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Coluna mestra da vida
A educação e o papel da família
PEDRO S. J. KASSAB
Pedro Kassab / Foto: Alexandre Almeida
Pedro Salomão Kassab, ex-presidente da Associação Médica Mundial e da Associação Médica Brasileira, diretor-geral do Liceu Pasteur, presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) e da Academia Paulista de Educação, esteve presente no dia 22 de novembro de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra com o tema "Educação, coluna mestra da vida". Reproduzimos abaixo sua exposição e os debates que se seguiram.
Esta exposição tem o propósito de ordenar reflexões que fazemos sobre a vida, desde o mistério de sua origem, recolhendo ensinamentos da história e considerando as questões surgidas a cada momento, das universais às do dia-a-dia, nos diversos âmbitos.
Nessa organização de pensamentos, renova-se nossa convicção do papel transcendental da família na educação. Isso nos obriga a indicar, com muita preocupação, o efeito negativo da ausência da ação familial consciente e devotada à boa formação das crianças e jovens.
A disponibilidade do saber, compreendendo os resultados oferecidos pela ciência, sua potencialização pela tecnologia e o uso dos meios técnicos para sua aplicação, mostra continuamente novas possibilidades, geradoras de aspirações praticamente simultâneas com seu surgimento.
Os meios de comunicação – eles próprios cada vez mais rápidos e eficazes, graças também a sua evolução –, portadores de notícias e arte publicitária, costumam conter textos, sons e imagens adequados à fácil compreensão das novidades e ao encontro da sempre desejada melhor qualidade, com suficiência de suprimento e razoável acessibilidade para tudo, e cada vez mais rapidamente, até quanto à transmissão de novos componentes do saber.
A velocidade desse processo talvez seja o motivo de nos depararmos com denominações estranháveis para nossa época – a "era do conhecimento", "sociedade da informação" ou apelidos assemelhados. A par do viver e da preservação da continuidade da vida, porém, a aspiração de saber mais – para a própria existência e para a sobrevivência da espécie – tem sido, certamente, a característica mais notória do ser humano, em todas as suas fases e lugares. Isso dispensa explicações, pois é óbvia essa natural ânsia de saber mais.
Querer melhorar é objetivo normal e constante, visando à alimentação, ao vestir, ao morar, à saúde, à estética, ao desporto, ao lazer, à cultura, ao conforto e outras finalidades, motivando, muitas vezes, essa ansiedade de logo poder contar com os bens ou serviços apregoados.
Sobre a vontade de pretender mais, nunca aceitamos a pretensiosa classificação das pessoas em dois tipos: as identificadas com a volúpia do ter, esta significando pejorativamente ambição egoística ou desmesurada, e as marcadas pela vontade de ser, apontada como integridade ou generosidade. São no entanto até desejáveis e incentivadoras muitas aspirações de ter, voltadas para virtudes e qualidades, e decepcionantes certas vocações de ser, ligadas indisfarçavelmente a vaidades jactanciosas e ostentação exibicionista.
Justificáveis e aceitas, as aspirações impulsionam o saber, sua transmissão e aplicação e causam introdução de procedimentos para os desejos se concretizarem, com suas conseqüências. Assim se complementam, por múltiplas formas de informar e educar, os ensinamentos esperados de parte da família e os adquiridos de outras fontes, constituindo-se o complexo de formação, incessantemente necessário.
De fato, vivem-se ciclos onde estão presentes, umbilicalmente relacionados, bem e mal. Incrementa-se a utilização de energia, em suas diferentes formas; utilizam-se efeitos mecânicos, elétricos, ópticos e térmicos, empregam-se agentes químicos. Lida-se com forças mais intensas e maiores velocidades de transporte e de produção industrial; fertilizantes, pesticidas e aditivos empregam-se, com vários objetivos, nas várias etapas da produção de alimentos e na preparação de outros materiais, notadamente derivados de seres vivos, vegetais e animais. Cresce o uso de substâncias sintéticas e os plásticos, em enorme quantidade, servem a grande número de atividades.
