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O casal 20 da literatura brasileira

Bate-papo com Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti,
unidos pelo casamento e pela arte

CECÍLIA PRADA

A expressão "casal 20" foi usada nas crônicas sociais, décadas atrás, para designar um casal que somasse duas notas 10, em elegância, beleza ou coisas assim. Vale recordá-la agora, em relação à literatura – Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti vivem um casamento de muito amor desde 1971, cada qual com produção literária muito personalizada, abundante e importante, mas unidos no cotidiano familiar e na sua grande aventura existencial. Partilham até o mesmo ano de nascimento: 1937. Affonso, nascido em Belo Horizonte, de infância pobre, carregou marmitas, trouxas de roupa para lavadeiras, vendeu balas no cinema. Trabalhou em bancos e jornais para custear os estudos universitários. Conta hoje com mais de 40 obras publicadas, de poesia, ensaio e crônicas, e mais cerca de 30 de autoria conjunta com outros autores. Lecionou em diversas faculdades do Rio de Janeiro e passou longos períodos como professor visitante em universidades estrangeiras. Recebeu vários prêmios literários importantes, inclusive o da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) pelo "conjunto de obra". Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1990 a 1996.

Marina, nascida em Asmara (Eritréia) de pais italianos, passou seus primeiros anos naquele país e depois foi morar na Itália, onde ficou até 1948, quando veio definitivamente para o Brasil. De família abastada, viveu no Rio de Janeiro sua adolescência, no imenso casarão do Parque Lage, que pertencia a sua tia, uma famosa cantora lírica. Como artista plástica, vem realizando desde a década de 1950 exposições, individuais ou coletivas, e trabalhando como ilustradora. Em 1962 ingressou no jornalismo, no "Jornal do Brasil". Lançou seu primeiro livro, Eu Sozinha, em 1968, e conta hoje com 43 obras publicadas, de crônicas, contos, poesia e literatura infanto-juvenil. Recebeu, de 1979 até hoje, 21 premiações literárias, entre as quais quatro vezes o Prêmio Jabuti. Em 1994 foi agraciada com dois Jabutis simultaneamente, pelo livro de poesia Rota de Colisão e pelo juvenil Ana Z., aonde Vai Você?

PROBLEMAS BRASILEIROS – Affonso, em seu primeiro livro, o ensaio O Desemprego do Poeta, de 1962, você expressava o desencanto e a frustração do poeta diante do mundo. Como se desenvolveu esse sentimento em sua carreira, até hoje?
Affonso
Toda a minha trajetória está marcada por esse conflito inicial, que não é só meu. Curioso é que às vezes se referem a esse livro como "O Desemprego da Poesia". Não, é "do poeta". A poesia tem o seu emprego diversificado e permanente. O poeta é que está tendo de reformular seu papel. Na Irlanda antiga, como narra Robert Graves em A Deusa Branca, o "mestre de poesia" sentava-se próximo ao rei à mesa e tinha o privilégio, que ninguém além da rainha usufruía, de usar seis cores diferentes em sua vestimenta. Minha luta tem sido pela reinserção do poeta/poesia no cotidiano e na história. Minha obra tematiza isso, bem como a participação que tive nos movimentos de vanguarda dos anos 1960, no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. E a organização da "Expoesia", em 1973, reunindo 600 poemas no Rio de Janeiro, a produção de poemas para a televisão e a luta contra a ditadura através da poesia também dão notícia de tudo isso.

PB – Stendhal dizia que a política, na literatura, era como um tiro de pistola no meio de um concerto. Mas você conseguiu firmar sua posição política na obra literária sem desmerecê-la. Pode comentar?
Affonso – Uma das coisas que a gente discutia nos anos 1960, quando havia aquela efervescência sobre as "reformas de base" no governo Jango, era o dilema sartriano, segundo o qual existe uma armadilha no êxito/fracasso. Artisticamente, você pode chegar mais rápido ao "êxito" através do "fracasso" formal, ou seja, fazendo uma obra na linha do trivial, do lugar comum, da repetição ideológica, fazendo a literatura de consolação. Ao contrário, optar por algo mais rigoroso pode não colocar o artista, de imediato, na boca do povo. Até mesmo porque, como dizia Randall Jarrell, é mais fácil um poeta acordar famoso por ter matado a mulher do que por ter escrito um poema. São opções. A vida é a arte das opções. Um dos poemas mais belos de Robert Frost é aquele em que ele diz que à sua frente abriram-se dois caminhos, um era mais fácil, ele escolheu o mais difícil. E essa escolha faz toda a diferença. Aliás, nos Estados Unidos, estivemos, Marina e eu, naquele mesmo bosque em que ele costumava andar, e esse poema está lá, inscrito em madeira, um marco no meio da floresta.

