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A união, afinal feliz, dos antípodas
Brasil e Japão comemoram cem anos de uma integração
inicialmente atribulada mas enriquecedora
CECÍLIA PRADA
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No dia 18 de junho será comemorado o Centenário da Imigração Japonesa, e desde o início do ano vêm ocorrendo festas e eventos de toda ordem. Somente na cidade de São Paulo, estão agendadas para esse mês cerca de 150 programações culturais que englobam de exposições a concertos, espetáculos teatrais, exibição de filmes japoneses, simpósios e conferências, festivais gastronômicos etc. São iniciativas oficiais dos governos do Brasil e do Japão, que visam, mais do que uma simples "comemoração", o reaquecimento dos negócios entre os dois países, para que voltem aos níveis dos efetuados na década de 1970 – por exemplo, operações de joint venture nipo-brasileiras que poderão favorecer a entrada de produtos nos outros mercados asiáticos, principalmente o chinês.
Como disse Kotaro Horisaka, diretor do Instituto Ibero-Americano da Universidade de Sophia, em Tóquio, em entrevista concedida em março ao jornal "O Estado de S. Paulo", "a questão mais importante é como utilizar esta ocasião preciosa como uma chance de ampliar e acumular os conhecimentos atualizados sobre os parceiros. Será essa a resposta mais valiosa à herança deixada por nossos antepassados". Uma visão pragmática que faz lembrar que também em 1908 a primeira leva de imigrantes japoneses somente conseguiu ingressar no Brasil "em caráter experimental e por um ano" e após superar muitos preconceitos e obstáculos, porque interessava ao Japão livrar-se de parte de seu superávit populacional e ao Brasil agradar ao governo japonês para ganhar mais um mercado para o seu (já em crise na época) principal produto, o café.
Vale lembrar alguns aspectos do problema geral migratório, que representou, nos séculos 19 e 20, um grande deslocamento de massas humanas, com a conseqüente manipulação de nacionais que muitas vezes se tornaram apenas joguete e vítimas da precariedade da política econômica de seus governos, incapazes de garantir o direito à permanência em solo pátrio. Vítimas, também, da ambição desenfreada dos armadores de uma verdadeira "indústria da emigração", que enriquecia fazendo o marketing desonesto de uma "terra prometida" que nunca seria alcançada.
Desembarcados do Kasato-Maru no porto de Santos a 18 de junho de 1908, os 781 ingênuos nipônicos que tomavam como boas-vindas por parte do povo brasileiro os rojões e balões das festas juninas que subiam aos céus iniciavam uma saga histórica que poderia ser resumida em três etapas: um estranhamento mútuo de culturas inteiramente diversas, japonesa e brasileira, em circunstâncias difíceis de vencer; um confronto que adquiriu na década de 1930 e durante a 2ª Guerra Mundial aspectos de uma violência que até hoje mostra suas cicatrizes; e, finalmente, uma complexa integração que representa episódio singular na história mundial das migrações humanas e assinala um esforço transcendente para um melhor entendimento entre os povos.
Estranhamento
O espanto foi mútuo: os que chegavam eram de um povo antípoda do nosso e os mais "diferentes" imigrantes já vistos, no físico, na língua, nos gestos, na alimentação, nos hábitos. Mas, para surpresa de um repórter – em matéria publicada no "Correio Paulistano" de 26 de junho de 1908 –, vestiam-se à européia e as mulheres usavam até imaculadas luvas brancas de algodão. Ao descer do navio, cada qual portava duas bandeirinhas de seda, confeccionadas no Japão: a japonesa e a brasileira, "trazidas de propósito para nos serem amáveis". E, na Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, foram notados sua educação e seus hábitos de asseio corporal – "tomando repetidos banhos e trazendo sempre roupas limpas". Após uma refeição de duas horas, quando deixavam o refeitório a limpeza era absoluta, "nem um papel no chão, nem uma ponta de cigarro, nem um cuspo, perfeito contraste com as cuspinheiras repugnantes e pontas de cigarro esmagadas com os pés dos outros imigrantes".