A formação de pessoas competentes é essencial não só para as descobertas e invenções mas, também, para seu ensino, divulgação e, ainda, para sua utilização adequada, com as advertências, cuidados e limitações implicados a cada passo.
Paralelamente à criação, revelam-se de fato nessa explosão produtiva as origens de acidentes em todos os âmbitos, particularmente no próprio trabalho, nos transportes, na atividade doméstica e tantas outras. Poluem-se a terra, as águas, o ar, os vegetais, as criações de animais e, de modo significativo, muitos dos ambientes onde vivemos. Os dejetos surgidos das pessoas e das ações industriais, agrícolas, urbanas e rurais, o lixo doméstico e os resíduos do trabalho e de atividades em escolas, clubes e hospitais exigem tratamento condizente com as normas sanitárias e higiênicas.
É portanto necessário ensinar, também, para nos livrarmos dos males paradoxalmente causados pelo progresso.
Capilaridade
A educação tudo permeia, na faina de preparar para a imensurável complexidade de atos componentes da vida ou com ela relacionados. Ela serve ao fazer correto mas deve proporcionar competência para o desfazer, quando necessário.
Desde o nascer do ser humano – e, possivelmente, até antes –, iniciam-se fatos estimuladores de suas reações e compõem-se suas intuições e experiência, agregando-se sucessivamente conhecimentos e construindo-se o saber.
O ensino, por sua relevância, é regulamentado. Em sua organização são obedecidos critérios adotados pela ciência pedagógica; os recursos didáticos recebem os mesmos impulsos conseqüentes às aspirações de qualidade, suficiência e acessibilidade dos serviços, como se passa em outros setores. Definem-se segmentos educacionais infantis, básicos, superiores e de pós-graduação. Não se o limita, porém, às modalidades legalmente estabelecidas e suas graduações, pois a formação de cada pessoa estaria congelada nos níveis obtidos ao tempo das respectivas escolarizações. A expansão do saber é contínua e animada por várias modalidades livres que o complementam, atualizam e aprimoram. Cursos, conferências, palestras, debates, reuniões para comunicação de idéias e resultados, intercâmbio de experiência e de critérios, ao lado de congressos de grande amplitude e outras iniciativas de colaboração e convivência, formam vasta rede de estudo, confluindo em favor do saber. Ao mesmo tempo, livros, periódicos, meios eletrônicos e ópticos e outros veículos formalizam idéias, métodos, procedimentos, conclusões e proposições.
Capilariza-se a educação, de modo a realizar-se em múltiplos caminhos e extensões, naturalmente surgidos ou concebidos, para estudo e desenvolvimento dos conhecimentos.
No quadro positivo assim instalado, quem aprende e adquire formação, motivado por interesse e dedicando atenção, memoriza, raciocina, sensibiliza-se e, freqüentemente, anima-se a pesquisar, criar e também ensinar.
Focalizamos, pois, um processo de intenções claramente construtivas para a educação e, portanto, para a vida. É comum, todavia, atribuir-se a importância da educação a uma finalidade específica, muitas vezes com justificação do tipo "evitar o pior", como se essa postura defensiva fosse sua meta, exclusiva ou essencial, ou o fundamento dos sistemas educacionais.
É exemplo disso, sob a pressão de graves endemias, a pregação feita sobre o valor da educação para a proteção da saúde e da vida – de imensa valia, realmente, mas com ênfase às vezes exclusivista, como se a aquisição de conhecimentos viesse a tornar-se dispensável, no caso de o problema desaparecer.
