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Que Horas Ela Volta? em debate no Cine Psique
A empregada doméstica que mora no quartinho dos fundos da casa em que trabalha; a relação dela com o filho dos patrões; a (falta de) relação dos pais com este filho; a chegada da filha da empregada para abalar tudo isso. Esses cenários, presentes no filme Que Horas Ela Volta?, foram tema da sessão de agosto do Cine Psique. A atividade, que é fruto da parceria entre o Cinesesc e o IPq-HC (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), aconteceu pela primeira vez no auditório do Instituto, como parte da programação da Semana IPq de Portas Abertas.
Após a exibição do filme, um bate-papo reuniu o psiquiatra, doutor em Ciência e bacharel em Filosofia Daniel Martins de Barros, a jornalista e crítica de cinema Neusa Barbosa, e a atriz Camila Márdila, premiada no Festival de Sundance, pela interpretação de Jéssica, a filha da empregada.
Dirigido por Anna Muylaert, Que Horas Ela Volta? trouxe à tona discussões em perspectivas sociais, econômicas, históricas, psicológicas e de saúde mental. No filme, Val - que deixou a filha em Pernambuco para ser babá em São Paulo - mora na mesma casa em que os patrões, Bárbara e Carlos, mas vive segregada em vários aspectos que, para ela, são naturais: não poder sentar-se à mesma mesa, nem comer o mesmo sorvete ou entrar na piscina da casa. Quando, 13 anos depois, sua filha Jéssica desembarca na mesma cidade para prestar vestibular, a menina não encara estas barreiras com a mesma naturalidade e acaba abalando as estruturas vigentes.
“A Jéssica chega pra estudar arquitetura com um discurso de que isso é um instrumento de mudança social, e de cara descobre que a mãe mora num quartinho dos fundos. Não é essa a lógica de espaço em que ela acredita. Ela acredita na fruição das pessoas, nas relações horizontais, na possibilidade de compartilhar espaços. Mas ela chega e vê essa segregação extremamente forte”, conta Camila Márdila.
De acordo com Daniel Martins de Barros, essas formas de distinção são criadas artificialmente por nós. “Não existem dois tipos de ser humano, portanto, é uma barreira socialmente construída, que se mantém por mecanismos psicológicos nossos”, afirma. O estigma, composto por estereótipo, preconceito e discriminação, desempenha um papel importante na manutenção dessas barreiras.
Inserida naquela lógica, sem possibilidade de se comportar de forma diferente, Val cria formas de se convencer de que a sua forma de agir é a correta. Para ela, há regras que não precisam ser ditas e toda empregada deve saber desde que nasce. “A gente precisa de consistência. Existe um mecanismo, que todos nós temos, chamado dissonância cognitiva. Quando somos colocados em uma situação em que o que acreditamos não combina com a forma como nos comportamos, nós mudamos uma das duas coisas: ou como estamos agindo, ou em que acreditamos. É algo que acontece intuitivamente, sem perceber”, explica o psiquiatra. Esse mecanismo pode ser uma forma de amenizar nossos conflitos internos, contribuindo para mantermos a saúde mental.
Ainda de acordo com o profissional, há duas formas de quebrar preconceitos e, consequentemente, fazer ruir as barreiras. “A segunda melhor maneira de combater o estigma é por meio da informação. A primeira, a mais eficaz, é promovendo a interação, colocando as pessoas juntas. Proximidade gera intimidade e o estigma não prevalece”, afirma.
A jornalista Neusa Barbosa chamou atenção para as raízes históricas dessa segregação. “A gente teve um processo histórico terrível, colonial, escravocrata. E ainda não conseguimos expurgar todos os efeitos disso. A empregada doméstica é a herdeira da escrava; o quartinho da empregada é a senzala”, diz. Para ela, contudo, a luta pela igualdade sempre esteve presente na história do país: “A gente, enquanto povo, está no processo que é necessariamente conflituoso, como vimos no filme”.
Sessão do Cine Psique no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. (Foto: Alf Ribeiro)