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Em Pauta
Literatura erótica
Representado por grandes nomes nacionais e estrangeiros, esse gênero narrativo tem sido estudado por especialistas de diferentes áreas – como a filosofia, a psicologia e o teatro – por sua capacidade de expor as facetas mais íntimas do ser humano. Em artigos inéditos, o doutorando em literatura comparada pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Ronnie Francisco Cardoso, que pesquisa a relação entre pornografia e perversão na literatura, e o professor de literatura brasileira da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) Fábio Figueiredo Camargo analisam o tema
A literatura erótica ainda vive
por Ronnie Francisco Cardoso
Sem dúvida, muitos dos desregramentos que encontrarás aqui retratados desagradar-te-ão; alguns entretanto aquecer-te-ão a ponto de te custarem o gozo, e isto nos basta. Se não tivéssemos dito e analisado tudo, como poderíamos adivinhar aqueles que te convêm? Cabe a ti tomar a tua parte e deixar o resto; um outro fará o mesmo; e, aos poucos, tudo encontrará seu devido lugar.
(Os 120 dias de Sodoma, Marquês de Sade)
“Quem te mostrou que estavas nu?” Assim foi interpelado o homem primeiro pelo Criador do mundo. No princípio houve um ato de desobediência, legado que foi perpetuado como signo da transgressão humana – nele encontramos o marco de uma ética do desejo e da erotização do corpo. O casal primevo, ao comer do fruto proibido, inaugura simbolicamente a estética obscena, uma estratégia de representação que se opõe à ocultação.
Aqui o desnudamento é a ação decisiva, enfrentando o interdito ocular do nu. Em decorrência da sua transgressão, o primeiro casal humano foi expulso do paraíso e se viu diante da certeza de viver para morrer, de “retornar ao pó”, mas é talvez esse ato inaugural que o habilita a poder gozar. Vale aqui lembrar a provocação em Ulisses, de James Joyce, segundo a qual, antes da queda, Adão trepava, mas não gozava. Ao tomar consciência da própria nudez, o corpo do casal primevo passou a ter um caráter erótico, por isso a necessidade de disfarçá-lo e escondê-lo.
Embora representações explícitas do sexo e da sensualidade dos corpos possam ser encontradas em todos os tempos e lugares, a pornografia como sistema estético está diretamente associada com o surgimento da Modernidade no Ocidente. Em 1769, Restif de la Bretonne cria o termo que veio nomeá-la, advindo do seu tratado para moralizar a prostituição ao qual deu o título de O Pornógrafo. O tratado escrito por Bretonne visava regulamentar a prostituição e torná-la, consequentemente, uma prática racionalizada, deixando transparecer certa avidez reguladora própria do final do iluminismo. Desde o início, encontramos um confronto na definição do termo: por um lado persiste o impulso da revolta, a necessidade de comunicar algo que aponte a hipocrisia, revirar o pudor usando a obscenidade, a indecência e a licenciosidade (cabe lembrar que muito material de conteúdo pornográfico foi veiculado junto com manifestos da Revolução Francesa, tendo em vista atacar o clero e a aristocracia). Por outro lado, não podemos esquecer a face regulamentarista da pornografia, querendo domesticar o sexo, regrá-lo, governar o corpo, torná-lo dócil em seu aspecto social.
“Antes do surgimento do termo pornografia, a definição de erotismo abrangia tanto a noção de amor, de galanteria, como a de delírios provocados pelo desejo”
Pornografia x erotismo: uma questão mal colocada – Antes do surgimento do termo pornografia, a definição de erotismo abrangia tanto a noção de amor, de galanteria, como a de delírios provocados pelo desejo. Para designar os textos e imagens que visavam exclusivamente produzir excitação sexual, eram usados os termos “licencioso” e “obsceno”. O primeiro tinha a ver com a libertinagem do espírito, quando se quer agredir as convenções morais ou legais; já o segundo se referia a tudo que é impuro, contrário ao pudor, pondo em evidência o que a sociedade queria evitar e esconder. Com o desenrolar do tempo, o termo pornografia passou a substituir ou incorporar todas essas acepções, até mesmo porque não há entre as definições de obsceno, erótico, licencioso e pornográfico uma fronteira inquestionável e definitiva. Ainda que em alguns momentos seja preciso ressaltar as distinções semânticas decorrentes das variações sociais, filosóficas ou morais de cada época, para ampliar nosso olhar sobre a pornografia não podemos nos fixar em polarizações antagônicas dos termos em questão.
Toda tentativa de oposição, quer seja entre obsceno e erotismo, quer seja entre pornografia e erotismo, quando não cai na facilidade de querer explicá-los em função do que pode ser “explícito” ou “implícito” ao se tratar do cenário sexual, resulta numa visão moralizante. Coloca a arte exclusivamente no alto, como elevação do espírito pelo belo, desvinculada, portanto, de uma estética que trate de assuntos relacionados com o “baixo material e corporal”. A pornografia é vista assim como representação que visa apenas ao consumo maníaco, sendo, portanto, associada à cultura de massa, e o erotismo designaria as obras de arte da cultura erudita que tratam diretamente da sexualidade. Mas seria a pornografia realmente um gênero contrário à arte e, no caso da sua forma escrita, seria a literatura apenas seu acessório para excitar o leitor, provocar-lhe o apetite sexual?
