Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Solano Trindade, o poeta do povo

Há cem anos nascia o artista que sabia usar a linguagem que todos entendiam

HERBERT CARVALHO


Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.

O autor desses versos que abrem o poema "Tem gente com fome" – musicado pelo compositor João Ricardo e gravado por Ney Matogrosso no LP "Seu Tipo", de 1979 – completaria cem anos no dia 24 de julho de 2008. O centenário de nascimento do poeta, pintor, ator e teatrólogo pernambucano Solano Trindade (1908-74) está sendo comemorado em todo o Brasil por entidades culturais, ativistas do movimento negro e militantes de partidos políticos de esquerda, que reverenciam a vida e a obra daquele que foi, de acordo com o historiador Clóvis Moura (1925-2003), "o grande animador da negritude popular, que fundia as reivindicações dos negros aos problemas fundamentais da luta de classes".


Solano Trindade / Foto: Reprodução

"Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva." Com essas palavras, Carlos Drummond de Andrade (1902-87) saudou, em 1944, o livro de estréia de Solano, Poemas de uma Vida Simples, considerado também pelo escritor e crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-78) "uma pequena preciosidade". Desse livro, Drummond ficou impressionado com o "Poema do Homem" e o "Canto dos Palmares". Uma das estrofes deste último resume a visão de mundo de Solano: "Eu canto aos Palmares/ odiando opressores/ de todos os povos/ de todas as raças/ de mão fechada/ contra todas as tiranias!"

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – do qual se afastaria por discordar da visão de que o problema do negro brasileiro era exclusivamente econômico, e não racial –, Solano Trindade foi um dos fundadores do que mais tarde se conheceria como movimento negro, assim como um animador cultural e um artista multimídia muito antes que esses conceitos existissem, como testemunhou o poeta e crítico Sérgio Milliet (1898-1966): "Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro".

As comemorações pelo centenário de Solano Trindade concentram-se nas três cidades em que ele viveu mais tempo. No Recife, onde nasceu, no bairro de São José, e ainda menino bebeu na fonte do folclore de danças como frevo, pastoril, bumba-meu-boi e maracatus, que iriam povoar para sempre seu teatro e sua pintura. Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense – uma das estações da Estrada de Ferro Leopoldina –, onde sua arte ganhou os contornos proletários que lhe valeriam prisões e apreensão de livros durante o governo Dutra (1946-51). E em Embu – município da Região Metropolitana de São Paulo que ele adotou, ajudou a batizar como Embu das Artes e a projetar internacionalmente nos anos 1960, como integrante de um núcleo de artistas plásticos primitivistas –, onde fica a sede do Teatro Popular Solano Trindade (construída em 2005), comandado por sua filha e herdeira artística Raquel, de 71 anos.

Negritude

No Recife do início do século 20, iluminado por lampiões a gás, vendedores perambulavam pelas ruas do bairro de São José, cantando pregões que seriam a primeira referência poética popular do menino Solano, como este: "Pitomba, tomba não tomba/ chora menino por um vintém/ pede a papai que mamãe não tem".

O contato com o folclore se deu pelas mãos do pai, exímio dançarino das danças populares pernambucanas, e por isso mesmo apelidado de "menino de ouro". Vem do berço, portanto, além do apurado sentido rítmico de sua poesia, a máxima que Solano usava para resumir seu método de criação: "Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte".

No Liceu de Artes e Ofícios da capital pernambucana, Solano cursou o propedêutico, equivalente ao atual ensino médio. Daí por diante, é como autodidata que ele constrói sua trajetória intelectual, com um curioso ponto de partida: uma breve atuação como diácono da Igreja Presbiteriana. Nessa época, suas primeiras poesias, publicadas por uma revista escolar de Garanhuns (PE), falavam do Gólgota e dos apóstolos, impregnadas de misticismo. Decepcionado, porém, com o distanciamento que a religião na época guardava dos problemas sociais, incluindo a discriminação contra os negros, ele logo a abandona, justificando sua saída com um versículo da própria Bíblia: "Se não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus, a quem não vês?"

