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O Senhor da HQ


O autor e desenhista norte-americano Will Eisner, marco na história dos quadrinhos, revolucionou a técnica ao criar personagens complexos, como Spirit

 


Era 2 de junho de 1940, um domingo como outro qualquer. Aos olhos desatentos, a cidade de Central City amanhecia como sempre. Mas quem voltasse a atenção ao Wildwood Cemetery perceberia uma movimentação estranha em uma de suas tumbas. O detetive Denny Colt, dado como morto após ser atingido por uma descarga de produto químico, voltava à vida, saindo da catalepsia para assumir a identidade secreta de Spirit, um herói mascarado, ambíguo, amoral, sem superpoderes e que, durante anos, protegeria Central City.

Foi esse enredo, publicado pela primeira vez na edição dominical do jornal Detroit News, em 1940, que deu origem à série The Spirit, criada pelo norte-americano descendente de judeus Will Eisner. A obra lançou o quadrinista, reconhecido como um dos mais importantes da história da HQ e responsável por grandes contribuições à arte durante seus 87 anos de vida. Além de criar a emblemática figura do detetive mascarado, foi também responsável pela divulgação da expressão graphic novel – que usou para definir o trabalho com narrativas densas em quadrinhos – e autor de importantes obras de análise da arte de fazer HQs. Algumas delas lançadas no Brasil, como Narrativas Gráficas (editada em 2008 pela Devir Livraria) e Quadrinhos e Arte Sequencial (WMF Martins Fontes, 1999).

Com a definição, o autor pretendia enfatizar a possibilidade de criar histórias em quadrinhos para um público mais erudito, não as limitando aos enredos rasos e focados no embate entre as forças antagônicas do bem e do mal. Eisner queria que a técnica ganhasse outra dimensão e fosse encarada não apenas como entretenimento, mas como forma narrativa, abrindo um importante espaço para as histórias em quadrinhos para adultos. “Não era preciso que o cartunista (na falta de uma expressão melhor) trabalhando com essa técnica tivesse de limitar-se a super-heróis salvando o mundo do ataque de supervilões”, escreveu Eisner no prefácio de seu livro Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço (relançado em 2009 pela Devir Livraria).

Cidadão comum

The Spirit é fruto de um período fértil na criação de super-heróis. Dois anos antes, em 1938, a dupla Joe Shuster e Jerrie Siegel dava ao mundo o Superman, e, em 1939, era a vez de Bob Kane criar o Batman. Mas ao contrário de seus contemporâneos – munidos de capas e colants – o justiceiro de Eisner usava apenas uma máscara, que compunha com a inseparável combinação chapéu e terno.

Para o também quadrinista Octávio Cariello, os três personagens representam estágios diferentes: o Superman seria o “super-herói por excelência”, como define, dotado de superpoderes. No entremeio, viria o Batman, que embora não tenha habilidades sobre-humanas, tem tecnologias a seu dispor que lhe permitem agir como se as tivesse (ele pode, por exemplo, escalar edifícios com a ajuda de cabos de aço). “Na outra ponta, estaria o Spirit, uma representação do cidadão comum que resolve combater o crime em sua cidade”, analisa Cariello. O jornalista Jotabê Medeiros chama a atenção para o fato de que o personagem de Eisner nem sequer é especialmente esperto ou forte. “Ele não tem grandes trunfos. É um ‘galinha’, vive sendo seduzido e feito de trouxa pelas vilãs. A abordagem do autor é claramente irônica”, resume Medeiros.

Esse modo de construir as narrativas mesclando o bom humor e a ironia é um dos aspectos mais valorizados da obra de Eisner, reconhecido por conseguir tratar de temas duros do dia-a-dia em seus quadrinhos. “Talvez não seja exagero afirmar que Eisner tenha se destacado por se dedicar, desde as primeiras páginas do Spirit, a contar histórias que não resvalassem no simples entretenimento”, afirma Cariello. “Havia sempre algo a revelar os valores da sociedade americana, a comemorar aspectos positivos e negativos da condição humana e a denunciar as idiossincrasias da ‘filosofia’ polarizada do preto-e-branco.” Para Cariello, ao contrário de seus colegas, Eisner criava suas histórias “no intervalo de cinzas” entre esses extremos descritos por ele.