Embora todos se destinassem à lavoura do café, havia de tudo nessa primeira leva – policiais, pequenos comerciantes falidos, pescadores, mineiros, empregados de ferrovias, estudantes, professores primários e funcionários sem futuro, rábulas e até mulheres da vida tornadas senhoras. Uma parte deles constituíra "famílias" de ocasião, para facilitar a arregimentação de todos. Os lavradores eram apenas uma sétima parte do grupo, e por relatos registrados pelos seus descendentes pode-se avaliar o atraso extremo em que eram mantidas, no Japão, as populações rurais. Rocro Kouyama, no livro História dos 40 Anos da Imigração Japonesa, diz que foi no Brasil, mais exatamente na Hospedaria dos Imigrantes, que o japonês teve contato, pela primeira vez, com um vaso sanitário. E José Yamashiro, em Trajetória de Duas Vidas – Uma História de Imigração e Integração, registra o espanto de seu pai, Riukiti, um okinawano de 23 anos aqui chegado em 1912, diante das "invenções modernas" – ele conhecera o trem de ferro no porto de Kobe e apenas no Brasil tivera a oportunidade de ver, na esquina da hospedaria, outro prodígio, o automóvel.
O idioma e a alimentação foram os dois aspectos que mais dificultaram a aproximação nipo-brasileira. Os poucos intérpretes designados embaraçavam-se em aspectos da língua falada e da gíria e disfarçavam a confusão com uma atitude arrogante, entrando às vezes em conflito com os próprios imigrantes. Na hospedaria, conta Tomoo Handa em seu livro Memórias de um Imigrante Japonês no Brasil, os japoneses mostravam-se ávidos em aprender português. Enquanto as senhoras passavam cabisbaixas pelos faxineiros negros, "que mais pareciam gigantes", as moças, "cândidas como bebês", tentavam iniciar com eles algum diálogo. Quando exibiram seus parcos conhecimentos lingüísticos diante do diretor da instituição, no entanto, este ficou arrepiado e ameaçou expulsar "quem no futuro se atrevesse a ensinar palavrões às moças japonesas".
Perplexidade na hora do lanche: o pão tinha uma crosta que não deslizava bem pela garganta, e aquela carne escura em forma de bastão, que cortavam em rodelas, decididamente lhes repugnava. Ao ver um homem picando fumo de rolo, acharam que se tratava de outra espécie de carne. Quando lhes serviram feijoada, houve quem estranhasse um certo vegetal brasileiro que tinha até pêlos. . . e que era um pedacinho flutuante de orelha de porco. Tinham dificuldade mesmo com o arroz e o feijão: o primeiro por ser preparado com gordura, e o segundo, que idéia, por ser usado salgado, e não em doces, como em sua terra.
Na vida cotidiana nas fazendas, o anedótico evoluiu para uma situação dramática: não aceitando a alimentação gordurosa e carente de vegetais e saladas, eles ficavam debilitados, sem energia para o trabalho duro nos cafezais. Procuravam preparar seus próprios alimentos, fazendo o arroz à sua maneira e se forçando a engolir pedaços cozidos de bacalhau ou carne seca – mas ninguém lhes ensinara que estes deviam ser dessalgados previamente. Essa situação só melhorou quando puderam efetuar plantações alternativas de verduras e legumes, ou procurar no mato ingredientes substitutivos, como picão, caruru, maxixe e mamão verde.
A essas dificuldades específicas somavam os japoneses as partilhadas com outros grupos nacionais que aqui chegavam – o clima, as doenças tropicais, como a malária e a amebíase, e a praga do bicho-de-pé, que não sabiam tratar e que de tanto coçar podia infeccionar e levar mesmo ao tétano. Foi grande a desilusão dos nipônicos ao chegar à "colônia" da fazenda – casas de chão batido que constavam somente de paredes e teto, desprovidas de eletricidade e instalações sanitárias, de móveis e até mesmo de camas, que eles próprios deveriam fabricar como pudessem.
