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Sindicatos: um século de crises
Após cem anos de turbulências e conquistas, movimento sindical busca novos rumos
OSWALDO RIBAS
Arte PB
O movimento sindical está completando um século de atividades no Brasil. Na avaliação de especialistas e dos próprios sindicalistas, no entanto, as comemorações devem ser limitadas e cautelosas, pois mesmo após a eleição à presidência da República de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-líder operário, as associações de trabalhadores viram-se diante de desafios de sobrevivência até então inéditos em sua história centenária.
Nessa longa jornada de turbulências e também de conquistas sociais, os sindicatos, como representantes dos interesses da classe trabalhadora, parecem sucumbir ante questões ideológicas difusas e mal resolvidas internamente, descompasso estratégico ante as grandes mudanças no mercado de trabalho, envelhecimento de seus quadros, com o desinteresse das novas gerações, e, o que é pior, ausência de planejamento estratégico para reformar uma estrutura viciada e distorcida que projeta hoje, para a opinião pública, uma imagem corporativista, retrógrada e, muitas vezes, atrelada mais a interesses individuais do que coletivos.
Causa e ao mesmo tempo efeito desse novo cenário das relações capital-trabalho no Brasil, as cenas emblemáticas de sindicalistas empunhando bandeiras coloridas, megafones à mão, paralisando fábricas, agências bancárias e o transporte público com palavras de ordem de impacto, convocando a população para causas nobres e justas, como melhores condições de trabalho e de salário, parecem ficar cada vez mais distantes na memória coletiva. Hoje, salvo algumas raras exceções, elas permanecem vivas apenas em documentários e nos livros da história recente do Brasil.
"Trata-se de um fenômeno que não está restrito só ao Brasil. Aqui apenas espelhamos uma tendência que é mundial", afirma o jurista José Carlos Arouca, autor do livro O Sindicato em um Mundo Globalizado. A seu ver, a atual crise sindical é estrutural, engendrada dentro do próprio sistema capitalista, e está presente tanto onde há capitalismo avançado, como na Europa ocidental, nos Estados Unidos e no Japão, como em nações como o Brasil, integrantes de blocos de potências emergentes ou países em desenvolvimento.
"Isso demonstra que a relativa perda de força dos movimentos sindicais está diretamente vinculada também ao processo de globalização da economia, às novas formas de produção, ao desenvolvimento tecnológico aplicado ao trabalho e, numa dimensão mais política, à emergência da consciência individual ou de pequenos grupos versus a das massas", acrescenta Arouca. Em sua avaliação, em nome da terceirização da mão-de-obra, com o objetivo de auferir maiores lucros, desregulamentou-se o sistema legal de proteção ao trabalho (ver texto abaixo) e jogou-se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), tida como a principal conquista da classe operária, no lixo.
Conforme dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a evolução das greves no Brasil – por décadas o principal instrumento de mobilização sindical –, há uma tendência de queda significativa das paralisações de trabalhadores exatamente a partir de meados dos anos 1990, quando se consolida o processo de globalização na economia, por meio de empresas multinacionais e instituições como a Organização Mundial do Comércio.
Em 1989, o país foi palco de 3.943 paralisações, em todas as regiões, envolvendo trabalho urbano e rural. Já em 2006 as greves não chegaram a 400, ou seja, uma queda de 90% em menos de 20 anos. E, o que também pode indicar uma mutação no movimento sindical, a maioria dessas paralisações, cerca de 60%, passam a acontecer em empresas e instituições do setor público e não mais nas corporações da esfera privada.