No contexto da indústria cultural: o sexo como mercadoria – A definição excludente de pornografia e literatura baseia-se fundamentalmente na alegação de que o propósito da primeira é a indução da excitação sexual como único objetivo, contrariando, portanto, o tranquilo e desapaixonado desenvolvimento da escrita literária. A pornografia seria, nessa visão, apenas um subgênero que só desqualificaria qualquer empreendimento artístico, já que ficou reduzida a algumas palavras de ordem do tipo “faça isso”, “faça aquilo” e a uma gramática de figuras obscenas que têm tão-somente a intenção de atender ao horizonte de expectativa do leitor. Tudo já se sabe, tudo já se espera. Portanto, a pornografia se rende a sua instrumentalização. Limitar a linguagem pornográfica às funções elementares de comando e de descrição para excitar o receptor seria efetivamente uma forma de reduzi-la, já que ela se torna mero entretenimento. Assim, não haveria nesse sistema estético nenhum interesse por procedimentos literários, a ponto de haver uma contaminação metonímica, na qual a pornografia ?torna-se sinônimo de indústria cultural, sendo o principal instrumento de persuasão desta.
A pornografia comercial pretende excitar o receptor ao qual se dirige com a superficialidade da sexualidade, com as ações e os objetos tornados óbvios pela gramática: nesse movimento regulador, a anatomia genital e o coito são esvaziados de erotismo. Além de ser um produto rentável para o comércio, a pornografia é ainda um discurso insidioso, utilizado pela publicidade para vender qualquer produto. Entre outras consequências, contribui para domesticar os corpos e homogeneizar os gostos das pessoas. A cada avanço tecnológico, vai intensificando suas estratégias de persuasão, ficando cada vez mais presente e mais acessível a todos, inclusive às crianças, para desespero dos pais. Repetindo à exaustão fórmulas para atingir o imaginário do consumidor, banalizada e esvaziada de conteúdo, a pornografia perde seu potencial erótico. Para redefinir a noção de pornografia, é necessário, portanto, perturbar o horizonte de expectativa da recepção. Então, para tornar a pornografia sem efeito no regime “sagrado” do capitalismo, vamos resgatar seu conteúdo esquecido, deixado de lado pelos dispositivos econômicos. Precisamos alargar a compreensão do que é pornográfico antes que o termo seja subutilizado para designar somente os produtos e os discursos sexuais do mercado.
Pornografia: um gênero plural – Em sintonia com o erotismo, que é um conceito que tem a ver com nossos desejos mais radicais, com a supressão de limites, podemos pensar a pornografia como um gênero que articula todas as possibilidades da representação, que põe em cena o ato sexual explicitamente ou, ainda que implícito, subtendido, mas que esteja em confronto com a moral vigente, com os interditos sociais e com o bom-tom da linguagem oficial. Nessa perspectiva, o obsceno, o licencioso e até mesmo o exercício lúbrico – este mais diretamente associado com o efeito de excitação sexual – são os mecanismos que fazem parte do sistema poético do qual a pornografia faz uso taticamente. Esses termos podem ainda ser considerados como estratégias autônomas, instrumentalizados pela pornografia ou incorporados por ela para efetivamente perturbar o corpo do seu receptor. Assim, esse gênero se apresenta na literatura como um empreendimento de alteridade e estranhamento, que expõe nossas experiências mais profundas, violentas e abruptas com o corpo. Mostra-nos uma parte obscura de nós mesmos e, especificamente, da nossa sexualidade. Minha sugestão final é que voltemos nosso olhar para os clássicos da pornografia. Seguem algumas indicações para leituras intensas e perturbadoras: Pornólogos, de Pietro Aretino; Os 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade; Três Filhas da Mãe, de Pierre Louÿs; As Onze Mil Varas, de Guillaume Apollinaire; A Fúria do Corpo, de João Gilberto Noll; Contos d’Escárnio: Textos Grotescos e Cartas de um Sedutor, de Hilda Hilst. Parafraseando Sade, prepare seu corpo e seu espírito, amigo leitor, para alguns dos relatos mais impuros já feitos desde que o mundo existe.
A literatura erótica ainda vive
por Fábio Figueiredo Camargo
A literatura erótica é um gênero reconhecido a ponto de render uma seção inteira da Biblioteca Nacional francesa. Praticada pelo Marquês de Sade, Alfred de Musset, Henry Miller, D. H. Lawrence e, no Brasil, por poetas como Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e Glauco Matoso, entre outros, é verdade que há muito tempo ela não encontra escritores à altura destes ou especializados nesse gênero, como é o caso de Georges Bataille. A literatura propriamente erótica é difícil de ser encontrada há bastante tempo no Brasil. Autores que produziram especificamente sobre esse mote já se foram há muito, como Adelaide Carraro ou Cassandra Rios. A tentativa temporã de Hilda Hilst, se rendeu alguns bons frutos, não foi suficiente para revivescer o gênero para um ?público maior que o da academia. As revistas especializadas desapareceram ou preferem manter ensaios particulares de autores anônimos que, muitas vezes, não se interessam em produzir literatura erótica, mas relatos, mesmo que falseados, de suas aventuras sexuais, muitas vezes recheados de clichês. A seção Fórum da revista Ele e Ela deixa até saudades!