Por mais pobres que fossem os lavradores japoneses, viviam em seu país em condições bem diversas das nossas: ou lavravam a terra passada desde tempos ancestrais de pai para filho, ou saíam da casa, também herdada, em busca de serviço na lavoura em propriedade de outros, como parceiros ou arrendatários, e sem se afastar muito de seu próprio núcleo habitacional. Trabalhavam entre parentes e conhecidos e não estavam sujeitos a horário fixo. A vida nas fazendas brasileiras era bem diferente: o sino tocava, buzinas soavam, apareciam os exigentes fiscais e começava um dia de verdadeiro suplício para os imigrantes, não habituados ao trabalho nos cafezais mas sim a culturas de arroz ou de hortaliças. Como sintetiza Tomoo Handa, "a dureza da vida nas fazendas não se limitou ao trabalho penoso, mas principalmente a ouvir os berros do fiscal, não entender a língua e não gostar das comidas".
De parte dos brasileiros, o "estranhamento" era ainda mais acentuado em relação aos imigrantes vindos da ilha de Okinawa – uma província mais atrasada, e que durante muitos séculos vivera virtualmente isolada do Japão. Mesmo entre os japoneses de outras regiões seu dialeto não era bem compreendido, e requeria até a intervenção de intérpretes. Seus habitantes eram considerados grosseiros e violentos, e provocavam sempre brigas. Além disso, tinham alguns hábitos bem estranhos, como o de andar nus. Isso explica o impacto que sofreram os timoratos e pudicos caipiras da Fazenda São Martinho quando o grupo de okinawanos para lá enviados em 1908 apresentou-se para o trabalho – todos vigorosos e dispostos, mas desprovidos de qualquer vestimenta. Segundo José Yamashiro, "o hábito da nudez fora de casa se verificou até a década de 1930", donde resultar a impressão generalizada dos brasileiros da época sobre os japoneses de que eram honestos e trabalhadores, porém, "gente estranha".
Rebeldia e progresso
Após o primeiro ano, a "experiência" com os japoneses parecia ter redundado em fracasso quase total. Na Fazenda Dumont, de propriedade da família de Alberto Santos-Dumont, e que com seus 3 milhões de pés de café era considerada líder do estado de São Paulo, a revolta dos imigrantes foi imediata. Após uma noite em que foram acomodados em montes de palha ou capim seco, "em casas que mais pareciam estábulos", quando o intérprete Kato foi acordá-los com um bom-dia, um dos rapazes pôs-se de quatro na palha e relinchou. O senso de humor de Kato não era muito, pelo jeito, e armou-se uma confusão. Pior foi a desilusão dos imigrantes quando, no final do dia, viram que mal haviam colhido de meio a um saco e meio de café por família – ganhavam pela quantidade, e haviam-lhes feito previsões de que, por pessoa, conseguiriam três sacos por dia. Nas palavras do historiador Tomoo Handa, seu discurso era neste molde: "Vamos largar o trabalho e partir amanhã! Se não tivermos o que comer, mataremos os bois do pasto. E se algum desgraçado da companhia de emigração se atrever a aparecer, vamos espetá-lo numa lança de bambu!" De volta à casa, as mulheres vituperavam os maridos: "Quem foi que me trouxe para este inferno?"
Alguns dias apenas após o início dos trabalhos, dois membros da companhia apareceram, e os colonos lhes pediram a transferência para outros locais. O uso de força já se prenunciava na segunda visita da comitiva, em 22 de agosto de 1908. Ela foi recebida por um bando armado "com lanças de bambu, enxadas e foices". Após 56 dias de permanência no local, a totalidade dos imigrantes foi retirada, de volta à Hospedaria dos Imigrantes – a maior parte das famílias foi distribuída por outras fazendas, mas os 28 homens solteiros tornaram-se operários ferroviários, enquanto outros grupos de homens e mulheres preferiam permanecer na capital, em empregos domésticos ou como carpinteiros e pedreiros. Houve até quem se transferisse para a Argentina.
Nas outras fazendas, a experiência com os japoneses da primeira leva durou mais, mas transcorreu sempre em meio a reclamações sobre o não-pagamento do salário, não-cumprimento de cláusulas relativas a alojamento e a assistência médica. E marcada por fugas contínuas, individuais ou coletivas, já que os japoneses, vindos para enriquecer, não ganhavam nem para a subsistência.