Na década de 1930, ele abraça a causa de sua raça e funda no Recife, com o escritor José Vicente Lima e o pintor Barros Mulato, o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, que tinha por finalidade divulgar o trabalho de intelectuais e artistas negros, e a Frente Negra Pernambucana, cujo manifesto de fundação resume o que seria, durante toda a sua vida, a postura de Solano perante a questão: "Não faremos lutas de raça, porém ensinaremos aos irmãos negros que não há raça superior nem inferior, e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural. São anseios legítimos a que ninguém de boa-fé poderá recusar cooperação".

Surgem então os seus "Poemas Negros", que exaltam Zumbi e a resistência negra, mas também deixam clara uma postura que não admite xenofobia, nem um racismo às avessas, expresso na visão maniqueísta que transforma os negros em "bons" e os brancos, indistintamente, em "maus". No poema "Negros", Solano adverte: "Negros que escravizam e vendem negros na África não são meus irmãos/ Negros senhores na América a serviço do capital não são meus irmãos/ Negros opressores em qualquer parte do mundo não são meus irmãos/ Só os negros oprimidos, escravizados, em luta por liberdade, são meus irmãos./ Para estes tenho um poema grande como o Nilo".

Após participar do 1º e do 2º Congresso Afro-Brasileiro, no Recife e em Salvador, e depois de breve estada em Belo Horizonte, em 1940 Solano aceita o desafio proposto pelo poeta Balduíno de Oliveira, de criar um Grupo de Arte Popular em Pelotas (RS). Essa primeira tentativa de dar forma a um teatro do povo, num estado embranquecido e europeizado pela imigração, fracassa por causa de uma enchente, que carregou instrumentos e figurinos.

Vermelhinho

Em 1942, Solano Trindade fixa-se no Rio de Janeiro e vai trabalhar no Serviço Nacional de Recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Praia Vermelha, onde além do sustento para a família obtém subsídios para seus estudos sobre a condição do negro no Brasil. Ao mesmo tempo sua mulher, a terapeuta ocupacional Maria Margarida – uma evangélica que passou parte da vida servindo cafezinhos para os amigos comunistas do marido e que seria seu grande esteio, até a hora da morte – desenvolvia um pioneiro trabalho com Nise da Silveira (1905-99), a psiquiatra que revolucionou o tratamento de doentes mentais no Brasil: no Hospital Pedro II, no bairro do Engenho de Dentro, elas introduziram, entre outras atividades terapêuticas como pintura e escultura, a prática de danças folclóricas pelos doentes, que até então eram mantidos isolados, tratados com choques elétricos e amarrados em camisas-de-força. Sobre o ecumenismo dos pais, a filha Raquel conta: "Lá em casa, em uma prateleira feita com caixa de cebola, a Bíblia e O Capital, de Karl Marx, sempre estiveram lado a lado".

Em 1944, nos estertores do Estado Novo, a cultura negra estava em alta no Brasil, refletindo a derrota das forças racistas do nazismo que se prenunciava na Europa e a grande participação de afrodescendentes entre os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Surgiam novidades como a Orquestra Afro-Brasileira do maestro Abigail Moura, o Balé Afro, de Mercedes Batista, e o Teatro Folclórico, de Haroldo Costa, que convidou Solano e sua mulher a ensinar as danças e ritmos afro-brasileiros. Mais tarde essa experiência se transformaria, sob a direção do polonês Askanazi, no Brasiliana, grupo de danças brasileiras que bateu recordes de apresentações no exterior.

Após a queda de Getúlio Vargas, em 1945, Luís Carlos Prestes deixa a prisão e o PCB emerge para a breve legalidade que desfrutaria até 1947, quando o despontar da Guerra Fria o empurraria para nova clandestinidade. Nesse interregno, porém, o Café Vermelhinho, na Rua Araújo Porto Alegre, em frente ao prédio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio de Janeiro, reúne a intelectualidade efervescente daquela época de democracia e esperança: pintores como Djanira e Aldemir Martins, poetas como Ferreira Gullar e Paulo Mendes Campos, atores como Ruth de Souza e Grande Otelo, produtores teatrais como Abdias do Nascimento e Pascoal Carlos Magno.

