Postado em
Novos caminhos e velhos desafios
Dificuldades não faltam para os pequenos agricultores que desejam produzir biocombustíveis
DANIEL CASSOL
Thomas Fendel e seu veículo pioneiro
Foto: Arquivo pessoal
Ao lançar em janeiro deste ano o plano energético que tem como meta reduzir em até 21% as emissões de gases de efeito estufa até 2020, a União Européia anunciou que as importações de biocombustíveis seguirão critérios de sustentabilidade, ou seja, será exigido um certificado que ateste a origem do produto, que não poderá conter matérias-primas provenientes de áreas "com grande concentração de biodiversidade".
Com dimensões continentais, clima e solo favoráveis à produção de matéria-prima para os biocombustíveis, o Brasil precisa estar atento para não repetir erros do passado, ou correrá o risco de ficar fora desse mercado. Segundo Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energia do Greenpeace Brasil, há no país falhas em relação à garantia de condições de sustentabilidade para a produção de biocombustíveis. No caso do etanol, não existe delimitação das áreas indicadas para o cultivo, a fim de impedir que essa cultura avance sobre biomas como a floresta amazônica e o cerrado. Já o uso da soja para a fabricação de biodiesel não favorece os pequenos agricultores e sim as grandes empresas envolvidas no negócio.
A polêmica em torno dos possíveis prejuízos ambientais e sociais decorrentes da produção dos biocombustíveis, que reduziriam a queima de combustíveis fósseis à custa da derrubada de florestas, da expulsão de pequenos agricultores do campo, da exploração da mão-de-obra e do aumento no preço dos alimentos, remete a uma situação já vivenciada pelo país. "A rápida expansão do cultivo da cana em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul, promovida pelo Programa Nacional do Álcool (Proálcool) na década de 1970, destruiu muitos sistemas rurais de policultura, que produziam alimentos para o mercado interno. A conseqüência foi um importante êxodo do campo e uma perda de infra-estrutura produtiva e de reservas de mata nativa", afirma Enrique Ortega, pesquisador do Laboratório de Engenharia Ecológica e Informática Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Segundo dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a cana ocupa hoje cerca de 7 milhões de hectares. Na safra 2007/2008, a estimativa é que sejam produzidos 21,5 bilhões de litros de etanol, a partir de 480 milhões de toneladas de cana. Ainda de acordo com a Unica, cerca de 87% da cana brasileira vem da região centro-sul, e São Paulo responde por 60% da produção. Em relação às medidas adotadas pelos europeus, a entidade relativiza sua importância, já que a Amazônia não seria utilizada para a produção de cana, por não apresentar condições técnicas, meteorológicas e logísticas.
Descentralizar e diversificar
Diante desse cenário, algumas iniciativas tentam abrir espaço para o pequeno produtor. Uma experiência implementada na Fazenda Jardim, localizada no município de Mateus Leme (MG), pode ser considerada pioneira e acabou se tornando um modelo a ser seguido. O proprietário, Marcelo Guimarães, desenvolveu uma microusina de álcool que favorece a diversificação da produção em pequenas propriedades rurais, pois além da possibilidade de obter álcool, cachaça, açúcar, melado e outros derivados, o agricultor pode utilizar os restos da cana na alimentação animal e na adubação da terra. "O álcool não pode ser pensado apenas como um produto, mas sim como um projeto, já que na sua produção cria-se todo um processo que pode viabilizar uma pequena propriedade", destaca Carlos Alberto Ferraz, parceiro de Guimarães no empreendimento.
Foi com base em projetos como o da microusina mineira que um grupo de agricultores gaúchos construiu nove microdestilarias em diferentes municípios da região noroeste do estado. Cada uma delas tem capacidade para produzir 600 litros de álcool por dia, e o processo de recolhimento da cana é feito de tal forma que permite maior participação dos agricultores e evita os riscos da monocultura. Pelo menos 20 famílias se envolvem no abastecimento de cada usina. Um equipamento para esmagar a cana foi adaptado a um pequeno trator, que circula pelas propriedades, o que reduz os custos e permite ao agricultor ficar com os subprodutos da cana.
Para garantir maior controle sobre a cadeia produtiva e também conseguir melhores condições de diálogo com as indústrias, eles montaram a Cooperbio, uma cooperativa ligada ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). "Criamos um modelo técnico-industrial descentralizado, em que a maior parte do processo produtivo está na mão dos agricultores. Esse formato possibilita a cada um deles decidir o que e quanto vai produzir", explica o engenheiro agrônomo Marcelo Leal, um dos coordenadores do projeto da Cooperbio.
Ao mesmo tempo em que implementa as microusinas, a cooperativa investe, com apoio da Petrobras, em quatro unidades de esmagamento de sementes oleaginosas, fartamente produzidas na região, que serão usadas na fabricação de biodiesel. A mesma estrutura descentralizada permitirá menores custos e maior capilaridade na base de produção. Uma quinta planta industrial, a ser instalada no município de Palmeira das Missões (RS), fará a transformação do óleo vegetal em biodiesel.