Dentre os casos de realce setorial desse tipo, há o destaque – verdadeiramente merecido – conferido à educação para serem enfrentadas as gravíssimas situações de condenável comportamento, menosprezo a consagradas normas de conduta e desvios destas, indutores de transgressões e infrações, com aparecimento e crescimento de maus hábitos, vícios, perversões e aumento da criminalidade. Clama-se, acertadamente, por educação oportuna e de qualidade; e, ao temor suscitado por agressões morais e físicas, acrescenta-se o receio causado pelo ritmo de multiplicação do número de pessoas, especialmente jovens e até crianças, cativadas para os maus procedimentos. É forçoso reconhecer o potencial, existente em todas as fontes da educação, da ação principal e básica a ser empreendida contra essa degenerescência, antepondo-se ao desnorteamento moral e à banalização de atos inaceitáveis. Isso não significa, todavia, o abandono e nem mesmo o enfraquecimento dos perenes objetivos fundamentais da educação, se essas anomalias sociais desaparecerem.
A par de condições como essas, nota-se o enaltecimento da educação como real necessidade para a preparação e a formação de competências e habilitações indispensáveis ao trabalho, objetivando melhor qualidade e suficiência dos bens e serviços, já rememorados, e tornando-os também mais acessíveis, como foi igualmente recordado; e, além disso, aduzindo-se minimização de desperdícios, de deterioração ambiental e de outros efeitos nocivos, e protegendo-se ao mesmo tempo os recursos naturais.
Inclui-se ainda, nessa ênfase da educação para o trabalho, o bom encaminhamento de crianças e jovens, mediante oferecimento de qualificação compatível com suas aptidões e vocações, de modo a poderem assumir oportunamente responsabilidades, provendo suas necessidades e as de seus dependentes. A formação profissional, a especialização, a atualização continuada, há pouco mencionadas, constituem um processo educacional permanente, de incontestável necessidade, apoiador do bem fazer, o age quod agis, lema que traduz primorosamente o objetivo desse conjunto de ações.
A ponte da palavra
Em nosso entender, o melhor símbolo da capacidade de fazer do ser humano é a mão. O dom extraordinário da habilidade manual, inimitável, aponta a origem da expressão mão-de-obra, para indicar o componente humano da produção, mesmo quando não se trata de trabalho essencialmente manual. Não se acolha, entretanto, o conceito do ser humano como um insumo para a produção.
A capacidade mental humana enseja a descoberta de novas possibilidades de uso proveitoso, na natureza e nos recursos já acrescentados aos naturais, e é também capaz de as inventar. A educação intervém para esse descobrir ou inventar e para a comunicação e difusão dos novos recursos, sua utilização e avaliação de seus resultados.
A "ponte" entre a mente e a realização das possibilidades por ela criadas é a palavra, a maravilhosa capacidade de expressar o pensamento e permitir sua compreensão. A linguagem é fator essencial na educação, tanto no lar como em todas as modalidades e níveis de formação, não apenas para o trabalho mas na educação para a vida, em sua plenitude, compreendendo os inumeráveis fatos e ações ao longo da existência. Sua abrangência na vida é máxima, com presença incessante e indestrutível, não se antevendo limite para seu crescimento. Dela faz parte o conjunto de atividades de aprimoramento humano, físicas e mentais, espirituais e religiosas, sociais e políticas, culturais e outras, se não para prática dessas atividades, pelo menos a fim de ensejar conhecimento e apreciação das respectivas conquistas e crescimento cultural.
A educação não deve estar limitada pelo condicionamento derivado de alvos específicos e respectivos apelos. Ela há de possuir os requisitos, reconhecidos e aceitos, para proporcionar os resultados irrecusáveis; para tanto, não há de restringir-se, passivamente, ao enfrentamento de males atuais ou prognosticados – não deixando, porém, de o fazer –, mas é muito mais. É louvável evocar a educação como fonte primordial de bem-estar pessoal, familial e social e, subsidiariamente, é um dever apontar lamentáveis falhas educacionais como responsáveis por problemas gravíssimos.
A justa promoção de equanimidade de oportunidades, para estudo, trabalho, possibilidade de realizações e reconhecimento de méritos, encontra na educação a via natural para concretizar-se, erradicando-se preconceitos e protecionismos. É a base para cultivar-se o respeito, a dignidade e a honra; para a repulsa à injúria, à calúnia e à difamação, venenos engendrados pela deslealdade; e para não complacência com as omissões, nem com a indolência e a pusilanimidade verificadas na gênese destas.
