson Bittencourt.

Para ele, o desafio principal hoje é ampliar o universo de beneficiários das políticas do ministério. Há três anos o número de operações do Pronaf gira em torno de 900 mil, e o total aplicado é de cerca de R$ 2 bilhões. Segundo Bittencourt, a cada vez que é reduzido o limite de renda exigido para obter empréstimos, crescem os problemas. Os agricultores mais pobres não conseguem oferecer garantias ao sistema bancário, o que inviabiliza a iniciativa. "Vivemos um paradoxo. Fazemos uma política social via sistema financeiro. São interesses incompatíveis. Custa-nos caro, e a ação se torna menos eficaz", explica ele.

Segundo pesquisa do Deser, em determinadas linhas de crédito do Pronaf o Banco do Brasil, principal responsável pelo repasse do dinheiro, chega a cobrar taxas de mais de 40%, a título de custos operacionais e equalização de juros. Somente entre julho e dezembro de 2000, o banco teria faturado mais de R$ 170 milhões para operacionalizar pouco mais de 500 mil contratos do programa. "O subsídio que deveria chegar ao agricultor é pago para o banco", ironiza Campos.

A solução para o problema, é consenso entre agricultores e governo, está em iniciativas como as Cooperativas de Crédito com Interação Solidária (Cresol). Elas realizam a mesma tarefa de repasse do Pronaf cobrando uma taxa de apenas 1,5% sobre o total. Criadas há sete anos no Paraná, elas já possuem mais de 20 mil associados, com cerca de 50 unidades em funcionamento nos três estados da região sul.

Parcerias

Depois de conseguidas as verbas, outro desafio é fazer com que sejam efetivamente liberadas. Em 2001, dos R$ 4,5 bilhões prometidos para a agricultura familiar, menos de R$ 2 bilhões chegaram a sair dos cofres de Brasília. "É uma política geral do governo. Em todas as áreas isso tem acontecido. Só com muita pressão dos movimentos sociais o dinheiro acaba saindo", lamenta Graziano. Em contrapartida, a agricultura patronal, o agribusiness, jurisdição de um outro ministério, o da Agricultura, recebeu no ano passado mais de R$ 12 bilhões.

Com o dinheiro na mão, outro problema é aplicá-lo da melhor forma. Como fazer isso? Bittencourt destaca que este ano o orçamento prevê R$ 38 milhões para financiar não só projetos das Emater (Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural) nessa área, mas também parcerias com organizações de trabalhadores, ONGs e universidades. "Serão priorizadas áreas de interesse definidas em debates com o próprio setor, como agroecologia, certificação de origem de produtos, cursos específicos para a juventude, etc.", explica ele.

Conscientes das dificuldades, as organizações de agricultores procuram apoio em outras esferas. Prefeituras, ONGs, universidades e governos estaduais vêm apostando no setor. O processo está mais avançado na região sul, uma vanguarda nessas experiências. Segundo dados do IBGE de 1995/96, dos 994 mil estabelecimentos agropecuários existentes nessa área 91% são familiares (a média no país é 85%). Essas propriedades geram 2,84 milhões de empregos diretos e, ocupando apenas 44% da terra destinada à agropecuária, são responsáveis por 57% da produção. O sul, dadas as condições naturais e históricas, tem uma população rural ou em municípios de economia predominantemente agrária que chega a 45,5%. Daí o interesse dos governantes pela questão.

Vida nova

Exemplos como o de Inês e Moacir Aozani, da comunidade de Arroio Grande, em Santa Maria (RS), são comuns. O casal passou 15 anos plantando fumo na pequena propriedade herdada dos pais. Trabalhavam num regime até hoje encontrado na região: uma grande indústria – a Souza Cruz – fornecia um kit de plantio, incluindo desde mudas até assistência técnica e defensivos (são usuais até oito aplicações de inseticidas, fungicidas e herbicidas apenas numa safra). No final, a empresa comprava toda a produção. Dessa forma, o agricultor se torna simples fornecedor de matéria-prima e tem de arcar com os ônus decorrentes de quebra de safra ou de intoxicação pelos defensivos, ocorrência freqüente na região, aliás.

Com o apoio do poder público, o casal mudou de vida. Depois de participar de alguns cursos técnicos promovidos pela Secretaria da Agricultura do estado, deixaram de plantar fumo e passaram a se dedicar à produção de hortifrutigranjeiros, além de pães, bolos, queijos e embutidos.

Na comercialização, contam com o auxílio da prefeitura, que mantém uma feira semanal na cidade, onde os agricultores vendem diretamente o que produzem. Sem intermediários e senhor de seu trabalho, o casal passou a ter uma renda líquida mensal de R$ 280, só com a feira. Parece pouco para os padrões de grandes centros metropolitanos, mas, levando-se em conta que vivem em moradia própria e se alimentam em grande parte de produtos gerados em casa, conseguem ter uma boa qualidade de vida.

Em Blumenau (SC), para coordenar iniciativas como o Prove (Programa Municipal de Verticalização da Agricultura Familiar), que facilita a comercialização dos produtos do setor no município, ou a associação com cooperativas locais para o fornecimento da merenda escolar, a prefeitura criou a Superintendência de Desenvolvimento Rural. O projeto tem apenas dois anos, mas a cidade já é apontada como um laboratório para a integração entre meio urbano e rural.