O principal entrave
"O agricultor precisa ter um papel mais relevante no mercado de biocombustíveis e deixar de ser somente fornecedor de matéria-prima para a indústria. Não podemos reforçar o modelo de integração já existente em outras cadeias, como a do fumo e a do leite", afirma Rui Valença, dirigente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul).
Tanto para os produtores de álcool como de biodiesel, o desafio é encontrar formas de comercialização que garantam a viabilidade econômica do projeto, sem perder de vista a produção diversificada de alimentos nas propriedades rurais. No caso da Cooperbio, os planos são de atender as frotas das prefeituras e de empresas da região, o que é permitido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Uma das reivindicações dos agricultores é poder comercializar livremente o álcool, o que hoje não é autorizado. "É preciso regulamentar a produção e a comercialização de álcool combustível por pequenos produtores nas microdestilarias", diz Ferraz, da Fazenda Jardim. A medida favoreceria principalmente o consumo em núcleos rurais.
Segundo o gerente de Desenvolvimento Energético da Diretoria de Gás e Energia da Petrobras, Mozart Schmitt de Queiroz, a idéia é interessante do ponto de vista econômico para as pequenas comunidades. "O grande problema é como garantir a liberação do uso para autoconsumo e impedir que esse mesmo álcool seja vendido em postos de combustível", diz ele. A legislação brasileira prevê o controle de qualidade e o recolhimento de impostos sobre o produto comercializado pelas distribuidoras oficialmente autorizadas pela ANP.
A questão é importante porque expõe outro dilema relacionado à produção de biocombustíveis de modo alternativo à grande indústria: como equacionar uma produção sustentável com a demanda de combustível mesmo de um pequeno município. "O desafio de conciliar escala e qualidade não é simples", resume Marcelo Leal, da Cooperbio. Uma alternativa seria apostar em culturas como a de tungue e a de pinhão-manso, de maior produtividade que a soja na obtenção de óleo. "Por suas características, essas matérias-primas podem gerar renda para as famílias sem onerar os custos industriais", explica Leal.
Mesmo que a produção seja diversificada e respeite o meio ambiente, porém, o atendimento a escalas maiores continua sendo um desafio. "Os pequenos agricultores já são competitivos na produção de oleaginosas para o mercado de óleos vegetais. Portanto, também poderão sê-lo para o de biodiesel", diz Queiroz, da Petrobras.
Segundo o professor Ortega, da Unicamp, a produção sustentável de biocombustíveis deve ser vista sob outro prisma econômico, que não seja voltado para o atendimento de grandes demandas. Ele sugere, por exemplo, que os agricultores se associem a microdestilarias. "Uma associação de 20 produtores em um pequeno município pode produzir álcool suficiente para abastecer seus tratores, carros e a rede pública de transporte", diz Ortega.
Da cozinha para o motor
Se para os agricultores que se aventuram a produzir biodiesel e álcool há muitos entraves, mais tortuoso ainda é o caminho de quem aposta no óleo vegetal natural (OVN). "Nosso principal problema é o não reconhecimento desse produto como biocombustível, o que não acontece em países como Espanha e Alemanha", explica o pastor Werner Fuchs, da Rede Evangélica Paranaense de Assistência Social (Repas).
A entidade assessora pequenos agricultores do Paraná no trabalho com duas usinas de óleo vegetal, em Palmeira das Missões, em uma cooperativa que conta com cerca de 300 associados. Uma das unidades opera desde janeiro de 2006 e a outra está em fase de testes. Há ainda duas em processo de contratação no interior do estado.
Segundo Fuchs, a produção de OVN dá mais autonomia ao pequeno agricultor, que pode usar cultivos variados para sua obtenção, além de aproveitar os subprodutos. Dessa forma, ele passa a fornecedor de combustível e não simplesmente de matéria-prima para as empresas. "Nossa proposta é justamente ignorar a indústria, porque o agricultor processa a matéria-prima, se auto-abastece e comercializa o excedente. Outra possibilidade é fechar um contrato para fornecimento de certa quantidade de óleo vegetal para ser misturada ao diesel", diz ele.
Na verdade, é possível, também, que um motor a diesel funcione apenas com óleo vegetal. Vencedor do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social do ano passado, o Instituto Morro da Cutia de Agroecologia (Imca), de Montenegro (RS), desenvolveu um mecanismo que, acoplado ao motor, aquece o óleo de 80ºC a 90ºC, compensando a diferença de viscosidade com o diesel proveniente de petróleo. Paulo Lenhardt, que usa uma caminhonete movida a óleo de cozinha no seu dia-a-dia, afirma que a adaptação dos motores a diesel é simples: "Qualquer pessoa que tiver um mínimo de noção de mecânica faz a adaptação sem problema nenhum. Há tecnologia disponível, o que falta é vontade política", diz.