A educação, inerente à vida, é a edificação da liberdade desejada e de sua irmã gêmea univitelina, a responsabilidade pelos atos praticados; é semente de origem e é raiz nutriente da verdadeira solidariedade humana, concebida e exercida sem afastar-se da justiça. Ela transmite princípios morais e materiais, preservados pelo reconhecimento de sua importância para o ser humano, e patrocina o acatamento desses preceitos, integrantes da cultura por ela construída por meio de múltiplas modalidades e ações; e, assim, dá origem à civilização. O saber e o discernimento proporcionados pela educação e agregados à cultura servem à boa formação da consciência. A educação é a parceira principal da família, entidade insubstituível, completando-a também na missão de formar o caráter e a personalidade.
As famílias são, certamente, os pilares da convivência harmoniosa e da paz. Com idêntica convicção e partindo de fundamentos análogos aos da família, somos levados a reafirmar a precedência axiomática da educação, no conjunto das ações humanas. Essa verdade prescinde de demonstração.
A educação é, de fato, a coluna mestra da vida.
Debate
SAMUEL PFROMM NETTO – Menciono preliminarmente duas fontes preciosas que estão por trás de boa parte do que vou dizer. A primeira é um livro contundente de Martin Gross, The Conspiracy of Ignorance. Lamentavelmente, não existe tradução para o português. A outra é uma obra de Claudio de Moura Castro, Crônica de uma Educação Vacilante, publicada há dois anos. A conclusão de um e de outro é a mesma: a educação vai muito mal nos dias que correm. Há uma necessidade premente, enfatizam eles, de mestres cultos e hábeis no ofício de ensinar. Eu acrescentaria: bem remunerados. De escolas providas de abundantes materiais, recursos e aparelhamento moderno, de currículos ricos, em extensão e em profundidade, e de gestores competentes. A família conta e sempre contou com a escola para a formação de seus filhos. Hoje em dia, no entanto, as famílias brasileiras estão confusas, perplexas. Limitando-me apenas à formação escolar e deixando de lado, a despeito de sua inegável importância, os outros três pés do quarteto – família, sociedade, mídia –, seria a esta altura digno de reflexão o modelo aqui proposto. No mundo do comércio e da indústria, quando uma empresa vai mal, quem é o responsável? São responsabilizados os dirigentes, os gestores são substituídos e se trata de corrigir estratégias, diretrizes, rumos, procedimentos. Na macroempresa da educação brasileira isso não acontece. Herdeiros que somos de uma tradição balofa, na qual imperam os formalismos jurídicos, a superficialidade e um brutal desconhecimento dos fundamentos tanto científicos como práticos do saber e do fazer docentes, mergulhamos mais e mais nestes últimos 40 anos numa espécie de pajelança pedagógica, tisnada de doutrinação política ideológica anacrônica, submetida ao império de modelos pedagógicos obsoletos, rejeitados nos próprios países de origem. Nenhuma organização no mundo dos negócios seria capaz de sobreviver em meio a tanta incompetência, a tanta demonstração de despreparo. Continuamos apegados à discurseira rebarbativa de leis, decretos, portarias de todo alheios às realidades das escolas que não ensinam e das crianças que não aprendem. Está na hora de refazer nosso ensino a partir de um quadro de referência lúcido, realista, responsável, tal como se procede nos outros países, e em particular nos contextos comercial e industrial. Repetindo a velha lição de Henri Fayol, aqueles que deveriam planejar, organizar, assessorar, dirigir e controlar a educação se omitem, por incapacidade, despreparo ou simplesmente incúria. É tempo de reconstrução urgente, realista e inteligente do edifício educacional brasileiro. Gostaria de saber o que o palestrante pensa a respeito dessa minha mistura de desencanto, perplexidade e, tal como na fábula de Pandora, esperança.