Dos 772 imigrantes distribuídos pelas fazendas em junho de 1908, seis meses depois havia somente 430, e treze meses mais tarde, apenas 191. No entanto, três anos após o desembarque do Kasato-Maru, já havia quem tivesse dinheiro suficiente para arrendar e até comprar terras. Esse relativo "fracasso" inicial acabou se revelando, porém, poderoso fator de progresso material, sedimentação e assimilação, para a comunidade imigrada e para o Brasil. Sem recursos para uma viagem de retorno a seu país e para quitação das pesadas dívidas que haviam feito ao emigrar, os japoneses mostraram sua resistência e puseram seu desejo de independência econômica acima de tudo – foram os "desbravadores" de matas virgens, aceitaram morar em choças mato adentro, empenhando-se com os cafeicultores para a abertura de novas fazendas por meio de "contratos de quatro a seis anos", desta feita realizados em condições satisfatórias. Após esse período eles conseguiam, com o pecúlio acumulado, no início arrendar terras e mais tarde adquiri-las, para se dedicar a culturas de sua especialidade.
Com as sucessivas levas de imigrantes que entraram no Brasil de 1912 a 1940, a colônia japonesa foi se espalhando de São Paulo para outros estados e desenvolvendo atividades e profissões das mais variadas. A mentalidade dekassegui (do imigrante temporário) foi dando lugar ao desejo de fixação no Brasil e à formação de cooperativas agrícolas que mudaram o mercado de hortigranjeiros – a primeira foi estabelecida em Uberaba (MG) em 1914. Durante a década de 1920 já eram numerosas, em vários estados. O "Nippak Shimbun" de 19 de agosto de 1927 noticiava a criação de uma cooperativa, e até mesmo de "uma aldeia de caráter comunista", a de Santa Rita, em Ibitinga (SP) , na qual 100 mil pés de café eram considerados propriedade coletiva.
O isolamento inicial dos nikkei – termo que designa os japoneses estabelecidos fora de seu país e seus descendentes –, marcados pelo estranhamento dos costumes brasileiros e pela impossibilidade de comunicação, a partir de 1910 originou a formação espontânea de núcleos coloniais ("colônias") de famílias, que logo mais se reuniriam em torno de uma "Associação Japonesa", e que reproduziam em território brasileiro a estrutura de organização social altamente hierarquizada e disciplinada da mura (aldeia rural) ou do buraku (povoado) . E como a principal preocupação era a educação dos filhos (dainisei, ou seja, "da segunda geração", mais tarde somente "nissei"), foram surgindo neles escolas destinadas a ensinar a língua e a cultura japonesa às crianças, já que os pais desejavam criá-las como "filhos de súditos japoneses", para que "não passassem vergonha quando regressassem ao Japão" – segundo relatam Kiyotani e Yamashiro em artigo que integra o livro Uma Epopéia Moderna – 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil.
Desperto para o problema da formação de núcleos fechados de outras nacionalidades em território brasileiro, nosso governo começou logo no início da década de 1920 a tomar uma série de medidas contra o ensino de idiomas estrangeiros nas escolas. A comunidade japonesa passou então a construir, inclusive com subvenção do Estado japonês, edifícios de escolas, doando-os ao governo do estado de São Paulo, que então designava uma professora primária para essas "escolas mistas" – em 1932 eram já 187 as escolas desse tipo em todo o estado, e em 1939 somavam 486, com um total de 30 mil alunos. Formava-se na cabeça dos nisseis, porém, um verdadeiro dilema de escolha entre duas nacionalidades e culturas tão opostas, um problema que parece chegar, atenuado embora, aos dias atuais.
Até a 2ª Guerra, a colônia ainda sofria discriminação social, formava um grupo fechado, e os casamentos eram sempre feitos entre filhos de japoneses, com raríssimas exceções. Ao terminar o ginásio, os rapazes iam trabalhar para ajudar os pais, e as moças aprendiam apenas os serviços domésticos, já que a tradição japonesa não permitia que se empregassem fora de casa depois de casadas.
