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O patrimônio precisa de proteção

Iniciativas voltadas para a preservação cultural e histórica ganham força no país

FRANCISCO LUIZ NOEL


Igrejas de São Francisco de Assis (esq.) e Nossa Senhora
do Carmo, em Mariana (MG) / Foto: Paulo Mariano

Modernista de primeira hora e pesquisador da tradição popular, o escritor Mário de Andrade foi quem primeiro desenhou no papel, em março de 1936, a tábua de salvação para os bens de valor histórico e artístico que ajudam a dar corpo à brasilidade. Em 18 páginas datilografadas, a pedido de Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde Pública, Mário traçou a estrutura do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, criado um mês depois por Getúlio Vargas. Sonho antigo da intelectualidade, a instituição fez os primeiros tombamentos em 1938. Em nome do futuro, o país começava a proteger das picaretas e da ação do tempo o Brasil do passado.

O tratamento negligente dispensado aos bens legados pela Colônia e pelo Império tocava fundo os brios dos intelectuais. Em novembro de 1937, quando o serviço idealizado por Mário de Andrade preparava-se para iniciar os tombamentos, Capanema, referindo-se ao passado recente, queixava-se: "Proprietários sem escrúpulos ou ignorantes deixavam que bens os mais preciosos se acabassem ou se evadissem, ante o descaso ou a inércia dos poderes públicos. As vozes de um ou outro patriota ou o esforço deste ou daquele homem público não traziam o remédio necessário".

O lamento era endereçado a Getúlio Vargas, no mês do golpe que produziu o Estado Novo. Em janeiro de 1937, rebatizado como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), o órgão fora estruturado e entregue ao comando do jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade. Mas o ministro pedia regras claras de ação a Vargas, argumentando que a preservação dependia de "princípios que não somente traçassem o plano de ação dos poderes públicos, mas ainda assegurassem, mediante o estabelecimento de penalidades, a cooperação de todos os proprietários". Em 30 de novembro, o país ganhava o decreto-lei 25, que instituía o tombamento.

Com o dispositivo jurídico, quatro livros de tombo foram criados – exatamente como previa o anteprojeto de Mário, redigido em papel timbrado do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo, que ele chefiava. Dependendo das características, as relíquias seriam inscritas no Livro de Tombo Histórico, no Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, no de Belas-Artes ou no de Artes Aplicadas. Documentos da história da preservação no país, os antigos livros também são objeto de proteção especial, no Arquivo Noronha Santos, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan, sucessor do Sphan), no Palácio Gustavo Capanema, centro do Rio de Janeiro. O prédio, marco da arquitetura moderna, é tombado desde 1948.

Uma das edificações mais jovens do Livro de Belas-Artes, o edifício é símbolo de uma elite intelectual que ansiava por um Brasil moderno havia tempos, desde antes mesmo da famosa Semana de Arte de 1922. Com 16 andares sobre pilotis, foi erguido para abrigar o Ministério da Educação e inaugurado em 1943, dando forma às idéias do francês Le Corbusier, papa da nova arquitetura. O projeto passou pelas pranchetas de nomes como Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Afonso Eduardo Reidy. Foi um dos primeiros arranha-céus envidraçados do mundo, com jardins de Burle Marx e painéis azulejados de Cândido Portinari. O pintor também assinou quadros e murais, que convivem com esculturas de Bruno Giorgi.

Do moderno ao colonial

A reverência a ícones do modernismo era, porém, exceção à regra na fase heróica da proteção ao patrimônio, só encerrada nos anos 1970. No Brasil que se industrializava e urbanizava em meio a sobressaltos políticos e desigualdades sociais, o ponto focal da preservação estava nas preciosidades do passado colonial – com Minas Gerais à frente. "Havia um país a proteger e grandes distâncias a superar. E tudo isso com um pessoal técnico muito reduzido", observa no Iphan o diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, Dalmo Vieira Filho. Era vasto o desafio dos pioneiros – entre eles, funcionários como Niemeyer, Lúcio Costa e, nos anos 1940, o próprio Mário de Andrade.

Não é sem motivo que a cidade mineira de São João del Rei abriu o Livro de Belas-Artes, em 4 de março de 1938. Formado pelo agrupamento de povoados surgidos na corrida do ouro nos Campos das Vertentes, no início do século 18, o sítio histórico teve mais de 700 imóveis tombados. As igrejas, representativas do barroco português, são destaque – entre elas, as do Rosário, Pilar, Carmo, Mercês e São Francisco de Assis, com fachada concebida por Aleijadinho. Das construções civis, são singulares as pontes da Cadeia e do Rosário, levantadas em pedra de cantaria para unir os dois lados da cidade mineradora.