PEDRO KASSAB – A ansiedade de seu desejo de reconstrução me parece bastante generalizada em pessoas responsáveis, mas poderia compará-la àquela clássica afirmação de campanhas políticas, onde os candidatos costumam conferir prioridade à educação e à saúde, mas ficam nessas palavras de solicitação de voto. Tenho uma resposta com uma palavra só para isso, não creio que seja necessário nada mais, porque é a palavra que comanda o que se deve fazer. Precedência. A educação na cabeça de quem tenha poder, seja para elaborar leis, seja para administrar coisas públicas, seja, se for o caso, para apreciar juridicamente situações relacionadas ao assunto, é precedência. A educação tem de estar à frente de tudo, sem exceção, porque tudo o mais que se possa desejar emanará dessa precedência. Comparo-a a um axioma matemático, não é preciso demonstrá-la, ela precede tudo. Para haver essa precedência é preciso que as pessoas que têm o poder de imprimir rumos o utilizem para isso. Não sinto possibilidade nem necessidade de falar a respeito de planos e projetos resultantes sem que haja essa precedência. Não havendo, na educação estará basicamente tudo errado.
ROBERT APPY – No início da palestra, o senhor falou da incapacidade dos pais de contribuir para a educação. Vendo o desmoronamento do ensino no Brasil, pergunto-me como os pais que moram em favela podem acompanhar e exigir dos filhos um aprendizado. O senhor mostrou também que a educação não termina e falou dos meios de comunicação. Os programas de televisão que existem será que não deseducam?
KASSAB – Suas perguntas são preocupantes porque, quando se fala em precedência para a educação, isso não significa a realização de um milagre, mas a idéia que tudo norteia. Há um número enorme de pais que não têm preparo para orientar seus filhos e há uma grande quantidade de pessoas que moram em favelas. Há uma coincidência entre as duas condições, embora não sejam exclusivamente recíprocas. Não diria que em todas as favelas há gente incapaz de criar os filhos ou que todos os incapazes residem em favelas. Há incapazes dentro e fora desses locais. Isso é algo que se deve equacionar, porque envolve também educação dos pais. Alguns países do mundo, inclusive a França, já há decênios sentiram essa necessidade e criaram escolas de pais. Quanto à televisão, é realmente deplorável que não se dê a essa mídia a capacidade enorme de influir na educação. Sabemos que ela, ao contrário, veicula muitas coisas deseducativas. É lógico que isso terá de merecer projetos e programas de ação. Penso que ninguém estaria em condições de dar senão idéias vagas a esse respeito. Há nações que puderam em poucos anos fazer progressos enormes na área econômica e ficou muito claro que isso decorreu do grande investimento que fizeram na educação básica, a que precede o ensino superior. Isso dá resposta em anos, e nós ainda vamos sofrer muito tempo por causa da situação anterior. Posso lhe responder, portanto, em síntese, que a precedência da educação deve ser traduzida por um planejamento competente, ambicioso e que encare a realidade de resultados progressivos e não imediatos. Se se pretender transformar tudo do dia para a noite, não se conseguirá absolutamente nada.
JOSUÉ MUSSALÉM – Um assunto que costumo pesquisar são os conflitos entre países, especialmente a 2ª Guerra Mundial, e isso me fez pensar que a educação, diante dessas situações, tem suas limitações. Como pôde a Alemanha, uma sociedade intelectualmente desenvolvida, iniciar uma guerra tão violenta? E os americanos, como puderam lançar as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki? Quais são os limites da educação quando os povos são capazes de matar 50 milhões de pessoas?