Criador e criatura

Filho de judeus imigrantes, Willian Erwin Eisner nasceu em 6 de maio de 1917, no bairro do Brooklyn, em Nova York, onde passou toda a sua juventude. Enquanto estudava no Instituto DeWitt Clinton, no Bronx, chegou a colaborar com Bob Kane em uma revista produzida na escola. Antes de criar The Spirit, em 1936, entrou para a equipe da revista WOW What a Magazine!, dirigida pelo também autor de quadrinhos Samuel Iger. Nessa revista, Eisner criou diversas histórias, entre elas a série de aventuras Captain Scott Dalton, a história de piratas ?The Flame – onde assinava com o nome de Erwin –, e o quadrinho de espionagem Harry Karry – aqui como Bill Rensie. No ano seguinte, com o fim da WOW, Eisner fundou com Iger o lendário ?Eisner-Iger Studio, por onde passaram grandes nomes das histórias em quadrinhos, como Bob Kane e Jack Kirby, parceiro de Joe Simon na criação do herói Capitão América. No final da década de 1930, Eisner passou a criar para a Quality Comics Group, de onde saíram Doll Man e os personagens da série BlackHawk, ambientada na II Guerra Mundial. De lá, o autor começou a produzir histórias para suplementos dominicais?de jornais, época durante a qual criou The Spirit, o personagem que, mais do que apresentar Eisner ao mundo, foi, como ele admitiu mais tarde, uma forma de testar suas próprias ideias. Não apenas pela recepção da audiência, mas também pela execução técnica daquilo que ele imaginava ser uma forma mais apurada de narrativa em quadros. Ainda no texto de abertura do livro.

Um Contrato com Deus..., o autor declara: “Nos doze anos seguintes ao início da publicação de The Spirit desbravei esse território virgem em uma orgia de experimentações, fazendo de The Spirit uma plataforma de lançamento para todas as ideias que passavam pela minha cabeça”, escreve o autor, completando que, após o personagem, foi possível para ele perceber que seu trabalho centrava-se em um conceito essencial: “o de que o meio, o arranjo das palavras e das figuras em sequência eram uma forma de arte”.

Além de The Spirit, alguns outros títulos do cartunista se tornaram famosos como O Sonhador, de 1986, O Edifício, do ano seguinte, No Coração da Tempestade, escrita em 1991, e Invisible People (1991-1992). Mestre na arte dos quadrinhos, Eisner morreu em 3 de janeiro de 2005.


  
Diálogo com a sétima arte
O autor usou o cinema para levar “movimento” às páginas dos quadrinhos

A interseção com a estética do cinema foi outra contribuição de Will Eisner para o mundo das HQs.

O uso de cortes de imagens, close ups e sequências são algumas das influências observadas na obra do quadrinista. A isso somam-se outras características estéticas de suas representações visuais, como a recorrência ao jogo entre sombra e luz, a ousadia nos enquadramentos – que muitas vezes superavam o formato dos quadros, ocupando grandes espaços nas páginas.

O jornalista, ilustrador e especialista em história em quadrinhos Álvaro de Moya não poupa elogios a Eisner e compara a contribuição do mestre à do diretor norte-americano Orson Welles. “Ambos produziram obras de narrativas intrigantes, roteiros supercriativos, enquadramentos meticulosos e domínio da técnica de luz e sombra”, diz o quadrinista brasileiro. Nesse quesito, é curioso perceber que o início das filmagens de Cidadão Kane – primeiro filme de Welles e considerado marco de sua obra – tenha coincidido com o lançamento do personagem The Spirit no jornal Detroit News, em 1936.





Will Eisner no Sesc
Atividade na unidade Vila Mariana reúne ?conhecedores e fãs em torno de sua obra


Durante todo o mês de abril, o Sesc Vila Mariana levou ao público o acervo pessoal do criador de quadrinhos Álvaro de Moya sobre o criador de The Spirit na exposição Em Torno de Will Eisner. Moya, mais que fã e admirador da obra do quadrinista, tornou-se seu amigo. Eles se conheceram em 1958 e, desde então, Moya recebeu Eisner em todas as visitas que ele fez ao Brasil, mantendo contato até a morte de Will, em 2005. Na mostra, foram expostos 26 painéis com imagens e legendas do personagem The Spirit, desenhos originais, edições norte-americanas das revistas de Eisner e o vídeo com depoimento de Álvaro de Moya sobre a carreira do quadrinista e sobre sua relação com ele. Era também possível conhecer a página criada por Eisner especialmente para a edição brasileira de New York, a Grande Cidade (1989), onde o quadrinista homenageia o Brasil registrando quadros da vida em São Paulo. Na abertura da exposição, foi realizado um debate com a participação de Álvaro de Moya, do jornalista Jotabê Medeiros e do desenhista e artista gráfico Octavio Cariello. Os convidados discutiram a obra de Eisner e sua importância para o mundo das histórias em quadrinhos.