No veio da memória dos tempos do ouro, foram tombados em seguida os conjuntos urbanísticos de Ouro Preto e Tiradentes. Antiga capital de Minas Gerais, Ouro Preto guarda em seus becos e ladeiras o mais expressivo exemplo da urbanização setecentista de estilo português. Pontilhando o casario colonial, sobressaem jóias como as matrizes de Nossa Senhora da Conceição e do Pilar, o Palácio dos Governadores, as casas dos Contos e de Câmara e Cadeia, que abriga o Museu da Inconfidência. Em 1981, foi a primeira de dez cidades brasileiras elevadas a Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Com sete décadas de trabalho, o Iphan acumula mais de 20 mil imóveis e 83 conjuntos urbanos em seus livros de tombo. Ao acervo, somam-se 12 sítios arqueológicos e milhares de obras de arte e documentos. A lista de bens tombados no país inteiro é, porém, muito maior, incluídos os tombamentos estaduais e municipais. Essas iniciativas ganharam força a partir dos anos 1970, quando o patrimônio histórico e artístico foi descoberto pelos estados e prefeituras.

Aos poucos, multiplicaram-se país afora os órgãos e conselhos de patrimônio histórico, abrindo passagem não só a tombamentos, mas também a políticas de restauração e uso de bens notáveis. No plano tributário, um estímulo à preservação é a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) concedida por prefeituras como a de São Paulo, em troca da manutenção de imóveis tombados. Os estados também vêm criando mecanismos de incentivo, como o ICMS Patrimônio Cultural, em Minas Gerais. A iniciativa eleva os repasses do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços para prefeituras de cidades que possuem conselhos de preservação e bens conservados.

Avanços e tropeços

"A preservação ainda é um processo em construção no Brasil", avalia Dalmo Vieira Filho, do Iphan. "Nosso estoque patrimonial é pequeno. Precisamos fazer com que esses bens sejam a base de uma estrutura que gere trabalho e conhecimento." Ele observa, porém, que as vitórias saltam aos olhos nas últimas décadas, apesar das dificuldades. Nos anos 1970, vigorou o "bota abaixo", promovido pelo desenvolvimentismo e pela urbanização acelerada do milagre econômico. Como contraponto, no início da década de 1980, o preservacionismo saiu fortalecido com a entrega do comando do Sphan ao designer Aloísio Magalhães. Nos anos 1990, porém, a ação estatal refluiu, do governo de Fernando Collor ao de Fernando Henrique Cardoso.

Presidente do Sphan de 1985 a 1987, o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, também ressalta, apesar dos percalços, o saldo positivo. "A Constituição de 1988 consagra um artigo inteiro ao patrimônio, que conta com organismos atuantes nos estados e municípios, além de organizações não-governamentais e fundações. O Ministério Público tornou-se parceiro decisivo, e há leis de incentivo. As campanhas se multiplicam. Fala-se em bens imateriais e naturais com o mesmo desembaraço com que se faz a defesa dos bens construídos", enumera. "A sociedade e o cidadão reconhecem e dão atenção ao tema, em sua imensa pluralidade. Estamos maduros e capazes diante de uma tarefa que não tem fim."

A necessidade de militância permanente é destacada pelo presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), José Eduardo Lefèvre. Um dos grandes desafios, segundo ele, é consolidar na sociedade uma posição clara sobre o que deve ser preservado. "A visão dos arquitetos e historiadores não coincide necessariamente com a da população, embora as duas sejam importantes. Os especialistas às vezes antevêem o que o público não percebe, mas o apoio popular é o melhor suporte para a preservação", afirma. As polêmicas decorrem, justamente, dos interesses e visões divergentes.

Os paulistanos passaram por isso em agosto de 2007, quando a Câmara dos Vereadores aprovou projeto que cassava o poder de tombamento do Conpresp e transferia a prerrogativa ao chefe do Executivo. Entre os motivos da investida contra o conselho estavam o tombamento de 149 imóveis no centro antigo e a decisão de proibir espigões perto dos parques da Aclimação e Independência e de bens tombados no bairro da Mooca. Serenados os ânimos, os itens do projeto que esvaziavam o Conpresp foram vetados pelo prefeito Gilberto Kassab, que criou uma comissão para rever as leis municipais de preservação.