KASSAB – Tive um colega que uma vez disse com muita propriedade que na guerra pessoas que não se conhecem matam-se em defesa de interesses de pessoas que se conhecem e não se matam. Jamais poderia conceber uma guerra com origem na educação, pois esta tem a ver com harmonia na família, na sociedade, em todas as sociedades, fazendo com que possam evitar esse tipo de conflito. Há um livro póstumo de Ernest Hemingway que contém reportagens que escrevia quando jovem para um jornal canadense. Entre os textos dessa obra há um com este título: ‘’Mussolini é um blefe’’. Tenho a impressão – é uma suposição, pois não me considero bom conhecedor do tema – que Mussolini foi um líder popular imitado por Hitler, já que o precedeu em termos de poder e de prestígio em mais de dez anos. Apesar de sua deplorável postura política, com vistas à manutenção do poder, ele não era nenhum ignorante. Recordo-me de que neste conselho, há uns 30 anos, certa vez o padre Godinho lembrou numa conversa correlata que Mussolini, entre outras coisas, aparecia na enciclopédia italiana como autor do verbete Maquiavel. Era, portanto, um homem de cultura. Mas a ambição do poder é capaz de seduzir multidões. O líder diz aquilo que as pessoas querem ouvir, especialmente os miseráveis, que constituem a maioria, sobretudo se habilidosamente for preservado e aumentado o número deles, que continuarão muito gratos por alguma migalha que se lhes atire. Aquela conversa de que não se deve dar o peixe mas ensinar a pescar é algo que hoje em dia só serve para iludir quem esteja muito alheio à realidade. Não tenho nenhuma dúvida de que os alemães são um dos povos mais cultos do mundo, mas de uma forma patológica uma liderança, explorando suas necessidades, conseguiu conduzi-los ao nazismo, que imitou o fascismo de Mussolini, copiado também na política social de Getúlio Vargas. Assim como Mussolini criou o feixe de varas amarradas que não se quebram, o fascismo, Getúlio Vargas fundou, por exemplo, o PSD [Partido Social Democrático] e o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] e, logo depois de deposto, ao fim de uma ditadura, foi eleito pelo povo. Isso acontece porque as massas se seduzem. Quando falo da importância da educação para preservar a harmonia, a paz e, portanto, até para prevenir guerras, não é uma conversa romântica. Sua preocupação quanto a esse paradoxo é muito plausível. Não creio que o mundo vá deixar de ter completamente guerras se um dia a educação receber a precedência plena que deve ter, mas a tendência é que haja uma construção positiva.
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Meu caro Pedro Kassab, como educador não desesperançado, porém desiludido com a incompetente e às vezes até criminosa utilização do verdadeiro conceito e dos fundamentos da educação, diante de sua fala vieram-me ao espírito várias considerações a ser levantadas. Entretanto, diante dessa magnífica aula de filosofia da educação, prefiro o silêncio.
HUGO NAPOLEÃO – Tenho apenas pequenas observações. Uma delas que no último século a Alemanha passou por duas guerras e uma cisão, e hoje é a maior potência européia. A Coréia, também dividida, passou por um período extremamente difícil e, por causa do apoio à educação, a Coréia do Sul ergueu-se. John Kenneth Galbraith, na obra A Natureza da Pobreza das Massas, cita o caso da Índia, que recebeu recursos infindáveis para a agricultura e não a desenvolveu adequadamente. O mesmo poder-se-ia dizer dos países produtores de petróleo na década de 1970, como agora. Mas essa é uma demonstração cabal de que a educação ou a sua falta levam ao progresso ou não.
KASSAB – Na rapidez da reconstrução alemã entrou o lastro cultural do povo germânico, não concebido por radicalismos, racismo, demagogia, medo de tortura e tantas outras coisas. Relativamente às Coréias, a situação oposta dos dois países fala por si. Aquele que deu precedência à educação evoluiu, enquanto o outro prefere a guerra.
LUIZ GORNSTEIN – O Brasil gasta em educação 5,5% do PIB, o Japão e a Itália 4,8% e o Chile 4,3%. No estado de São Paulo, um aluno de qualquer das três universidades estaduais custa R$ 38 mil por ano, enquanto na escola fundamental pública municipal custa R$ 2,4 mil por ano. Na China, a carga horária comum nas escolas secundárias é das 7 às 12, depois das 14 às 17 e por fim das 19 às 20h30. A pergunta é: por que não se faz isso no Brasil, de modo que as crianças fiquem na escola o dia inteiro?