PB – É nesse sentido que tem falado, então, no "fracasso da minha geração"?
Affonso – Clarice Lispector, nossa maior filósofa-romancista, dizia que a história de uma pessoa é a história de seu fracasso, através do qual ela/ele acaba construindo sua vida. Ela dizia também: "O erro é um dos meus modos fatais de trabalho". No caso de nossa geração, tivemos um formidável fracasso. Íamos salvar o mundo. E falhamos. A coisa era certíssima, eram favas contadas, a história, diziam, estava do nosso lado, era um trem no trilho que a gente pegava, e pronto, chegava lá. No caso brasileiro, havia uma agravante: não apenas nos disseram que Deus é brasileiro, que o Brasil era o país do futuro, como pegamos o governo JK, que foi aquele arrebatamento. Recordo-me que fui a Brasília, durante a construção, 12 vezes. Vi uma cidade e um país saírem do chão. Nossa geração só aguardava a apoteose que os teóricos socialistas nos prometeram no tal "Estado dialético". Mas, como se sabe, usando linguagem de carnaval, houve a "dispersão na apoteose". Lembro-me de ter encontrado Ivan Otero, que vinha do exílio na Polônia, e caminhando na praia ele dizia: "Lembra daquele seu poema ‘Outubro/ ou nada’? Pois é, deu ‘nada’". Claro, a piada é boa, mas não é bem assim. É com o "nada" que começa a pretensa sabedoria.

PB – Outra coisa que costuma dizer, "O que há de novo na poesia é a internet"... É essa mesmo a sua opinião?
Affonso – Há qualquer coisa em movimento por aí. Não está ainda muito claro. Houve um deslocamento da "porta de livraria" para o portal eletrônico. Mas o mais fascinante é que os recitais de poesia continuam tendo êxito. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, tem o "Corujão da Poesia", que reúne durante toda a noite, numa livraria, os poetas que seguem falando seus poemas até de manhã cedo. Os festivais de poesia a que compareço, como o de Medellín, na Colômbia, congregam milhares de pessoas, e os poetas se sentem como cantores de rock diante de um público excepcional. Há poucos anos, durante o centenário de Neruda, veja só, acabei falando poemas, lá em Santiago do Chile, mas de dentro da cabine do condutor do metrô, e todo mundo no trem os ouvia. Quer dizer, a poesia continua moderníssima e primitivíssima. Aliás, celebrando 70 anos fiz um recital de poesia num lugar bem primitivo – a gruta da Lapinha, lá em Minas Gerais.

PB – Sua atuação como presidente da Fundação Biblioteca Nacional marcou época, com a criação de vários programas de incentivo à leitura. Qual o panorama atual desse setor, no Brasil?
Affonso – Foi uma experiência fascinante estar à frente da Biblioteca Nacional, criar o Sistema Nacional de Bibliotecas, o Proler [Programa Nacional de Incentivo à Leitura], recuperar o prédio histórico, informatizar a instituição, desenvolver uma política de exportação de autores e livros, e, sobretudo, constatar, 12 anos depois, seja em Roraima ou em Paraopeba [MG], em Mossoró [RN] ou em Londrina [PR], que as pessoas que participaram desse grande projeto de transformar o Brasil num país de leitores continuam ativas. Hoje existem já várias teses prontas e em andamento relatando o que foi esse momento verdadeiramente singular na história das bibliotecas e da leitura no Brasil.

