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De Minas Para o Mundo
Marco na história da MPB, o disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, completa 37 anos de revolução sonora
Foi no cruzamento entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, que um grupo de músicos começou a se encontrar e, ali mesmo, naquela esquina, nasceu um clube. Os sócios? Lô Borges, Beto Guedes, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Toninho Horta e os letristas Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges. Está reconhecendo a turma? É isso mesmo, foi nesse endereço que surgiu o Clube da Esquina, cujo primeiro disco, homônimo, completa 37 anos em 2009.
A história começou em 1963, quando o carioca Milton Nascimento – na época, mais conhecido como Bituca – e o cantor profissional Marílson, irmão de Lô e do poeta Márcio Borges, tornaram-se amigos. Todos eles moravam no mesmo edifício, o Levy, em Santa Tereza, onde vivia também o pianista Wagner Tiso. O gosto comum pela música levou Bituca, Marílson e Tiso a formar, na época, o Evolussamba, grupo que ensaiava em um quarto na casa dos Borges. No entanto, mesmo com tantos talentos reunidos, o Evolussamba não durou muito. Tiso e Milton formaram, então, outro grupo: o Berimbau Trio, com o baterista Paulinho Braga.
No repertório da nova banda, clássicos do jazz e da música norte-americana, uma pequena parte do leque de influências da turma mineira, como explica Márcio Borges, hoje diretor do Museu Clube da Esquina, localizado em BH. “Trazíamos em nossas bagagens Ângela Maria, Cauby Peixoto (…), Trio Los Panchos, boleros, twists e chachachás”, conta Márcio Borges no livro Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina (Geração Editorial, 1996), listando ainda Elis Regina, Jorge Ben, Dorival Caymmi, João Gilberto, Henry Mancini, Beatles, e Rolling Stones. “Ao mesmo tempo, fomos influenciados por isso tudo e por ninguém em particular”, garante o poeta, que se tornou parceiro de Milton na música depois de assistirem juntos ao filme Jules e Jim, do francês François Truffaut, em 1964.
Inspirados pela obra, os dois saíram do cinema e, quase em seguida, criaram suas primeiras músicas a quatro mãos. “Uma nova história começava a se escrever ali mesmo para nós, naquele instante. Saíram três músicas naquela noite: Paz do Amor Que Vem (Novena), Gira-Girou e Crença”, escreveu Márcio Borges. “Depois disso, as músicas continuaram saindo, uma após a outra, rapidamente.”
Enquanto Bituca ia formando seu repertório de um lado, de outro, Lô Borges, ainda adolescente, começava a tomar aulas de violão com Toninho Horta. Foi nessa época, meados dos anos de 1960, que surgiu outra figura na história: Beto Guedes. Alguns anos depois, já quase na virada da década, agregam-se Nelson Ângelo, Tavito Moura e os futuros integrantes do 14 Bis Flávio Venturini e Vermelho. Até que, no início da década de 1970, é lançado o álbum Clube da Esquina. “O nome foi ideia de Márcio, que, sempre ao ouvir a mãe, dona Maria, perguntar por onde andavam os meninos Borges, dizia: ‘Claro que lá na esquina, cantando e tocando violão’”, escreveu o jornalista Silvio Essinger em verbete sobre o movimento no site Cliquemusic (www.cliquemusic.com.br).
Início do sucesso
O primeiro sinal de projeção de um dos “sócios” desse clube veio com Milton Nascimento ainda em 1967. Nesse ano, o músico chamou a atenção ao ter três músicas de sua autoria incluídas no II Festival Internacional da Canção: Travessia, Morro Velho e Maria, Minha Fé. “Além dele, somente Vinicius de Moraes repetiu o feito, o que chamou a atenção da imprensa e do público para o compositor ainda desconhecido no cenário nacional”, narra o historiador musical Bruno Viveiros Martins na tese Clube da Esquina: Viagens Sonhos e Canções. No festival, Bituca foi eleito o melhor cantor e uma de suas composições, Travessia, ficou em segundo lugar.