Ao mesmo tempo, nesse período, o Brasil assiste a outro fenômeno: o número de registros de empregados como pessoa jurídica (PJ) aumentou 174 vezes só no estado de São Paulo. A comparação de dados, segundo o estudo "Terceirização e Diversificação nos Regimes de Contratação de Mão-de-Obra", mostra como a contratação sem carteira assinada, que onera menos as empresas, não está ajudando a criar mais postos de trabalho. "A terceirização avançou sem significar aumento no nível de ocupação", diz Marcio Pochmann, professor de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Segundo a pesquisa, entre 1995 e 2005, de cada três novas vagas criadas no setor privado, uma destinou-se à terceirização. O ritmo médio de expansão anual dessa modalidade de contrato foi quase quatro vezes maior do que o do conjunto dos postos formais de trabalho. No ano passado, os terceirizados somavam 4,1 milhões de pessoas, quase 16% do total de trabalhadores do setor privado (26,4 milhões de pessoas). Dez anos antes, eram 9,2% do total (1,8 milhão). Sob esse tipo de contratação, apresentado formalmente como terceirização, as empresas pagam 56% menos de impostos. "A terceirização apresentou-se como iniciativa mais fácil, imediatamente adotada pelas empresas, para diminuir os custos de contratação da mão-de-obra", afirma o estudo, mas o desemprego na Grande São Paulo aumentou, no período, de 12% para 17% da população economicamente ativa.
"Todo esse movimento atende pelo nome de neoliberalismo", declara José Ricardo Ramalho, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), referindo-se à doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e faz restrições à intervenção estatal na economia, só prevista em setores imprescindíveis e ainda assim num grau reduzidíssimo. Para Ramalho, esse novo modelo econômico que triunfou no mundo, baseado no Estado mínimo e nas leis de mercado, é responsável pelo fato de o movimento dos trabalhadores ter perdido força, atingido, de um lado, pela nova cultura das desregulamentações do mercado e, de outro, pelo ambiente de informalidade ao qual a mão-de-obra passou a ser associada.
"O sindicato, como principal instituição de representação de trabalhadores na sociedade moderna, foi atingido fortemente pelas novas estratégias gerenciais que se constituíram com base na flexibilização das relações de trabalho", diz Ramalho. "A resistência sindical, forjada no interior da fábrica fordista de produção em massa ao longo do século 20, entrou em crise a partir do momento em que as empresas começaram a terceirizar e enxugar suas atividades produtivas, redistribuindo tarefas para reduzir custos com mão-de-obra."
Outro ponto estrutural que explica a queda relativa do poder sindical reside no fato de o mercado de trabalho estar crescendo ostensivamente pela via do setor de serviços, diminuindo a participação da indústria na oferta de empregos. Essa dinâmica também contribui para o enfraquecimento da sindicalização, uma vez que são os assalariados da indústria que se associam com mais intensidade aos sindicatos, comparativamente aos trabalhadores que atuam no setor de serviços ou por conta própria.
Amadurecimento
Paradoxalmente, há aqueles que vêem com otimismo a situação do movimento sindical no Brasil, uma vez que, apesar da apregoada perda de poder político, verifica-se uma proliferação de sindicatos e centrais sindicais país afora. Há dez anos havia quatro centrais sindicais. Hoje são 15. Em 1988 eram aproximadamente 8 mil sindicatos, ante os atuais 16 mil. Para se ter uma idéia dessa tendência, o Ministério do Trabalho recebe cerca de mil pedidos de registro de novos sindicatos por ano e concede autorização para 40% deles. A dinâmica é tamanha que é até difícil chegar a um consenso quanto ao número de brasileiros sindicalizados. Segundo os dirigentes sindicais, são 5 milhões de trabalhadores. Pelas contas do IBGE, 13 milhões.
"Esses dados demonstram antes de tudo que está ocorrendo uma reacomodação e um amadurecimento do movimento sindical, e não sua derrocada", afirma Clemente Ganz Lúcio, diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Apoiado nesses números, que mostram fortalecimento do movimento trabalhista no Brasil, Ganz Lúcio tem uma explicação simples para a diminuição de greves no país: "As mesas de negociação tripartites – sindicatos, governo e empresas – estão muito mais flexíveis do que há 20 anos e, atualmente, cresce o número de acordos salariais por ocasião dos dissídios coletivos, o que acaba impactando no movimento de paralisações, considerado o barômetro para medir a força do movimento".