PB – Toda a sua vida parece ter sido caracterizada por uma participação vibrante em causas e movimentos... Você foi um adolescente muito rebelde?
Affonso – Acho que fui sempre um "rebelde com causa", ao contrário de James Dean, daquele filme famoso [Rebel without a Cause, lançado no Brasil como Juventude Transviada]. Primeiro me escolheram, entre seis filhos, para ser "ministro de Deus" – meus pais eram evangélicos –, e eu ficava pregando nas esquinas lá de Juiz de Fora e da Zona da Mata, tentando salvar o mundo. Em torno de 1960, participei das agitações da União Nacional dos Estudantes – nossa revolução socialista ia salvar o mundo. Não salvamos. O mundo não quer ser salvo. E então gradualmente fui me libertando de todo messianismo, seja na religião, na política, nas artes. E aí, um dia, saí para ver o mundo. De repente, estava em meio aos hippies de San Francisco, marchando contra a Guerra do Vietnã, experimentando toda a desrepressão erótica, política e estética da década de 1960. Veio a ditadura e vi nossa geração se dispersando: "Um terço se exilou, um terço se fuzilou, um terço desesperou/ e nessa missa enganosa/ houve sangue e desamor". E veio a abertura – de tudo isso meus textos falam – e vieram outras perplexidades. Hoje estamos tendo a chance de ver essa coisa espantosa: os "marginais" de ontem estão no poder. Estamos tendo de rever os conceitos de centro e periferia.

PBHá alguma coisa de que se orgulhe especialmente?
Affonso – Vou botar também em meu currículo: salvei a vida de muitos jovens americanos que estavam condenados a morrer no Vietnã. O estudante vinha e me dizia: "Professor, se eu tirar menos de 7 vão me mandar para a guerra". Claro, eu ajustava a nota. Não ia manchar de sangue o quadro-negro da história da minha sala.

PB Qual seu último livro publicado? Em que trabalha agora?
Affonso – Publiquei Tempo de Delicadeza (L&PM), cansado de tanta violência e em resposta à realidade que estampei antes em "Nós, os que Matamos Tim Lopes". Saiu também O Homem e Sua Sombra (Alegoria), que acaba de ganhar traduções para o francês e o inglês. Mas este ano será lançado um livro que é algo que me levou anos de estudo: O Enigma Vazio – Impasses da Arte e da Crítica, em que aprofundo a análise das aporias da arte de nosso tempo. Tomo um viés até agora menosprezado, que é discutir o "discurso", os "conceitos" em que se baseia essa arte que se pretende "conceitual". Faço também uma análise das alucinações críticas de notáveis pensadores como Octavio Paz, Jacques Derrida, Michel Foucault, Roland Barthes, Jean Clair e outros. As artes plásticas são o grande "sintoma" para entender nosso tempo.

PBAos 70 anos, olhando para a vida que se estende atrás de você, concorda com o que dizia Schopenhauer – que na idade avançada podemos ver que houve um desenho, um plano, como se nossas vidas fossem"um único grande sonho de um único sonhador, e no qual todos os personagens do sonho também sonham"?
Affonso – Eu diria, como Heidegger, que minha obra é o desenho de um projeto poético-pensante. Seja na poesia, na crônica ou no ensaio, estou mapeando minha perplexidade diante do meu tempo. Não estou produzindo metáforas simplesmente, estou pensando sistemicamente. Se alguém se debruçar sobre o que escrevi, terá notícia das aporias e buscas de solução de um homem que viveu seu tempo de maneira honesta, poética e desesperadamente.

PB – Marina, ouve-se muito dizer que o movimento feminista morreu, está superado. Não tem por que existir, pois hoje as mulheres já se equipararam aos homens. Concorda com isso?
Marina Colasanti – O movimento feminista foi desmobilizado em obediência a diretrizes internacionais do movimento de mulheres. Podemos localizar essa mudança a partir do encontro de Beijing. O problema é que a evolução na conquista dos direitos das mulheres não era a mesma em todos os países. Os avanços que o chamado Primeiro Mundo havia obtido eram, provavelmente, suficientes para eles. O que nós havíamos conseguido, embora fosse muito, não era suficiente – apesar de não ser respeitada, temos uma constituição moderníssima, das mais avançadas do mundo, no que diz respeito a mulheres e crianças. Assim mesmo, tudo parou. Não foi apenas devido às diretrizes. Houve um esgotamento das palavras de ordem, do espírito utópico universalista, do enfrentamento homens/mulheres que o movimento havia criado. Rezemos para que seja apenas uma pausa histórica. Pois, se é verdade que o avanço prossegue agora quase automaticamente, é certo também que em países como o nosso, em que alguns problemas são prementes, o avanço automático é lento e deixa áreas inteiras a descoberto.