Com a fama adquirida no festival, Milton conseguiu um contrato para gravar discos pelo selo Odeon, por onde lançou os álbuns Milton Nascimento (1967), Courage (1969), Milton Nascimento (1969) e Milton (1970), todos alvo de interesse no Brasil e no exterior (ver boxe Muito além da esquina). Na mesma época, Lô Borges, Beto Guedes, Tavinho Moura, Toninho Horta, Vermelho e Zé Eduardo faziam apresentações conjuntas em um espetáculo intitulado Fio da Navalha.
Em suas temporadas no Brasil, entre uma turnê internacional e outra, Milton tomou contato – e ficou maravilhado – com as músicas feitas por Lô, à época com 17 anos, como Equatorial (com Beto Guedes e letra de Márcio Borges) e Feira Moderna (com Beto Guedes e letra de Fernando Brant). “Bituca ouviu e me falou: ‘Dá vontade de gravar tudo o que ele faz’”, narra Márcio em Os Sonhos Não Envelhecem. Empolgado com o que ouvia, Milton teve a ideia de elaborar um disco duplo, conceitual, somando suas composições às de Lô.
Após certa resistência por parte da Odeon, o trabalho foi aprovado e acabou sendo produzido em uma casa em Mar Azul, uma praia de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, com a participação de praticamente todos os músicos da turma: além de Milton e Lô, contribuíram Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Nélson Ângelo, os integrantes do Som Imaginário – grupo que acompanhava as apresentações-solo de Milton formado por Tavito Moura, Luís Alves, Robertinho Silva, Fredera e Zé Rodrix –, Murilo Antunes, o percussionista Naná Vasconcelos, entre outros. “Ali, fizemos a maior parte do repertório”, explicou Milton Nascimento em entrevista à revista Rolling Stone de janeiro de 2008. “Entramos no estúdio, trouxemos alguns amigos de Minas, outros do Rio e gravamos o disco, todo feito a partir da amizade – que é o que me move. É por causa da amizade que faço música.”
Pop, jazz, rock, choro
Finalmente lançado em 1972, o disco Clube da Esquina, alicerçado em uma enorme e harmônica mistura de ritmos, representou uma forte ruptura com o que estava sendo feito até então na MPB. O jornalista Silvio Essinger define o álbum como um misto de “bossa nova, Beatles, toadas, congadas, choro, jazz, folias de reis e rock progressivo, tudo reunido numa música original, de apelo universal”. Os temas abordavam de forma poética a situação política vigente na época, no auge da ditadura militar brasileira. Embora sem atingir resultados significativos de vendas na época, hoje, o trabalho é aclamado mundialmente como um dos mais importantes já lançados na América Latina. No livro 1001 Discos para Ouvir Antes de Morrer (Lisma, 2006), o crítico britânico Robert Dimery o apresenta como “mais que ‘apenas’ o equivalente no Brasil ao ‘Sgt. Pepper’s’, dos Beatles”.
Depois desse álbum, os músicos participantes viram a carreira alcançar um novo patamar. Beto Guedes e Lô Borges consolidaram-se como importantes nomes da MPB, Toninho Horta partiu para a música instrumental e Flávio Venturini fundou a banda de rock progressivo O Terço e, mais tarde, o 14 Bis. Milton, por sua vez, prosseguiu fazendo sucesso no Brasil e no exterior, lançando os elogiados álbuns Milagre dos Peixes (1973), Minas (1975), Native Dancer (1975) – feito em conjunto com o prestigiado saxofonista de jazz Wayne Shorter – e Geraes (1976). A carreira internacional de Milton fez despertar uma inusitada admiração na música pop internacional. Bons exemplos são a cover que a islandesa Björk fez de Travessia – com ela cantando em português – e a parceria entre Milton e o grupo britânico ícone dos anos de 1980 Duran Duran na música Breath After Breath, presente no disco da banda The Weddin Álbum, de 1993.