"O ponto crucial da polêmica está no grande aquecimento do mercado imobiliário paulistano, que gera pressão fortíssima sobre a preservação de bens imóveis. Proprietários e empreendedores querem de toda forma aproveitar o momento propício para a realização de lucros", diz Lefèvre. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), ele toca na ferida que levou o compositor Caetano Veloso a associar à cidade "a força da grana que ergue e destrói coisas belas", na célebre Sampa, de 1978. "É essencial encontrarmos caminhos para conciliar lucros com preservação", prega o presidente do Conpresp.

Empreitada nacional

O fôlego novo demonstrado pelo Iphan se encaixa na conjunção dos ventos que sopram a favor da preservação no Brasil. No seu departamento, exemplifica Dalmo Vieira Filho, a dotação anual subiu de R$ 15 milhões para R$ 30 milhões entre 2004 e 2008. Isso sem contar o programa Monumenta, dedicado à restauração de bens resguardados por tombamento federal, e projetos viabilizados por leis de incentivo à cultura. Outra boa notícia protagonizada pelo instituto, em 2006, foi a realização do primeiro concurso público desde 1982, com a admissão de 200 profissionais em várias partes do país.

O último conjunto arquitetônico-urbanístico tombado pelo Iphan é o centro velho de João Pessoa. Fundada em 1585, a capital paraibana teve 370 mil metros quadrados colocados sob proteção em dezembro. São 502 edificações em 25 ruas e seis praças da Cidade Alta, bairro do Varadouro e Porto Capim, que guardam as características da urbanização típica das povoações portuguesas no século 16. O tombamento aplaina o terreno para investimentos federais, estaduais e municipais na recuperação de passeios e imóveis e na retirada da fiação aérea, que interfere na estética das fachadas.

Brasília também não está mais fora dos livros de tombo. Em dezembro, dias antes do centenário de Niemeyer, o Iphan tombou 23 obras do arquiteto no Plano Piloto – do Palácio do Planalto à Catedral, passando pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). "Nunca se está livre de governantes que querem fazer adaptações de toda ordem num prédio", diz Dalmo Vieira Filho. Ele ressalva, porém, que o tombamento ocorreu "mais para reconhecer o valor que por ameaça aos imóveis".

Os próximos tombamentos federais, segundo o Iphan, vão incluir novas áreas em Belém e chegar, ainda no Pará, às cidades de Santarém e Óbidos, que possuem prédios do ciclo da borracha. Na fila, estão bens de vários pontos do país, como Paranaguá (PR), Parnaíba (PI), Porto Nacional (TO), Cáceres (MT) e Xapuri (AC), onde está a casa em que viveu Chico Mendes. Uma das marcas dessa cruzada em defesa do patrimônio, salienta Vieira Filho, é a ampliação do conceito de preservação e a busca de parcerias locais, a fim de que os bens tombados produzam resultados econômicos para a população, como ocorre nas cidades históricas de Minas Gerais e na pernambucana Olinda.

Na empreitada do Ministério da Cultura nos santuários do patrimônio nacional, o carro-chefe é o Monumenta. Parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Unesco iniciada em 2000, o programa engloba 26 cidades, eleitas por conta da representatividade histórica ou da urgência de obras. A restauração totaliza 168 bens em 150 lugares, complementada com ações para a sustentabilidade da preservação, como a promoção de atividades econômicas, a formação de profissionais e o apoio a planos urbanos que valorizem o patrimônio histórico. Outra frente de atuação consiste em financiamento para recuperação de 929 imóveis privados selecionados.

Desde 2000, em 16 estados, o Monumenta acumula investimentos de US$ 125 milhões (R$ 218 milhões), rateados entre o BID, os governos federal, estaduais e municipais e empresas, em obras de restauração de igrejas e conventos, fortificações, palacetes, ruas e edificações particulares. As cidades beneficiadas são de todos os portes – de São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus às pequenas Alcântara (MA), Cachoeira (BA) e São Francisco do Sul (SC), passando por Ouro Preto, Congonhas do Campo (MG) e Olinda. O governo federal mantém vivo o programa mesmo tendo expirado a participação do BID, em 2007.