PBVocê iniciou sua vida profissional como artista plástica. Como passou ao jornalismo e depois à literatura?
Marina – Não passei de uma coisa a outra: somei. Continuo me sentindo artista plástica. Agora mesmo estou pregada na prancheta, desenhando, fazendo as ilustrações de um livro meu infantil. Meu olhar é de artista plástica, meu amor por arte continua inarredável, e aliás está escancaradamente presente na minha poesia. Mas eu não teria podido me sustentar como gravadora, que era o que fazia quando fui para o "Jornal do Brasil". Deslizar para o jornalismo foi o que a vida me ofereceu de melhor como solução. De jornalista a escritora foi ainda mais natural, sem ruptura alguma, porque eu trabalhava com jornalismo cultural, era redatora, cronista. Ao escrever o primeiro livro não tive de decidir categoricamente: vou ser escritora. Tive de decidir: vou escrever um livro. E não é a mesma coisa. Só um pouco mais adiante, depois de publicada a segunda obra, uma coletânea das crônicas, e começando a terceira, assumi a escrita como rumo definitivo.

PBTeve de abrir mão de alguma coisa?
Marina – Pela escrita tive de deixar algumas coisas de lado. A mais considerável talvez seja a publicidade. Fui publicitária durante vários anos e com prazer, porque gosto da profissão. Mas chegou um momento em que tornou-se imperioso escolher. Não ia ser possível atender a contento o trabalho da agência, o de imprensa e o da literatura. Isso sem falar em família, casa, filhas, aquilo. E na hora da escolha abri mão logo do que melhor me pagava! Não por denodo, como se dizia outrora, mas porque, animicamente, era o que menos me alimentava. A publicidade exige muito, pouco dá e nada deixa. E eu sou, por temperamento, uma pessoa que precisa de permanência. Ver o trabalho todo desaparecer logo depois de ter sido feito era para mim desolador.

PBDos 43 livros que publicou até hoje, quais você recomendaria para quem quisesse mergulhar em sua obra?
Marina – Eu indicaria um dos livros de contos de fadas – Uma Idéia Toda Azul ou 23 Histórias de um Viajante, que são respectivamente o primeiro e o mais recente. Um de poesia, Fino Sangue, o mais recente – a gente tem sempre a esperança de estar melhorando. Um sobre a questão feminina, A Nova Mulher, o primeiro, mas está esgotado, assim como quase todos os outros sobre o tema. Se me fosse dado indicar mais um, ficaria na dúvida entre E por Falar em Amor, um ensaio que expõe bem meu pensamento sobre esse tema que tantas vezes retomei, ou Fragatas para Terras Distantes, minhas idéias teóricas sobre literatura e sobre o meu fazer. E a minha atuação política. Acho que com isso, sem se esgotar num mergulho, um leitor saberia sobre qual estrutura se apóia o restante da construção.

PB Você e Affonso escreveram também vários livros em conjunto. Como foi essa participação?
Marina – Todo casal com tantos anos de percurso em comum é excepcional. Hoje em dia, a própria idéia de casal estável vai se tornando excepcional. Nós somos um casal que tem um fator de coesão muito importante: a profissão. Sempre foi bom fazer livros juntos. Pena que sejam poucos. O primeiro, uma tradução de um livro de Barthes sobre o desenhista Erté, foi pura complementação: eu era a tradutora, ele o teórico. O segundo, Imaginário a Dois, devemos à editora, que o idealizou e fez a escolha dos textos. E o terceiro – Agosto 91, foi feito a quatro mãos mesmo, cada um atuando como copy desk do outro...

PBFoi quando vocês viram, literalmente, o comunismo acabar?
Marina – É verdade. Fomos testemunhas da história, mesmo. Estávamos em Moscou em agosto de 1991. Bem ao lado do Kremlin, vimos os tanques passando, e o Affonso até ironizou: "Será um golpe de Estado?" Era. Mais do que isso: era o fim do comunismo, do império soviético. Largamos o encontro internacional de diretores de bibliotecas nacionais, passamos uma semana em meio às barricadas e dentro do próprio Kremlin, pois estava programada uma recepção com Gorbatchov. Mas ele estava preso na Geórgia, não pôde comparecer. Entramos no palácio comboiados por tanques e comemos sanduíches, caviar e tomamos refrescos, olhando por entre as cúpulas e torres aquele dia tão histórico. Nas muitas viagens que fizemos tivemos experiências incríveis. 

 

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