Em 1978, os integrantes originais do Clube da Esquina reuniram-se novamente para fazer um novo disco, nos mesmos moldes do anterior. O resultado é Clube da Esquina 2 – formalmente assinado apenas por Milton Nascimento, diferentemente do anterior, em que a autoria é dividida com Lô Borges –, que ganhou o “auxílio luxuoso”, como diria Luiz Melodia, de Chico Buarque, Danilo Caymmi, Elis Regina, César Camargo Mariano e Francis Hime. Foi o último registro conjunto de uma geração que deu “um tratamento urbano, sofisticado e moderno ao cancioneiro regional característico de Minas Gerais”, como conclui o historiador musical Luiz Américo Juá Júnior, “redefinindo o que é a música popular urbana brasileira”.
A apresentação de Milton Nascimento no II Festival Internacional da Canção, em 1967 não entusiasmou apenas o público, que cantou a plenos pulmões Travessia, como conta Márcio Borges em seu livro Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina (Geração Editorial, 1996). “(...) lá no palco a garra da interpretação do meu irmão [Lô Borges] transformava o rugido da multidão num uníssono emocionado, feito de milhares de vozes.” Convidado para assistir ao evento, o produtor norte-americano Creed Taylor, empolgado com a musicalidade de Milton, acertou um contrato para que ele gravasse três discos no exterior. “Milton viajou no ano seguinte, gravou dez músicas – inclusive Travessia, cantada em inglês e português para o LP Courage [1969], com arranjos de Eumir Deodato, participou de festivais de jazz e fez shows no México”, conta o produtor Zuza Homem de Mello no livro Era dos Festivais (Editora 34, 2003).
Desde então, a carreira internacional de Milton não parou: cantou em diversos festivais, gravou discos com astros do jazz internacional, como Wayne Shorter e a cantora Sarah Vaughn, entre outros, e gravou o disco Angelus (1993), que conta com diversos convidados do primeiro time da música internacional, como Ron Carter, James Taylor, Herbie Hancock e Jon Anderson, vocalista da banda de rock progressivo Yes. Em fevereiro de 1997, ganhou o Grammy de melhor artista na categoria world music com o álbum Nascimento.
Além de Milton, outros músicos do Clube da Esquina atingiram sucesso fora do Brasil, como o saxofonista Nivaldo Ornellas e o baterista Robertinho Silva. Já Toninho Horta foi eleito o melhor guitarrista do mundo pela revista britânica Melody Maker em 1977 – ficando em sétimo lugar em 1978 – e atualmente mora e trabalha nos Estados Unidos.

O Sesc São Paulo aproveitou o aniversário de 37 anos do disco Clube da Esquina para fazer uma merecida homenagem aos artistas que ajudaram a redefinir os rumos da MPB. De 19 de março a 19 de abril, a unidade Pinheiros realizou o projeto Clube da Esquina – Nas Minas da Música, com debates, exibição de filmes, oficinas, atividades para crianças, além, claro, de shows com os principais ícones da turma que colocou Minas Gerais no mapa da música mundial. “Quisemos fazer uma programação bem completa”, explica Débora Rodrigues Teixeira, do núcleo de apresentações artísticas da unidade. “Nossa ideia não é falar apenas do movimento em si, mas também sobre tudo que há ao redor disso.” Um exemplo disso é a exibição do filme Jules e Jim (1962), do cineasta francês François Truffaut, que influenciou as primeiras parcerias entre Márcio Borges e Milton Nascimento. “A exibição do filme foi ideia do próprio Márcio, que colaborou com o projeto junto com o pessoal do Museu Clube da Esquina, situado em Minas”, informa Débora. Durante o evento, o segundo andar do Sesc Pinheiros abrigou uma exposição de fotos, capas de discos, instrumentos musicais, documentos, manuscritos e outros objetos dos artistas que participaram do Clube.
A programação de shows reuniu os principais ícones do Clube da Esquina em parcerias com outros músicos mineiros: Flávio Venturini subiu ao palco com o pianista André Mehmari, Beto Guedes se apresentou com Telo Borges, Túlio Mourão e Nonato Luiz também dividiram o microfone, assim como Celso Moreira e Chico Amaral. Um dos grandes destaques, no entanto, foi a parceria no palco entre Lô Borges e Milton Nascimento, para recriar, ao vivo, as músicas de Clube da Esquina. “Foi uma celebração”, conta Débora. “Todos os músicos ficaram emocionados e agradecidos.”