Ali aparecia, todas as tardes, a figura singular de Solano Trindade, assim descrita pelo professor Miécio Tati (co-autor da peça Malungos, sobre os quilombos, escrita por ambos e até hoje não publicada): "A pele enfumaçada, olhos distantes e tristonhos, poucos dentes e maus; o cabelo é cortado rente, já meio sarapintado e às vezes protegido por um feltro vermelho; mãos longas e femininas; e, parece, quando anda, que desliza pelas nuvens de tão manso que vai. Se lhe pusessem uns óculos e lhe enrolassem o corpo em pano branco, cá teríamos um Gandhi. Sobraçando uma pasta onde carrega os sonhos – alguns versos ou papéis sobre o teatro que fundou – poderia ser fundido, como símbolo de bronze da paciência tradicional de um povo, artista ou não artista, à espera de bons dias".

Linguagem

O teatro então fundado por Solano não é, como sugerem equivocadamente alguns sites na internet, o Teatro Experimental do Negro, criado e liderado por Abdias do Nascimento, que tinha como prioridade a montagem de textos que focalizassem a problemática do racismo – como O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953), primeiro espetáculo do grupo – e a participação exclusiva de artistas negros.

Embora reconhecesse a necessidade de o negro brasileiro assumir orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação, Solano achava que isso deveria ser feito valorizando a cultura popular brasileira de matiz negra, sem excluir os brancos. Por isso fundou, junto com a esposa e o sociólogo Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro (TPB), cujo elenco era formado por domésticas, operários, estudantes e comerciários – negros em sua maioria, mas também brancos – que declamavam poemas, formavam jograis e apresentavam espetáculos de batuques, congadas, lundus, jongo, capoeira, bumba-meu-boi, chegança, dança das fitas e inúmeras outras manifestações da autêntica cultura popular brasileira.

O sucesso do TPB foi estrondoso. Era convocado a realizar espetáculos especiais para todas as companhias estrangeiras que passavam por aqui, como a Comédie Française, a Cia. Marcel Marceau, a Ópera de Pequim e a Cia. Italiana de Comédia, e para personalidades como Edith Piaf e Jean Sablon. Participou das comemorações do IV Centenário de São Paulo (1954) e no ano seguinte deslumbrou platéias na Polônia e na então Tchecoslováquia.

Em paralelo, Solano desenvolveu carreira de ator, que o levou a participar da peça Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro Maria Della Costa, e de filmes como Agulha no Palheiro, Santo Milagroso e A Hora e a Vez de Augusto Matraga.

No teatro, como na poesia, a obsessão de Solano Trindade era "falar ao povo numa linguagem que ele entenda". Na introdução do livro Cantares ao Meu Povo, de 1961, ele diz: "Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia. Aprendi muito com todos eles. Porém, a minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral as reivindicações sociais e políticas, e nas mulheres, em particular, o amor".

Nesse mesmo ano, após uma apresentação do TPB em São Paulo, é procurado pelo escultor Claudionor Assis Dias, que o convida a conhecer Embu, onde já viviam dois outros grandes artistas plásticos, o pintor e escultor Cássio M’Boy (1903-1986) e o japonês Tadakio Sakai (1914-81), premiado escultor que trabalhava com terracota. Solano vai com toda a trupe do TPB e apaixona-se pela antiga vila dos jesuítas. Lá ele cria, junto com Assis, a Feira de Artes e Artesanato (1969) e promove espetáculos do TPB, atraindo as legiões de turistas estrangeiros que até hoje afluem a Embu nos finais de semana.

No início dos anos 1970, no auge da ferocidade da ditadura militar, Solano descobre que tem arteriosclerose, que em 1974 o mata, nos braços da mulher Margarida e da filha Godiva, no subúrbio carioca de Jacarepaguá, onde está enterrado, no cemitério do Pechincha.

