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Depoimento

Corpo em evidência

A intérprete, criadora e pesquisadora de dança Vera Sala fala das múltiplas relações do corpo com o ambiente

 

Embora desenvolva um sofisticado trabalho de pesquisa sobre as relações do corpo com os ambientes e lugares em que ele habita, a criadora e intérprete de dança Vera Sala não acredita que a arte contemporânea seja uma expressão que abriga manifestações distantes do grande público. Vera prefere observar um contexto no qual a produção artística atual vem, segundo ela, rompendo antigos laços. “Sinto que muitos trabalhos contemporâneos estão quebrando essa noção de espetáculo no sentido de uma coisa que a pessoa recebe passivamente”, disse em depoimento exclusivo à Revista E. “Acho que tudo que traz uma nova proposta, como essa de o público se relacionar com a obra, demora um tempo para ser absorvido.” Graduada em fisioterapia pela Universidade de São Paulo (USP), curso que concluiu em 1975, Vera fez uma clara opção pelo corpo e suas múltiplas possibilidades de relação e expressão. Mesmo tendo se afastado do estudo do movimento humano na área da saúde, aprofundou-se em explorar o mesmo fenômeno, só que no campo da arte. “Instiga-me muito pensar no que é o corpo hoje num recorte de uma grande cidade, de uma metrópole”, esclarece. A seguir, trechos da conversa na qual a artista falou mais sobre sua linha de pesquisa e também sobre o projeto que apresenta até 3 de maio no Sesc Ipiranga, Pequenos Fragmentos de Mortes Invisíveis, composto de instalação coreográfica, ensaio aberto e performances.

Arte contemporânea

Grande parte da produção contemporânea começa a trazer um outro jeito de o público se relacionar com as obras. Ultimamente tenho pensado muito nessa questão do espetáculo, da espetacularização [do trabalho artístico]. Sinto que muitos trabalhos contemporâneos estão quebrando essa noção de espetáculo no sentido de uma coisa que a pessoa recebe passivamente, algo como: “Ah, eu vou lá para ser entretido”. Acho que grande parte do que vejo de trabalhos de dança contemporânea pede outro tipo de relação com o público, acho que uma relação um pouco mais ativa, que não é só dessa espetacularização, mas sim de algum outro tipo de elaboração em relação à obra. Eu, por exemplo, tenho trabalhado com instalações. Nas primeiras, ainda tinha uma separação maior do espaço, do ambiente onde meu corpo estava, com o público. Hoje, isso já está diferente. Nessa de agora [refere-se à instalação apresentada no Sesc Ipiranga], o público divide o mesmo ambiente que os bailarinos. A gente convive no mesmo espaço, é uma ambiência que estabelece relações. Cada pessoa que está lá vai poder escolher a maneira como ela quer observar, de que ponto de vista ela quer observar, se ela quer se locomover, se ela quer parar e observar um pedaço do todo. O espectador vai criando outro tipo de olhar. Acho que tudo que traz uma nova proposta, como essa de o público se relacionar com a obra, demora um tempo para ser absorvido. Se a gente olhar para a arte do século passado ou retrasado, você vai ver isso. E não só na dança. Se você pensar que um dia Van Gogh [1853-1890, pintor nascido na região dos Países Baixos, noroeste da Europa] foi taxado de uma pessoa que não sabia pintar, um artista que nunca vendeu um quadro [em vida] e hoje sua obra é superdiscutida e vale milhões, não sei se dá para dizer que o público se distancia da dança contemporânea, não acredito nisso. Acho, sim, que ela está mudando os parâmetros do relacionamento das pessoas com as obras. Mas não seria nem uma questão da dança propriamente. Porque se você pegar música contemporânea, por exemplo, ela também tem as mesmas questões. Ou então as artes plásticas. Vá hoje a uma Bienal, a uma galeria, você não vê uma fila de 500 pessoas na porta. Então, penso que são produções que trazem novas questões, que levam um tempo para o público entender como ele se relaciona com aquilo. Isso demanda um tempo, demanda muito contato com várias obras diferentes. É um tempo de se relocalizar em relação a esse conjunto de obras.

Corpo e lugar

Não dá para pensar o corpo fora de um ambiente. Existe um conjunto de relações que o corpo estabelece no ambiente. Então, claro, se você olhar para um corpo da cidade de São Paulo – com toda essa ambiência que existe e com uma série de informações –, ele vai ser diferente de um corpo que vive no campo. Por exemplo, a gente sai às ruas e se alguém se aproxima você tem um sobressalto, porque existe a possibilidade de alguma violência. Você está no seu carro e se passa alguém do seu lado já leva um susto. Por isso esse ambiente começa a modificar os tipos de relação [do corpo com o lugar onde ele está]. Você vê coisas no seu cotidiano que afetam e modificam o seu corpo. Então, não dá para separar o corpo do ambiente onde ele está e não dá para desconsiderar as relações que ele estabelece nesse ambiente – verificando sempre que existem ambientes dentro de ambientes, esse conceito é uma coisa dinâmica, é um conjunto de relações. O corpo em uma grande cidade como São Paulo carrega, de formas diferentes, essas relações que se estabelecem numa metrópole com as características que tem a nossa – ou que têm outras metrópoles ou ainda do corpo que está no mundo de hoje, com todas as conexões e fatos e coisas que existem. Então a gente está aqui em São Paulo, que, por sua vez, está inserido num lugar maior. E, como eu disse, não é um único ambiente, mas sim camadas, uma rede de ambiências por onde a gente circula, e essa rede forma esses diversos ambientes. O corpo é composto das relações e das informações que esse ambiente traz. É uma troca, ou seja, o corpo ser afetado por esse ambiente já resulta numa qualidade de ação sobre esse próprio ambiente também, o corpo também modifica o que está em volta. Por isso, quando falo em relação, não é apenas de um lado para o outro.

Reflexões

“Não dá para pensar o corpo fora de um ambiente. Se você olhar para um corpo da cidade de São Paulo – com toda essa ambiência que existe e com uma série de informações –, ele vai ser diferente de um corpo que vive no campo”

Eu diria que, como questões mais gerais do meu trabalho, tento mostrar as relações possíveis entre o corpo e o ambiente.Mas não de uma forma narrativa, não estou narrando nada dessas possibilidades de relação porque elas são infinitas. Mas me instiga muito pensar no que é esse corpo hoje num recorte de uma grande cidade, de uma metrópole, com problemas, com questões políticas, econômicas, sociais – ou o que é esse corpo no mundo, num recorte mais geral. O que é esse corpo hoje? E sempre lembrando que não se trata de uma narrativa, não é a descrição do trabalho. São pontos de partida e de reflexão. E, nesse trabalho especificamente [apresentado no Sesc Ipiranga], o ponto de partida de reflexão é essa infinidade de informações, esse bombardeio de questões políticas, econômicas, sociais, a violência nas formas mais explícitas e implícitas, a própria violência do poder sobre o cidadão. O que isso gera no corpo? Em alguns momentos é um esvaziamento pelo excesso. Então, eu parti desse esvaziamento como uma ação por esse excesso. Não é uma paralisia, mas é um esvaziamento no qual você procura outra possibilidade de existência. Essa foi a reflexão inicial para esse trabalho. É lógico que na hora em que você começa a construir esse ambiente de instalação, o corpo vai gerando as suas próprias questões, que vão se gerando a partir dessa reflexão inicial, que é esse esvaziamento pelo excesso. E o que é isso? Aonde isso leva? Que tipo de ação isso produz em determinado momento? Que tipo de plasticidade esse corpo tem que ter para ele sobreviver nesse tipo de ambiente?