KASSAB – A presença da criança em tempo integral na escola é absolutamente desejável. Os obstáculos que existem para isso na esfera pública são conseqüência de não ter havido precedência para a educação. Se quisermos colocar hoje as crianças todas o dia inteiro na escola, não teremos nem a metade das salas de aula necessárias. Não houve e não há precedência na construção de escolas e principalmente na formação de professores. A meu ver, o problema qualitativo grave da educação brasileira está aí, provocado pela grande expansão de determinadas áreas de ensino e formação acelerada. Posso afirmar que a qualidade média dos professores formados nos últimos anos é muito inferior à dos anteriores. Deveria existir precedência primeiro da educação básica, muito bem lembrada na comparação de custos do aluno nas escolas paulistas. Em segundo lugar, relativamente ao tempo integral, a ausência de precedência para a educação não só não propiciou o espaço físico necessário como não formou qualitativamente os mestres para isso.
VAZ GUIMARÃES – Gostaria de lembrar a extinção dos cursos normais. Antigamente o normalista, futuro professor, tinha uma preparação muito melhor do que hoje.
KASSAB – Esse foi um fator importantíssimo, que até apontei em parecer num processo do Conselho Estadual de Educação. O ensino normal antigo foi, e deveria continuar a ser, a espinha dorsal da educação, porque a par de sua missão direta, que era a formação do professor para a educação básica, dele emanavam outras vocações, a motivação para ir adiante. Era uma formação totalmente diferente, eram professores realmente capacitados, culturalmente e tecnicamente. A meu ver, aqueles Cefans [Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério] que se criaram, embora fossem um esforço para aumentar a formação de professores, tiveram um equívoco de base. É muito perigoso adotar critérios baseados em simetrias. Então, colocar a formação de educadores como uma formação técnica de qualquer outro nível é paradoxal.
EDUARDO SILVA – O que significa a palavra – a capacidade de comunicar-se pela fala –, que foi um item muito importante citado em sua palestra? Outro é a família, que hoje é pouco permanente, há muitos jovens sem pais, ou que têm somente a mãe. Será que a família pode ser substituída? Por que ela está perdendo o sentido?
KASSAB – A palavra é realmente uma das coisas mais impressionantes da natureza humana. Imagine os pensamentos contidos na mente sem nenhuma possibilidade de manifestá-los. Viveríamos todos isolados, em mundos distintos, cada um dentro da própria cabeça. A palavra é algo que se confunde com educação e, conseqüentemente, se liga a outra questão, a família. Aqui vejo dois pontos distintos: a existência da família e a estabilidade do matrimônio. Há situações em que um casal não consegue mais conviver. É uma realidade que deve ser conduzida da maneira menos traumática possível para os filhos, se houver. Mas isso não significa que a família tenha perdido o sentido, porque não há o que pôr em seu lugar e, por outro lado, muitas delas se reconstituem, recria-se o ambiente familiar. Houve tentativas no mundo de destruição do poder da família, como na Alemanha, na Itália, na União Soviética. Não se pode entender de maneira diferente aquele tipo de educação política das crianças italianas, ou a juventude hitlerista, ou o Komsomol da União Soviética. Essas iniciativas significam um endeusamento do Estado, um conceito desastroso, porque ele é feito para nos servir, não para que sejamos seus súditos. À proporção que damos ao Estado a responsabilidade total da formação da criança, tiramos esse papel da família e contribuímos para a destruição de valores que são naturais, o vínculo biológico e psicológico que existe entre pais e filhos.