O apoio do poder público, porém, não livra a agricultura familiar de um grande dilema contemporâneo: a necessidade de adaptar-se ao mercado. Estudos do economista Fernando Homem de Melo, da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo), mostram que a agricultura familiar, uma vez que produzia praticamente apenas para o mercado interno, foi a principal prejudicada pela política econômica da era pós-Real. A combinação de juros altos, câmbio sobrevalorizado e abertura comercial indiscriminada derrubou os preços e levou o setor a perder áreas plantadas. Para não ver seus ganhos reduzidos, os agricultores tiveram de ampliar a produtividade. "Fica cada vez mais difícil para eles manter o nível de renda", explica Campos.

Para resolver a equação, a agricultura familiar vem recorrendo a estratégias que invertem a lógica dominante desde a revolução verde, nos anos 70. "Naquela época o pessoal chegou a plantar soja até na beira da varanda", diz o agricultor Gelson Antonio Lenhart, de São Pedro do Sul (RS). "Hoje, nem pensar." Usando intensamente os insumos prescritos pelos técnicos e implantando a monocultura mecanizada com vistas à exportação, os agricultores abandonaram técnicas e hábitos tradicionais. O desafio agora é recuperar esse patrimônio.

O riacho de volta

Segundo o Deser, no centro-sul do Paraná, por exemplo, o Fórum das Organizações dos Trabalhadores Rurais, com a assessoria de ONGs e universidades, já catalogou 112 variedades "crioulas" de milho e 98 de feijão. Feiras de troca de sementes e animais contribuem para difundir essa riqueza. Quinze mil agricultores participaram desse tipo de eventos na região entre 1999 e 2000.

Iniciativas semelhantes se espalham pelo sul do país. E não está em questão apenas o patrimônio cultural, o trabalho de seleção de variedades animais e vegetais que ocupou gerações de agricultores. A floresta de araucárias cobria, no início da colonização, 37% do território do Paraná. Metade da receita das exportações do sul provinha dessa madeira. Hoje só restam florestas originais em cerca de 0,8% da área do estado. Conciliando a atividade agrícola com a manutenção das riquezas naturais, está se desenvolvendo o conceito de agrofloresta. Em São Mateus do Sul a reportagem de Problemas Brasileiros visitou uma propriedade onde a idéia é aplicada. O casal Thiophilo e Tereza Cuba combina a manutenção da floresta com o cultivo de erva-mate entre as araucárias. A mudança no manejo do terreno começou há poucos anos, mas já dá frutos. "Ali havia uma nascente que estava quase seca. Depois que adotamos esse sistema, a mata foi se recuperando, e o riachinho voltou a correr que está uma beleza", conta Thiophilo Cuba, com orgulho.

É também crescente entre os agricultores familiares a defesa apaixonada dos produtos orgânicos – termo que, para eles, pode se aplicar tanto a uma alface cultivada sem agrotóxicos ou fertilizantes químicos como a um porco alimentado apenas com milho e ração caseira. "Com a química não tinha mais jeito. A gente produzia mais, mas gastava muito com os insumos. Quando penso nos banhos de veneno que tomava, me arrepio. Hoje aprendemos até como tratar doenças dos porcos e bois só com homeopatia e fitoterapia", afirma Lenhart. Uma só iniciativa no âmbito da produção orgânica, a rede Ecovida, reúne hoje 1,5 mil famílias de agricultores, auxiliados por 20 entidades de assessoria e mais de cem organizações sindicais e associativas dos três estados do sul.

O preço superior alcançado por esse tipo de produto chega a ser muito atrativo, em alguns casos. Em Três de Maio (RS), a cooperativa Cotrimaio exporta soja orgânica para a França, vendendo-a pelo dobro do valor da soja transgênica dos EUA no mercado internacional.

Ajuda da Itália

A agricultura familiar tem sido responsável por inovações também no campo do cooperativismo. O exemplo da Cocel, central das cooperativas de leite da região de Erechim, mostrou como esse modo de organização do trabalho pode ser uma alternativa até para as privatizações. Herdeira da extinta estatal Corlac (Companhia Rio-Grandense de Laticínios e Correlatos), falida em 1993, a entidade já conta com mais de 3 mil associados e busca agora competitividade no setor. Quem antes apenas vendia leite para a empresa hoje participa ativamente das decisões inerentes a todo o processo. A iniciativa teve o apoio de uma consultoria italiana, a Nexus, que também colabora com a maior cooperativa de laticínios da Itália, a Granarolo, de Modena.

Nos 994 mil estabelecimentos agrícolas do sul, já há 720 mil agricultores associados a sindicatos, e 335 mil ligados a cooperativas ou associações de produção. A Fetraf-Sul já conta com 108 mil filiados em 250 municípios dos três estados da região e congrega os Sintrafs, sindicatos de trabalhadores na agricultura familiar. "Temos de ser diferentes. Nossa expectativa é diferente", diz o catarinense Dirceu Dresch, coordenador-geral da Fetraf. Para ele, o objetivo desses novos produtores rurais não é só o lucro, como em geral acontece com a agricultura patronal. Eles querem colaborar também para a preservação do ambiente, para as políticas de segurança alimentar, para o gerenciamento do território e, principalmente, para a qualidade de vida das pessoas que vivem no espaço rural. "Somos pais de família, pensamos no bem dos nossos filhos", conclui Dirceu. Como se vê, não é só a agricultura que é familiar, mas a filosofia também.