Entre a bigorna e o martelo
Contrariando o mito de que sempre fomos – e somos – uma espécie de "paraíso inter-racial", os primórdios do período republicano registram uma intensa campanha de "branqueamento da raça" – o decreto 528, de 28 de junho de 1890, por exemplo, proibia a entrada no país de originários da África e da Ásia. Os jornais da época contribuíam abertamente para a formação de um estereótipo negativo do elemento oriental, em geral. Os debates sobre "a introdução de um elemento étnico inferior" prosseguiram nas décadas seguintes. Em relação ao imigrante japonês, seus defensores foram poucos – como o psiquiatra Juliano Moreira, o médico e antropólogo Roquette Pinto e o historiador paulista Alfredo Ellis Jr. Entre os opositores estavam o jornalista Félix Pacheco, o diplomata e escritor Oliveira Viana, e um médico proeminente, Miguel Couto, que via na imigração japonesa "um problema de segurança da pátria, de vida ou morte do nosso Brasil". Em 1918, o sanitarista Artur Neiva dizia que as raças orientais eram "inassimiláveis pelos ocidentais" e que se "enquistariam entre nós", como se a nação houvesse "ingerido um alimento o qual, uma vez tragado, não poderá ser digerido ou regurgitado".
Com o autoritarismo fascista da era Vargas, essa situação piorou consideravelmente. A comunidade japonesa, já estabilizada e próspera, viu-se desde o início dos anos 1930 colhida entre dois nacionalismos exacerbados: o do Brasil e o do Japão, empenhado desde 1931, com a conquista da Manchúria, na ampliação de seu espaço vital. Os núcleos culturais japoneses foram definidos claramente como "quistos", e como tal combatidos. Na Assembléia Constituinte de 1934 falou-se em "eugenia" e em "só permitir a imigração de elementos da raça branca". No final, adotou-se, e manteve-se na Constituição de 1937, a quota de 2% do total de nacionais de cada país fixados no Brasil nos últimos 50 anos como limite máximo dos que poderiam ser admitidos em cada ano.
Durante a 2ª Guerra Mundial, os nipônicos foram, dos cidadãos do Eixo que viviam no Brasil, os mais perseguidos. Poucos dias após o rompimento de relações diplomáticas com os países inimigos, foi decretada, em 2 de fevereiro de 1942, a primeira evacuação em massa, com um prazo de dez dias, de todos os japoneses da Rua Conde de Sarzedas e arredores – que representavam a maior concentração nipônica da cidade de São Paulo. Uma ordem que não parece ter sido cumprida rigorosamente – os que permaneceram, porém, ficaram sujeitos a invasões repentinas e revista de seus domicílios por policiais, que aproveitavam para levar seu dinheiro e seus aparelhos de rádio. Após a declaração de guerra, uma segunda e rigorosa evacuação de todo o bairro foi decretada, em setembro do mesmo ano. Já vigoravam então, desde o início do ano, o congelamento de bens dos cidadãos do Eixo (só levantado em 1950, cinco anos após o término da guerra), bem como medidas restritivas de suas atividades econômicas e mesmo de sua vida particular – como a proibição de falar línguas estrangeiras e até de conservar documentos ou livros escritos nesses idiomas.
Em 8 de julho de 1943 foi efetuada a maior operação contra os imigrantes originários dos países "inimigos" – segundo a polícia, "um vasto plano de evacuação e expurgo do litoral paulista" (principalmente da cidade de Santos), com a ordem de que todos eles embarcassem para São Paulo no trem das 20 horas, no mesmo dia, abandonando suas casas e bens. Os 4 mil japoneses expulsos foram encaminhados para a região noroeste do estado, mas 600 deles permaneceram na capital, abrigados com suas famílias.
Em uma onda de aberta hostilidade, os sentimentos racistas mais exaltados se manifestavam. No livro O Perigo Amarelo, de 1942, o escritor Vivaldo Coaracy chegava a dizer que a missão do imigrante japonês era "preparar o ambiente para o advento de ondas sobre ondas sucessivas de homenzinhos pequeninos e amarelos que se insinuem, sorridentes e humildes, numa penetração insidiosa, até o momento em que possam dominar".