Refletindo o posicionamento do Dieese, entidade fundada em 1955 para desenvolver pesquisas que fundamentassem as reivindicações dos trabalhadores quanto a emprego e renda, Ganz Lúcio adverte para o fato de a militância trabalhista ter dado um salto de qualidade com o advento das centrais sindicais, recentemente reconhecidas oficialmente e legalizadas após votação no Congresso Nacional, que, segundo ele, desataram o nó do antigo sindicalismo das federações e confederações – vinculadas apenas a categorias profissionais afins –, para inaugurar uma nova era de representatividade única para uma infinidade de sindicatos e profissões regulamentadas e até não regulamentadas.
"Da maneira como vemos, estamos presenciando uma mudança de paradigma no movimento sindical em que as agremiações deixam de lado os antigos estereótipos de antagonistas dos interesses empresariais e passam a lidar com uma agenda muito mais complexa", acrescenta Ganz Lúcio.
Dentro desse novo programa do sindicalismo, Rogério Nunes, secretário da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), fundada em dezembro de 2007, cita como alvo da atenção sindical as mudanças no comércio internacional e nos padrões de investimento, o novo perfil das instituições que regulam a acumulação de capital e a distribuição da renda em nível nacional, a redefinição dos espaços públicos e privados na economia e a crescente influência das finanças sobre a produção e provisão de serviços. "Além disso, os sindicatos também estão hoje preocupados com o desenvolvimento econômico sustentável, estratégias locais, nacionais e internacionais para promoção de emprego, melhoria de distribuição de renda e até as novas tecnologias", diz ele.
"Hoje, debate-se nas centrais até que ponto campanhas e ações sindicais por trabalho decente, governança global coerente, seguridade social universal, condições de vida e padrões de trabalho podem contribuir para uma agenda de desenvolvimento mais abrangente", revela João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical, a segunda maior central sindical do país. Também partidário de que não há refluxo no movimento sindical e sim um novo patamar de atuação e reivindicações, ele vê na recente regulamentação das centrais – que entre outras exigências impõe um mínimo de cem sindicatos afiliados – e na manutenção de sua principal fonte de financiamento, o imposto sindical, uma demonstração da nova face do sindicalismo brasileiro.
"Antes, os sindicatos apareciam mais na mídia por conta das grandes reposições salariais decorrentes das altas inflações; hoje, essa exposição é muito mais seletiva e diz respeito à valorização do salário mínimo –atualmente em R$ 415, por força de nossas pressões –, à participação dos trabalhadores no conselho das empresas e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ao direito de greve para o setor público e à redução da jornada de trabalho."
Devido à burocratização e institucionalização remanescentes no sindicalismo, seus militantes sentem dificuldades para negar que tenha refluído um ímpeto mais combativo e que o movimento tenha se afastado das bases dos trabalhadores. A correção de rumo poderia vir por meio de uma ampla reforma, que garantisse maior transparência às agremiações, especialmente no que diz respeito aos vultosos recursos que administram. "Só com uma reforma sindical será possível trazer à tona as mazelas do sistema atual e a necessidade de realizar uma ampla modernização das três instituições básicas no campo do trabalho: a organização sindical, as leis trabalhistas e a Justiça do Trabalho", afirma o sociólogo e professor José Pastore, especialista nessa área. Segundo ele, a reforma proporcionaria uma preciosa oportunidade para examinar a fundo os problemas referentes à questão e reorientar o Brasil no caminho da modernidade.
Na opinião do professor Ramalho, da UFRJ, o momento de crise não quer dizer que a instituição sindical esteja decadente ou vá desaparecer. "Significa que o sindicato precisa construir novas práticas e novas formas de resistência diante das estratégias empresariais marcadas pela flexibilidade e articuladas em termos globais."