Além de recolher o óleo que seria descartado pelos restaurantes de Montenegro, o Imca tem se reunido com agricultores da região para montar um sistema inovador: eles produziriam o óleo vegetal e o venderiam na cidade. Depois, recolheriam o produto, já utilizado, para ser aproveitado como combustível.
Outro entusiasta do motor movido a óleo vegetal natural é o engenheiro mecânico Thomas Fendel. É dele o primeiro – e único – automóvel movido a OVN até hoje regularizado pelo Departamento Estadual de Trânsito de Santa Catarina. "Um juiz de Florianópolis entendeu que Fendel tem o amparo da lei para regularizar seu veículo. À luz do direito do consumidor, ele argumentou que as leis devem ter sentido produtivo e não destrutivo das economias populares", explica a advogada de Fendel, Ana Echevenguá.
Tanto Fendel quanto Lenhardt e Fuchs defendem o óleo vegetal em relação ao álcool e ao biodiesel, combustíveis que, além estarem muitas vezes baseados em monoculturas como a da cana e a da soja, têm sua comercialização dependente de autorização da ANP. "O biodiesel resulta de um processo químico, mais caro e centralizador, até porque é caracterizado como combustível e, por isso, fica sob o monopólio da Petrobras", diz Lenhardt. "Não entendo essa política concentradora", complementa.
Para Fuchs, a ausência de legislação sobre a venda de óleo vegetal como combustível acaba levando os agricultores a "correr por fora" e a utilizar o produto nos motores por sua conta e risco. "Eles podem alegar que estão produzindo alimentos, o que de fato acontece", diz.
Selo social
Por mais que ainda haja divergências em relação ao tipo de biocombustível a ser produzido, porém, num ponto todos concordam: as políticas públicas têm dado prioridade aos grandes investimentos, deixando de apoiar as iniciativas ambiental e socialmente sustentáveis desenvolvidas nas pequenas propriedades.
Embora o governo federal tenha criado o selo do combustível social, concedido a produtores de biodiesel que adquirem matéria-prima da agricultura familiar, essa medida ainda mantém o agricultor dependente das indústrias. "O apoio do Estado deveria ter como objetivo ajudar a estruturar os projetos da agricultura camponesa, de forma a permitir a participação dos agricultores em todos os elos da cadeia produtiva e não somente na produção de grãos", afirma Marcelo Leal, da Cooperbio.
Rui Valença, da Fetraf-Sul, concorda que o selo social representa um avanço para a agricultura familiar, mas com ressalvas: "Essa medida não garante a inserção autônoma do pequeno agricultor na nova cadeia produtiva, pois não vem acompanhada de políticas públicas de crédito e assistência. Também há pouca pesquisa em novas culturas, o que acaba por favorecer a monocultura da soja e da cana", afirma.
É essa também a opinião do pastor Werner Fuchs. Ele é um dos que acreditam que o governo federal optou por priorizar os grandes investidores. "Não houve coerência com a proposta de que o pequeno agricultor precisa ser dono do processo. Além disso, falta assistência técnica consistente para a produção de oleaginosas", afirma ele.
De acordo com o professor Enrique Ortega, mais uma vez a prioridade são as grandes extensões de cana-de-açúcar para a produção de etanol. Ele teme que o Brasil perca novamente a oportunidade de beneficiar a pequena propriedade: "Em vez de fazer a reforma agrária em terras degradadas pela agricultura química e pela pecuária extensiva de baixa produtividade, o governo federal oferece esses recursos a investidores nacionais e estrangeiros. E, ao agir assim, novamente promove a concentração de riqueza, a poluição e a remessa de lucros ao exterior".
A Unica, por sua vez, rebate as críticas dirigidas aos grandes produtores de cana, declarando que o etanol brasileiro gera redução de até 90% na emissão de gases causadores do efeito estufa, na comparação com a gasolina, e que o produto também leva vantagem sobre o etanol extraído do milho, que é produzido nos Estados Unidos. "Além disso, a cana ocupa muito menos espaço no Brasil do que outras grandes culturas, e a agricultura brasileira tem se caracterizado pela diversificação, e não por supostas monoculturas", afirma a entidade, em nota enviada por sua assessoria de imprensa.
Segundo Mozart Schmitt, da Petrobras, experiências como as desenvolvidas pela Cooperbio, que tem o apoio da estatal, podem apontar novos caminhos para a fabricação de etanol. "A Petrobras está avaliando a possibilidade de produção descentralizada de álcool combustível, em microdestilarias, usando matéria-prima proveniente da agricultura familiar", afirma.
A declaração do executivo da Petrobras deixa entrever no entanto que, enquanto o Brasil caminha para se tornar um dos grandes produtores mundiais de biocombustíveis, os projetos comunitários e cooperativados ainda recebem o status de experiência. Como na época do Proálcool, o país se encontra mais uma vez numa encruzilhada. A única certeza é que, agora, os pequenos agricultores parecem mais dispostos a participar da disputa.