O "vale tenebroso"
Encurralados pela situação política, 80% dos japoneses que já haviam se fixado e até enriquecido no Brasil voltaram a sonhar com o regresso ao Japão. Principalmente porque, com a política imperial de conquista territorial, parecia haver para eles perspectivas amplas de emigrarem para novas colônias abertas no sul e no sudeste da Ásia. Na minoria restante era forte, entretanto, o desejo de permanecer aqui, principalmente entre os nisseis, que faziam questão de viver integrados, como brasileiros – muitos deles haviam até se alistado como combatentes da Revolução Constitucionalista de 1932, enquanto a colônia da capital paulista participava fornecendo fundos e apoio à Cruz Vermelha. O jornalista José Yamashiro conta como seu pai aprovou sua decisão de partir para o front, dizendo: "Entendo que ele, como brasileiro e paulista, obedeceu ao natural impulso de pegar em armas para defender seu estado".
Na guerra, prensados entre dois nacionalismos, e portadores de dupla nacionalidade, os nisseis dividiram sua lealdade: convocados pelo Japão, não foram poucos os que tiveram de lutar na Guerra do Pacífico – pelo menos seis de um grupo de 15 deles morreram em combate. Muitos, no entanto, participaram da Força Expedicionária Brasileira na Itália, e alguns se distinguiram por atos de bravura e foram condecorados.
Com a derrota do Japão, a colônia japonesa iria atravessar, na sua própria definição, um "vale tenebroso" – tempos de grande confusão e terror, motivados por sua divisão em duas facções: a dos "derrotistas" e a daqueles que, incentivados por campanhas mentirosas que negavam a todo custo a derrota do império japonês pelos Aliados, formaram grupos de terroristas. O mais conhecido e poderoso foi a Shindo Renmei, cuja ação foi descrita minuciosamente no livro Corações Sujos, de Fernando Morais – seus membros torturavam e assassinavam os compatriotas, tachados de "traidores da pátria" por aceitarem a declaração de derrota feita pelo imperador Hiroito, após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki pelos americanos. Em Guerra sem Guerra, no entanto, o historiador Roney Cytrynowicz creditaria a violência desses grupos e a exacerbação do nacionalismo japonês "à política de nacionalização e ao racismo antijaponês do governo Vargas".
Retomada após 1945, a imigração japonesa firmou uma posição sólida, em relação ao Brasil, de integração e fixação, com sucessivas gerações ascendendo por meio do trabalho e do estudo a todas as profissões, e ocupando hoje posições de prestígio nos mais variados setores. Como diz Benedicto Ferri de Barros na introdução de Uma Epopéia Moderna – 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil, essa saga teve um final feliz para todas as partes envolvidas, dando provas de que "povos geograficamente antípodas e culturalmente tão dessemelhantes podem se transformar em irmãos e parceiros na construção comum de uma nação jovem, ao mesmo tempo tão áspera e tão amistosa".
É o que já declarava, em junho de 1939, um grupo de jovens que, sob a direção do advogado e jornalista João Sussumu Hirata, fundou em São Paulo a revista "Transição": "Nós, brasileiros, filhos de japoneses, somos uma transição entre aquilo que foi e aquilo que será. Transição entre o Oriente e o Ocidente. Representamos o traço de união entre dois extremos. Por paradoxal que pareça, unimos os antípodas".
O imigrante artista
Tomoo Handa (1906-1996) – Pintor, professor e escritor. Imigrante chegado com a família em 1917, para trabalhar na lavoura. Três anos depois transferia-se para a capital, onde cursou a Escola de Belas-Artes e iniciou carreira como artista plástico (na imagem abaixo, seu auto-retrato). Foi um dos fundadores do Grupo Seibi, em 1935, e um dos maiores incentivadores da escola nipo-brasileira de artes. Dedicou-se a escrever a história dos imigrantes japoneses. Entre seus vários livros destaca-se uma obra monumental, O Imigrante Japonês (1987), infelizmente não reeditada até hoje.