Patrimônio sustentável

Olinda, ao lado do Recife, é um dos xodós do Iphan. Uma das mais antigas povoações portuguesas do nordeste, fundada em 1535, a cidade dá exemplo de como a mistura de acervo patrimonial e atividades culturais pode injetar vida na rotina urbana e gerar empregos. "O patrimônio histórico é vital para a gente", resume a secretária municipal de Cultura, Márcia Souto, apontando o turismo e os serviços como a base da economia local. Com 390 mil habitantes, Olinda recebe 2 milhões de visitantes por ano – a maioria no carnaval, quando os foliões tomam as ruas e ladeiras da área tombada, que abrange 3,3 mil casas, sobrados e igrejas coloniais.

O clima de festa não acaba na Quarta-Feira de Cinzas. Além da revitalização do Parque do Carmo, no coração do sítio histórico, feita pelo Monumenta, a prefeitura promove várias atividades durante o ano, de olho no turismo cultural, e estimula os moradores a usufruir do patrimônio. Em setembro, o projeto Arte em Toda Parte abre à visitação cem ateliês de artes plásticas. Em novembro, a Mostra Internacional de Música em Olinda (Mimo) leva o erudito e o popular às igrejas. Desde 2005, como parte dessa mobilização, 1,4 mil profissionais foram treinados em história, arquitetura e atendimento ao turista – das tapioqueiras aos condutores de turismo, dos policiais aos empregados de hotéis.

Outro cartão-postal na coleção de bons exemplos do Iphan é São Francisco do Sul, no litoral norte de Santa Catarina. Com 37 mil habitantes, colonizada no século 17 por açorianos, a cidade vem tendo áreas históricas reurbanizadas e imóveis restaurados pelo Monumenta, que conta com recursos federais e municipais da ordem de R$ 8 milhões. Os investimentos incluem obras em construções como a do Museu Nacional do Mar, um dos grandes atrativos do local, na ilha de São Francisco. A atividade portuária é o forte da economia de São Chico, como é conhecida, mas, aliada às praias, a beleza multicolorida do casario histórico tem grande potencial de geração de empregos.

Sustentabilidade é palavra-chave no discurso preservacionista do século 21. Como Olinda e São Chico, outras cidades mostram como o uso cultural e turístico do patrimônio pode alavancar a economia. Ouro Preto é uma delas, assim como Tiradentes, que abriga badalados festivais nacionais de cinema e gastronomia. No Rio de Janeiro, a também colonial Parati otimiza o potencial do sítio histórico com a concorrida Festa Literária Internacional de Parati (Flip). Outros locais com acervo de igual importância tateiam, porém, nesse caminho. É o caso do Pelourinho, em Salvador, onde a conversão do casario antigo num shopping turístico não sustenta a restauração dos imóveis.

À aposta no uso comercial, o Iphan contrapõe a bandeira residencial, mirando o sucesso de Olinda, onde as moradias dominam a área tombada. Dalmo Vieira Filho observa que a retomada habitacional dos centros históricos é tendência na Europa e pode reverter a degradação de áreas pródigas em bens culturais no Brasil, como a zona portuária do Rio de Janeiro. O bom uso é indispensável, reforça o prefeito mineiro Ângelo Oswaldo, que juntou numa só secretaria municipal as demandas do patrimônio e do desenvolvimento urbano. "Em Ouro Preto, tudo o que temos é usado", diz. "O importante é compatibilizar utilização e preservação."

Novos conceitos

A causa do patrimônio histórico-cultural inicia o século 21 com várias inovações programáticas. O Iphan está tirando do papel o conceito de paisagem cultural, criado pela Unesco em 1972 para locais onde a interação da atividade humana e da natureza produz identidades singulares. A primeira dessas paisagens oficializada no país foi a região de imigração de Santa Catarina, em dezembro. Espalhada por mais de 30 municípios, como Blumenau e Itajaí, a área abrange 59 casas e dois núcleos rurais. Da culinária à música, da linguagem às festas, esses bens guardam a marca da imigração polonesa, alemã, italiana e ucraniana no estado desde o século 19.

Sem a rigidez do tombamento, o novo dispositivo tende a estimular o usufruto turístico das paisagens culturais, barrando sua destruição. A região catarinense recém-enquadrada no conceito é um dos roteiros nacionais de imigração propostos pelo Iphan. Uma das próximas paisagens culturais será, na Paraíba, o núcleo caiçara de Pitimbu, que conserva a tradição de choupanas e jangadas de dois mastros, resistindo à pecha de entrave estético ao avanço do turismo convencional. O Iphan espera que, valorizada com esse reconhecimento oficial, a comunidade redobre as forças para legar suas raízes ao futuro – razão maior de todas as formas de preservação da memória cultural. 

 

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