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Encontros
por Fabio Zanon
”Música é um pouco como alimentação”, diz o violonista Fabio Zanon ao explicar que o gosto tanto pela comida quanto pela música depende do hábito. “Acho importante trazer alternativas para dentro de casa.” Porém, no caso do músico, essa afirmação serve também para sintetizar o que o universo das notas representa para ele: algo de essencial, sem o qual não se vive. Zanon começou seus estudos de violão aos oito anos por influência do pai. Aos 13, deu o primeiro passo rumo a uma carreira profissional ao iniciar aulas com o célebre professor do instrumento Antônio Guedes. Depois disso, vieram outros mestres, como Henrique Pinto e Edelton Gloeden. Em 1987, graduou-se em música pela Universidade de São Paulo (USP) e, três anos depois, radicou-se em Londres, na Inglaterra. Além de frequentar as aulas de Michel Lewin, professor da Royal Academy of Music – Academia Real de Música – e de outra fera das cordas, Julian Bream, ganhou o prêmio Francisco Tárrega, na Espanha, e foi escolhido o melhor intérprete na 14ª edição do concurso da Guitar Foundation of America (GFA) – Fundação Americana de Violão. A conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E valeu como uma aula sobre a história e as particularidades do violão em suas mais diversas versões e em diferentes culturas. A seguir trechos.
Violão no mundo
O violão é um instrumento que, dentro do círculo de música clássica, sempre foi malvisto e mal aceito. Isso acabou criando uma personalidade diferenciada para ele, pela própria necessidade de se impor de alguma forma.
O violão é um instrumento muito presente nas culturas latinas e na norte-americana, mas sempre com uma característica diferente. Na Itália ele tem uma tradição tão forte quanto na Espanha, só que na Espanha ele acabou tendo um perfil mais marcante, por conta da música flamenca. Na França a mesma coisa, uma boa parte dos violonistas franceses vai para a execução de músicas de época. Já no Leste Europeu, o violão está sempre associado à música folclórica. Nos Estados Unidos você tem o violão finger style, uma porta de entrada para a música tradicional do meio-oeste, mesmo um pouco para o jazz, pois acaba sendo uma porta de entrada para a guitarra – embora o jazz seja baseado em piano e sopro.
Na Inglaterra o instrumento teve um boom nos anos de 1960 e por duas razões: primeiro por causa das personalidades marcantes do violão clássico e segundo porque muita gente começou a tocar por causa do rock de bandas como Led Zeppelin e Pink Floyd, que tinham solos de violão. Já aqui no Brasil teríamos que fazer um histórico, são muitas as razões [para o sucesso do violão]. Foram os jesuítas que trouxeram o violão para cá em 1540. Os instrumentos de cordas dedilhadas pegaram. E aqui ainda não foi traçada uma história muito precisa, ocorre um descaso com isso. É muito difícil estudar a organologia [disciplina que trata da descrição e da classificação de qualquer instrumento musical] do violão e de instrumentos correlatos no Brasil. O violão que a gente usa para tocar música popular é a guitarra francesa do século 19.?O cavaquinho é a guitarrilha portuguesa. E a viola caipira é um instrumento meio híbrido, e quase idêntico à guitarra barroca da Espanha, da Itália, com cinco cordas duplas. Cada um desenvolveu seu estilo de tocar. No século 19, ficou bem claro que a viola caipira – ou viola de arame – acabou associada ao meio rural, e o violão popular é símbolo de música urbana. Mas isso está se revertendo um pouco, hoje você tem até músicos eruditos pregando o uso da viola caipira. E aí tem a viola de coxo, que é uma invenção nossa e que é muito popular no Pantanal. É um tronco de árvore cavoucado e que forma um violão de três cordas, com uma tampa colada. O recurso é mínimo e eles fazem uma coisa incrível tocando.
O violonista Fabio Zanon esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 19 de março de 2009 |
Cisão
É natural que tenha havido uma cisão entre o violão popular e o clássico. Antes o violonista se sentia envergonhado diante do pianista clássico, por exemplo. Tinha muita piadinha contra o violão no ambiente acadêmico, coisa que hoje diminuiu muito. Todo mundo tinha urticária?de dizer que era violonista popular. E agora isso melhorou um pouco. Embora ainda haja isso de pessoas que apreciam o violão clássico e não gostam do violão popular – e vice-versa. Mas hoje a divisão já melhorou.
Agora, comentando com o pessoal da música instrumental, eles não sentem que o cenário está positivo. Tem uma alta histórica no nível de criação, mas estão em baixa a divulgação e os cachês. É um paradoxo. O Ulysses Rocha, que faz um trabalho experimental com rock também, só consegue se divulgar pela internet – na mídia não se vê nada. Quem vai levar um violão solista para tocar no Faustão? Está muito fora da grande mídia. O lance agora é procurar públicos mais cativos, porém, menores. E, ao mesmo tempo, o volume de boas gravações com muita variedade é enorme, com arranjos fenomenais. Por exemplo, o pessoal do choro, que percebeu que o mercado deles pode ser mais amplo. Hoje, os chorões não ficam tocando somente aquele choro de museu, com Brasileirinho e Pedacinho do Céu, mas sim um choro de composição. O Rogerinho 7 Cordas acompanha pagode e samba muito bem. Ele trabalha com Beth Carvalho e Zeca Pagodinho.
No Rio de Janeiro, onde moram o Yamandu Costa, o Zé Paulo Becker, o Marco Pereira, entre outros, o momento é de expandir o mercado. O violão cria pontes, cria sinapses. Pessoas que vêm de diversas áreas se encontram no violão. Eu sou um violonista clássico, e acho que qualquer movimento de divulgação da música clássica, hoje, tem que passar pelo violão. Aqui em São Paulo e no Rio as orquestras são dominadas por uma mentalidade muito germânica, quando na verdade a via de trazer público para a música clássica tinha que ser a via latina, na minha opinião. É um público muito aberto.
Trash music
Você tem que partir do que o aluno traz para você como bagagem musical. Mas hoje em dia [o aluno] tem que ler música, nisso a gente tem que ser intransigente. A partir do momento em que ele aumenta a percepção, você vai agregando conhecimento. Aí dá um up grade de complexidade. Um menino roqueiro de 11 anos pode partir posteriormente para o rock progressivo, ou partir para a música brasileira. Mas tem gente que tem aversão à música brasileira, e o professor precisa ser aberto para entender as pressões de grupo, gostos, preconceitos. Mas a gente precisa muito do cara que dá aula por 10 reais a hora e faz esse trabalho com iniciantes. Quando eu fiz faculdade não tinha música popular, era um preconceito enorme, e hoje está nas faculdades. Mas é importante também que o profissionalismo se propague a ponto de termos professores melhores dando aulas para iniciantes.
Música é um pouco como alimentação. O fast food não é exatamente o melhor da alimentação, mas a gente faz festinha de criança em lanchonete desse tipo porque muita gente tem uma dieta muito ruim. Com música é a mesma coisa. Tem a questão do industrializado, que é mais barato do que o artesanal. Quando a criança só quer comer comida trash, é porque isso vem do paladar do adulto. A mesma coisa com música. Há a ideia de que você não pode se divertir com nenhuma espécie de música que não seja Ilariê. Acho importante trazer alternativas para dentro de casa.
“Antes o violonista se sentia envergonhado diante do pianista clássico (...). Tinha muita piadinha contra o violão no ambiente acadêmico, coisa que hoje diminuiu muito”