Desafios que se renovam
O movimento sindical no Brasil já soma mais de cem anos. Depois de uma incipiente união operária ao iniciar-se o século 20, principalmente no Rio de Janeiro e em cidades do estado de São Paulo, é realizado, em 1906, o primeiro Congresso Operário Brasileiro (COB), de orientação anarquista e socialista, que funda, em 1907, uma confederação nacional de trabalhadores.
Em 1910 acontece a primeira greve de trabalhadores urbanos paulistas – influenciada pelos imigrantes italianos e reprimida pela polícia –, em favor da melhoria das condições de trabalho, da definição da jornada e de salário fixo, já que a maioria trabalhava para comer e dormir. Sete anos depois, em 1917, São Paulo é novamente palco de uma greve geral, com a participação de 100 mil trabalhadores. Naquele ano, a vitoriosa revolução na Rússia disseminava o ideal do socialismo, que passou a orientar o movimento dos trabalhadores. Os grevistas conquistaram salário fixo, aumento de 20%, direito de organização, proibição do trabalho noturno de crianças e mulheres e recontratação de demitidos.
Em 1930, Getúlio Vargas toma o poder e reconhece os direitos dos trabalhadores para neutralizar a influência comunista. Entre outras concessões, fixa a jornada de oito horas diárias. Nessa época surge a figura do sindicato atrelado ao Estado e há ainda o advento da previdência social administrada pelo governo. É criado o Ministério do Trabalho e, em 1932, surge a carteira de trabalho.
Em 1943, Vargas anuncia a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com nítida influência do Estado fascista italiano, mas que representa a primeira regulamentação universal dessa área no Brasil. Em 1946 é promulgada a Constituição Federal, em vigor até o golpe militar de 1964, que dificultava a realização de greves. Um decreto regulamentava a Justiça do Trabalho.
Em 1964, o regime militar inicia intervenção em 90% dos sindicatos. Greves são consideradas crime contra a segurança nacional e sindicalistas são cassados. Em 1966, o governo militar cria o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que daria maior estabilidade ao trabalhador. O sindicalismo brasileiro só volta a ganhar força a partir de 1978, quando os operários da montadora de veículos Scania, em São Bernardo do Campo, paralisam suas atividades para reivindicar reajuste salarial, desafiando a Lei de Greve imposta pelo regime militar.
Nos anos que se seguem, os sindicatos do ABC paulista são alvo da repressão, com diversas intervenções do governo federal. Em 1983 surge a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, com ela, é deflagrada no país a maior onda grevista da história, que tornou o Brasil o campeão mundial de paralisações. Segundo João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical, "o movimento caracterizou-se pela expressão do descontentamento com o achatamento dos salários e com o autoritarismo".
As modificações nas relações de trabalho inseridas pela Constituição de 1988 impulsionam ainda mais a atividade sindical brasileira. A nova Carta retira do Ministério do Trabalho o poder de determinar a vida sindical e garante liberdade de formação de sindicatos inclusive aos servidores públicos.
Nos anos 1990, o presidente Fernando Collor tenta implantar a agenda neoliberal e começa a propor a flexibilização das leis trabalhistas. Em 1991 é criada a Força Sindical. A partir de 1994, o governo de Fernando Henrique Cardoso, empurrado pela globalização, inicia uma série de mudanças. O Plano Real proíbe a reindexação de salários, o desemprego aumenta e cria condições para a flexibilização, que introduz o contrato por prazo determinado, a possibilidade de suspensão temporária do contrato de trabalho (lay-off), a reforma da previdência social (mediante a qual o trabalhador passa a contribuir mais para ter direito à aposentadoria) e a extinção do juiz classista.
Em 2002, o Brasil elege Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder sindical, para a presidência do país. Em 2008, as centrais sindicais ganham reconhecimento formal como entidades de representação geral dos trabalhadores, em âmbito nacional, e é mantido o imposto sindical, como principal fonte de financiamento da estrutura organizacional sindicalista.