Dois anos depois, em 1976, a Escola de Samba Vai-Vai, atual campeã do carnaval paulistano, homenageia em seu enredo o "poeta negro" e "poeta do povo", títulos que lhe foram conferidos às vezes até de modo depreciativo, mas que lhe agradavam profundamente. "Eles me dão uma consciência exata de meu papel na defesa das tradições culturais de meu povo, na luta por um mundo melhor."

Dinastia

Herdeiro direto da tradição negro-rebelde iniciada no século 19 por Luís Gama (1830-82), Solano Trindade ocupa o centro de uma dinastia cuja história se confunde com a epopéia da raça negra neste lado do Atlântico e com a formação do povo brasileiro, nos últimos 200 anos.

Descendente de uma escrava africana que se destacou na Revolta dos Malês (1835), na Bahia, Solano trouxe no sangue a mistura das três raças fundadoras da nacionalidade: seu pai, o sapateiro Manoel Abílio, era filho de negra com branco, e sua mãe, a quituteira Emerenciana, uma cafuza de pai negro e mãe índia.

De seu casamento com Maria Margarida nasceram seis filhos, dois mortos prematuramente e um assassinado pela ditadura militar após o golpe de 1964, por pertencer a um dos Grupos dos Onze, de Leonel Brizola. Dos três filhos restantes, a funcionária pública aposentada Godiva não tem atuação artística ou política, mas Liberto, dirigente sindical, militante do movimento negro e do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), foi mestre-sala da escola de samba paulistana Mocidade Alegre.

Coube principalmente a Raquel Trindade dar continuidade à obra do pai, o que faz como pintora e folclorista. Casada oito vezes, um de seus filhos, Vitor Trindade, além da semelhança física com o avô, é o que mais se dedica à preservação de sua memória. Compositor, violonista e percussionista, ele acaba de chegar da Alemanha, onde viveu por cinco anos, para coordenar os festejos de homenagem a Solano, que, além da reedição de livros, do lançamento de dois documentários e de espetáculos teatrais, incluem o show Cantando Solano Trindade, com poemas musicados por Vitor, já apresentado nas unidades Pompéia, Ipiranga e Pinheiros do Sesc-SP.

"Solano ensinou o negro brasileiro a se olhar no espelho e a se enxergar bonito", resume Vitor, ao definir a importância cultural de seu avô, com quem conviveu na infância. É nesse espelho que os filhos de Vitor, Manoel e Zinho Trindade, bisnetos de Solano, hoje se olham e se vêem como integrantes do movimento hip-hop, que canaliza para atividades culturais as energias e a rebeldia da juventude negra das periferias das grandes cidades brasileiras. 


Poema do homem

Desci à praia
para ver o homem do mar
e vi que o homem
é maior que o mar

Subi ao monte
pra ver o homem da terra
e vi que o homem
é maior que a terra

Olhei para cima
para ver o homem do céu
e vi que o homem
é maior que o céu.


Verso inédito

O livro Solano TrindadeO Poeta do Povo (Cantos e Prantos Editora, São Paulo, 1999, atualmente esgotado, mas que deverá ser reeditado) reúne, além de fotos e dados biográficos, toda a produção poética de Solano, à exceção de uma curta poesia, que permaneceu inédita, assim como as circunstâncias de sua criação, apenas recentemente reveladas pelo escritor Caio Porfírio Carneiro, secretário executivo da União Brasileira de Escritores (UBE):

"Em 1964, poucos dias antes do golpe, eu estava com Solano Trindade no alto de um edifício na Praça da República, no centro de São Paulo, observando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade; de repente Solano avistou, em meio às senhoras elegantes que passavam, um homem esfarrapado, que gritava slogans contra o presidente Goulart. A figura insólita inspirou-lhe uns versos escritos na hora, que guardei durante muitos anos." A poesia é "João", a seguir publicada pela primeira vez: 

Que merda é a vida do João.
Não tem o que comer.
Não tem o que vestir.
Não tem o que calçar.
Não tem com quem amar.
E é anticomunista.

 

 

Comente

Assine