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Ficção Inédita

Aos poucos, o mofo

por Maurício de Almeida

Um silêncio perfeitamente imenso como se nada mais existisse e nem viesse a existir: apenas uma mancha mais escura que a noite ao redor da lâmpada, uma mancha quase volátil e, apesar de espectral, esverdeada, pois é mofo e se espalha tomando o teto numa metástase, engolindo a lâmpada num verde felpudo e irritadiço que deixa escorrer uma gota imensa (verde e felpuda) que engorda aos poucos e se estica até o ponto em que não se aguentará sobre o próprio rabo: quando cair, abandonando a indiferença da lâmpada apagada, não será mais verde ou felpuda ou gorda, mas como num milagre irá se multiplicar em dezenas de minúsculas gotas verdes, felpudas e esparramadas (chuva) e, se eu tiver sorte, algumas delas me cairão na cara trazendo o mofo o mofo e o mofo: é uma angústia perceber que só muito lentamente meu corpo mofa, por isso quero que me acerte de uma só vez e pronto: não viverei mais na iminência de, sempre esperando para, e nunca, nunca encarando a ideia de que terei uma morte lentíssima (verde e felpuda), amargando cada passo evitado, cada ideia desperdiçada por causa de uma preguiça estúpida, um medo absurdo, por isso, por isso arregalo os olhos estudando em detalhes aquela mancha, minhas pupilas dilatadas há horas (dias, meses, anos) procuram esta

gota que também se dilata e se enche de mofo e luz roubada: só mesmo roubando a energia da lâmpada o mofo consegue se espalhar como praga, acumulando em seus felpos milhares de watts viscosos: quando me alcançar, consumirá também minha energia e serei apenas resto debaixo de felpos elétricos e brilhantes como uma constelação úmida de limo, por isso (por isso) preciso ver a gota e ter a noção exata do momento em que estarei finalmente felpudo e vazio de qualquer vida, então esmiúço a macha que está munida agora de inúmeras gotas gordas que se acumulam e se deixam dependuradas em rabos finos de espermatozoides inconstantes, pressinto a tempestade (não chuva) sobre meu corpo de poucos fungos e muito muco, mas finjo paciência, pois à noite as coisas acontecem devagar e em silêncio: agora já não procuro palavras (inicias do escritor francês Dumas duas letras 5 horizontal) nem ouço vozes (azul, azul, sim), estou no entremeio da madrugada, quando alguns finalmente dormem e outros acordam devagar, mas são todos ainda alguma coisa menos escura que a noite e por isso (por isso) ninguém percebe o mofo subindo pelos cantos, rasgando as paredes descascadas, jorrando por entre as rachaduras, nem eles do outro andar (sim, azul) entendem o que está acontecendo, apenas falaram falaram e falaram e agora contemplam embriagados o mofo que lhes dá textura à vida: em pouco estaremos todos nós soterrados sob vigorosos felpos, porque ninguém passa ileso por tantas noites e dias (dias, meses, anos), nenhuma parede resiste branca e limpa e hora ou outra iremos nos afogar em fungos e muco, esquecidos pela eletricidade de lâmpadas apagadas: é exatamente isso que quero, me afogar de vez, esquecer tudo que insisto em lembrar (azul duas letras 5 vertical Dumas sim), quero me afogar com todos (falando, falando, falando), impressionadíssimos com nossa capacidade de se esquivar, aplaudindo nosso zelo inútil, nossa vergonha, pudor, lambendo nossos medos com muito cuidado e alguma lascívia, nós todos inúteis virando o rosto para evitar o tapa, ruminando desculpas esfarrapadas, todos nós mesquinhos e tão distraídos que nem percebemos o mofo que alcança o chão, quase não vejo as muitas gotas se esticarem (verdes e felpudas) de modo a quase caírem sobre nós (tempestade), estamos todos juntos: acordem! e me ajudem a erguer os braços numa aleluia mentirosa, acordem! e me levantem, pois quero nadar pelo quarto no momento em que as gotas estourarem em nossas cabeças, acordem! e me façam mexer as pernas para esmagar com a sola dos pés os felpos verdes e jocosos que, por brincadeira, esconderão os chinelos inúteis que ainda mantenho embaixo da cama, acordem e abaixem minhas calças! para que eu possa mijar sobre todos esses meus fantasmas das altas horas da noite que se afogarão comigo quando essa tempestade (tempestade, sim) nos tomar num só golpe (dias, meses, anos), pois, quando estivermos submersos, mijaremos juntos sobre os fungos os felpos e as lâmpadas roubadas que ignoravam nossa insônia: é madrugada e estamos todos juntos porque somente dessa maneira nos sabemos próximos (paredes suadas da noite quente) e cientes de que, do mesmo modo que choramos à vida, sorriremos à morte! ah! como é bom tê-los aqui como se fôssemos um!, então, olhem!, vejam as gotas! e prestem atenção ao corpo rechonchudo de cada uma delas!, é isso que nos espera! parece horrível a ideia de ter narina adentro os pequenos tentáculos desse mofo, mas é tão inevitável que nem mesmo quartos escuros, palavras cruzadas ou litros de álcool podem evitar, por isso vejam todos! acordem! para ver como elas caem! como nos afogamos! vejam! como estamos mofados!, viscosos! e felpudos! vejam.

Maurício de Almeida é autor de Beijando Dentes (Ed. Record)