Há um problema em tempos pós-modernos sobre a questão da qualidade. Devido ao trabalho intertextual, do cruzamento de uma série de discursos, da quebra das fronteiras entre gêneros, entre erudito e popular, a qualidade fica comprometida, pois a pergunta que sempre vem à tona é: o que é mesmo indicador da excelência dos textos eróticos?
“Se não há mais literatura erótica por excelência, a culpa não é toda das novas mídias, mas, sim, deve-se ao fato de que parece não haver mais uma necessidade de transgredir nesse espaço do erotismo”
A literatura erótica só passou a ser discutida com seriedade quando escritores considerados de qualidade inegável resolveram investir no gênero e retirar do limbo a própria obra de Sade, por exemplo. O que seria, então, sua qualidade se esta era justamente o fato de ela ser transgressora. Em determinados momentos, a literatura erótica foi revolucionária, pois trazia em si a ideia de liberdade, tão cara aos burgueses da Revolução Francesa; ou nas décadas de 1920 e 1930, quando traziam a possibilidade da vida sem clausuras tão sonhada pelos modernos do século 20. Em tempos conturbados como o nosso, em que a literatura erótica seria transgressora? O erotismo de fachada do cinema norte-americano e da literatura hiper-realista se encontra por toda parte. Se não há mais literatura erótica por excelência, a culpa não é toda das novas mídias, mas, sim, deve-se ao fato de que parece não haver mais uma necessidade de transgredir nesse espaço do erotismo. O olhar menos atento pode enxergar essa deserção do desejo de transgredir, mas a transgressão continua sendo necessária, e a sexualidade ainda não deixou o lugar de pedagogia que a ela foi imposto pelos discursos médicos e da família burguesa. O erotismo pasteurizado das novelas de TV, das revistas masculinas, femininas e gays, das imagens com Photoshop e do grotesco que a internet apresenta todos os dias precisa ganhar sua contrafação. Uma espécie de universo paralelo que não garanta a sexualidade dos corpos sadios, limpos e cheirando a sabonete, mas que também não caia no grotesco da mera representação pornográfica dos filmes de sexo explícito.
A literatura erótica não corre o risco de perder tonicidade ao ser colocada ao lado da internet, na qual o erotismo é mostrado em suas mais explícitas e vulgares versões. A literatura que queira ensaiar-se erótica precisa transgredir. Como a palavra tem um componente a mais, pois ela não precisa da imagem, e sim a produz, o erotismo literário ganha poderes quanto mais reforçar a ideia de uma sexualidade liberta das amarras sociais, à qual a cultura ocidental não está acostumada. A internet, nesse sentido, pode ser mais um veículo para essa literatura. Alguns sites já ensaiam essa modalidade, mesmo que de forma tímida. A literatura erótica, mesmo que não mostre o ato em si, deve dar conta de fazer com que o leitor seja levado a refletir sobre o ato e sobre os sujeitos que o produzem.
A representação teatral, da qual toda literatura erótica é partidária, não possui muito espaço na nossa cultura. A teatralização do ato fica impraticável em uma cultura imediatista ou pautada pelo consumo desordenado. Mais do que demonstrar o ato em si, há que se entrar na representação, na alteração do ato, pois não é o ato em si, mas sua transfiguração. O movimento é importante, mas não apenas o movimento dos corpos, mas das palavras, pois são elas que se movimentam ante os olhos do leitor. É importante que a literatura erótica faça com que ele sinta essa movimentação.
A repetição, tão cara a Sade, deve ser colocada a serviço da narrativa para que haja a sensação do ato, antes de tudo, entre o leitor e o texto. Afinal, a boa literatura erótica sempre teve como função, além da estética, a reflexão sobre o ato e seus produtores. A transgressão está no fato de o pensamento pensar sobre si mesmo, como diria Severo Sarduy, da linguagem falar sobre ela mesma. Nossa cultura deseja a morte da literatura erótica, mas ela está viva mais do que nunca em autores que produzem cenas eróticas, transgredindo o bem-estar da família que, mesmo fora dos padrões da família nuclear burguesa, ainda insiste em criar seus filhos com a moral da cegonha. Uma literatura que produz seu espaço para além das produções limpinhas e organizadas, que defende o espaço de o texto refletir sobre sua própria sexualidade, sem barreiras, produzindo fruição estética e o mais puro contato entre a filosofia, pois esses textos levam o sujeito à contemplação, em espaços para fora de si mesmo. Ao entrar em contato consigo mesmo, o leitor é levado ao erotismo propriamente dito, essa transgressão maior: o ato de voltar-se sobre si mesmo para se conhecer.