MARISA AMATO – Quando se faz uma pesquisa ou se estuda um assunto, é preciso ser especializado para alcançar algum progresso. Mas como fazer na hora em que se passa à prática, no dia-a-dia? Eu sinto que existe uma falta de comprometimento das pessoas, que vão transferindo a responsabilidade de qualquer coisa que não seja de sua área. E quanto mais conhecimento se adquire, mais superespecialidades vão surgindo em todas as áreas, em todos os setores. Como fazer com que o aluno, no final de uma faculdade, não perca a visão holística de tudo o que aprendeu, e enxergue os problemas de maneira global e não como vemos hoje, com a superespecialização? Um exemplo: se vou fazer uma cirurgia no dedo do pé direito, não preciso saber mais nada sobre o paciente? A tendência da especialização é só aumentar e estamos perdendo o generalista, que não deveria ser apenas o responsável pela triagem, mas alguém competente na profissão e que fizesse uma ligação com todos.
KASSAB – Essa focalização lembra um pouco a frase que se atribui a Bernard Shaw, de que o especialista sabe tudo a respeito de nada e o generalista não sabe nada a respeito de tudo. O que importa não é a superfície nem a profundidade, é o volume do saber. Não aceito um critério de especialização que não tenha tido como ponto de partida uma sólida formação geral. O ser humano é um todo, não é constituído por pedaços encaixados. Posto isso, dividamos o problema em três partes: a prática da profissão, a execução dos serviços que são de sua competência e a ampliação dos conhecimentos, isto é, pesquisa e ensino. Relativamente ao ensino e à pesquisa, o problema a rigor não existe desde que isso se faça dentro de critérios éticos e pedagógicos corretos. O ponto crucial é a prestação de serviços. Aí o que existe não é uma demissão de responsabilidades. Há dois critérios essenciais. O primeiro, o critério formador caracterizado pelo aprofundamento da especialização, quer dizer, o do saber adquirido. E o segundo é o da experiência. Desde épocas muito remotas os menos experientes recorreram sempre aos mais experientes. Isso, que se aplicou de início apenas à medicina como um todo, veio a ocorrer também nas especializações. Eticamente cumprido aquilo que se estabelece como responsabilidade profissional, não se trata de se desembaraçar do problema, trata-se de acrescentar uma experiência maior. Então não me impressiono com o fato de a especialização poder fazer com que um médico queira que o paciente tenha a opinião de alguém experiente. Isso é algo que se deve manter, porque nunca as experiências serão iguais, os profissionais se sucedem. É claro que pode haver desvios, de natureza ética ou econômica, que nós sabemos que existem, especialmente quando há o chamado terceiro pagador, em que as pessoas se desfazem de casos que não vão render financeiramente. Falo nisso tudo sempre dentro do pressuposto do comportamento ético irrepreensível.
MARISA – Nas faculdades não deveria haver uma cadeira ou um setor para conciliar todas as matérias? Se os alunos, particularmente na medicina, têm aulas com vários especialistas, como vão adquirir a visão do geral?
KASSAB – As boas escolas de medicina têm feito isso, não sei em que proporção. Trata-se de um nível chamado de internato, que corresponde ao sexto ano do curso de graduação. Isso se procura fazer e é preciso.
JOÃO TOMÁS DO AMARAL – Há um equívoco muito grande ao abordar a educação pelo lado da escolarização. São duas coisas distintas, e se fala o tempo todo em educação quando se está designando somente a escolarização, até porque todas as legislações, desde a lei 4.024/61 até a atual, 9.394/96, falam em nova postura, mas na verdade ficamos só na mudança de papéis. Todas elas abordam a escolarização e não a educação como um processo mais amplo.
KASSAB – Está sendo entendida a educação em seu aspecto ensino. Fora desse aspecto há outros, de formação da personalidade, do caráter etc. Realmente a legislação que regulamenta a educação acaba se concentrando só no ensino, com uma quase total predominância da escolarização. Há muita razão em suas palavras ao fazer distinção entre educação e ensino. Já se está saindo um pouco disso com a educação à distância, que no Brasil é bem embrionária. Os órgãos educacionais de modo geral estão procurando trabalhar em sua regulamentação. Tenho a impressão de que nossa legislação está muito confusa a esse respeito porque dá ao poder público federal o papel de regulamentador da educação à distância. Isso é compreensível, porque o Brasil é mesmo uma federação. Não se faz, como nos Estados Unidos, uma qualificação por estado.