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Cinco décadas de paixão e descaso

Amantes do futebol comemoram o cinqüentenário do primeiro título mundial, mas continuam maltratados

CEZAR MARTINS


Arte PB

Quando juntou as duas mãos na base da taça Jules Rimet e a ergueu sobre a cabeça, o zagueiro Bellini queria apenas ajudar os fotógrafos a enquadrar melhor o primeiro troféu ganho pelo Brasil em uma Copa do Mundo de futebol. O gesto feito no dia 29 de junho de 1958, em Estocolmo, na Suécia, hoje pode ser visto como um sinal involuntário que marcou o despertar de uma das maiores paixões dos brasileiros a partir daquele momento, já que até então o país estava mais para motivo de chacota do que potência na modalidade. Embora tenha arrastado multidões para os estádios, nestes últimos 50 anos o futebol também foi pano de fundo para incontáveis episódios de corrupção, desrespeito às leis e descaso com os próprios torcedores – como reforçam as sete mortes provocadas, no final do ano passado, pelo desabamento de parte da arquibancada do estádio da Fonte Nova, na Bahia. No cinqüentenário da primeira conquista da seleção brasileira, é inevitável refletir sobre o massacre praticado contra o esporte que se tornou patrimônio cultural verde-amarelo e também uma área digna de atenção da economia nacional.

A situação dificilmente seria a mesma se, em 1958, o grupo de jogadores que desembarcou na Suécia não tivesse conseguido vencer a seleção anfitriã na final por 5 a 2 e feito todo o país esquecer a derrota de oito anos antes, quando o Uruguai ganhou seu segundo título mundial dentro do estádio do Maracanã. O episódio, que entrou para a história conhecido como "El Maracanazo", havia provocado na sociedade da época uma descrença no futebol e feito adormecer o sentimento que só floresceria mais tarde, com a equipe que tinha Pelé, Garrincha e outros craques.

Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e apaixonado por futebol, Fábio Sá Earp afirma que o ano de 1958 representa um marco na história brasileira sob muitos aspectos. "A economia estava muito aquecida, havia a expectativa da construção de Brasília e o plano de metas do governo de Juscelino Kubitschek. Assistia-se a uma efervescência cultural em todo o país e ao surgimento da bossa nova. E no esporte, com o título da seleção, o brasileiro entendeu que estava inserido em uma cultura global na qual precisava competir e, principalmente, que tinha condições de vencer seus rivais", opina o autor do livro Pão e Circo – Fronteiras e Perspectivas da Economia do Entretenimento.

Na volta ao Brasil depois da conquista inédita, os jogadores ficaram surpresos com a receptividade estrondosa. Um dos integrantes daquele time, o então ponta-esquerda Mário Jorge Lobo Zagallo, lembra que o grupo não tinha consciência de como a torcida reagiria ao título. "Em 1958, os veículos de comunicação eram mais precários. A gente imaginava que deveria haver muita festa no Brasil, mas, na verdade, estávamos praticamente isolados. Não víamos a hora de chegar. De Estocolmo ao Rio de Janeiro, foram 34 horas em um avião top de linha da Panair. Desde a chegada até o Palácio do Catete, onde o presidente Juscelino nos esperava, fomos recepcionados por milhares de pessoas que acenavam e gritavam. No meio do caminho, a revista ‘O Cruzeiro’, na época a principal publicação do Brasil, montou um palanque especial, onde cada um de nós foi homenageado." Assim como Assis Chateaubriand fez naquele ano com seu veículo de comunicação, outros empresários e políticos também viram que podiam lucrar com a paixão ardente que nascia no povo brasileiro.

Novos tempos

Contudo, na virada do século, essa estreita ligação entre o esporte e grupos empresariais virou caso de polícia. Há suspeitas de que diversos acordos fechados entre clubes e investidores internacionais nos últimos anos tenham sido apenas fachada para acobertar esquemas de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e evasão de divisas em uma atividade pouco fiscalizada. Até agora, ninguém foi preso por esse tipo de crime envolvendo o futebol, mas a reputação de cartolas e agentes de jogadores ficou bastante arranhada.

Nos últimos dois anos, o Ministério Público de São Paulo atuou em três investigações em que o esporte bretão era o cenário: a possível lavagem de dinheiro da máfia russa por meio da negociação de jogadores do Corinthians, a emissão de notas fiscais frias na mesma agremiação e a corrupção de árbitros que recebiam propinas para favorecer apostadores nos jogos para os quais eram escalados. "Nosso direito penal, da década de 1940, poderia servir para o futebol daquela época. Mas não está modernizado para fazer frente a esses casos com que nos deparamos. É extremamente relevante que o Ministério Público faça essas investigações. Crimes de colarinho branco, às vezes, causam mais dano do que um latrocínio cometido na esquina. Quando acontece no futebol, então, é uma lesão à fé pública e precisa ser investigado da mesma forma", afirma o promotor José Reinaldo Guimarães Carneiro, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco).

A parceria entre o Media Sports Investments (MSI), um fundo formado por investidores britânicos e russos, e o Corinthians começou a ser investigada pelo Gaeco em 2005, sob a suspeita de que seria uma maneira de o foragido da justiça russa Boris Berezovski promover lavagem de dinheiro no Brasil. O relatório montado pelos promotores foi o ponto de partida para uma investigação maior feita pela Polícia Federal, batizada de "Operação Perestroika", em referência ao processo de abertura da economia da União Soviética conduzido por Mikhail Gorbatchov. Escutas telefônicas divulgadas no ano passado mostram o ex-presidente corintiano Alberto Dualib e outros integrantes da diretoria cobrando mais dinheiro do grupo e, em alguns casos, ameaçando denunciar todo o esquema de corrupção que estaria montado. A ação resultou em um processo penal, solicitado pelo Ministério Público Federal, que determinou a prisão de Berezovski e do iraniano Kia Joorabchian, presidente do MSI. O Corinthians não foi o único clube brasileiro, no entanto, a fazer parcerias suspeitas nos últimos anos. Equipes como Grêmio, Flamengo, Cruzeiro e Palmeiras também precisaram dar explicações à Receita Federal de negócios que haviam fechado ou estavam prestes a concluir com outras empresas e grupos de investimento que acabaram falindo antes de injetar grandes quantias de dinheiro no país.

Nem sempre os crimes por trás do futebol são tão elaborados a ponto de envolver transações internacionais milionárias. Em março deste ano, a 15ª Vara Criminal de São Paulo aceitou denúncia contra Dualib e outros ex-integrantes da diretoria corintiana por fraudarem notas fiscais referentes a serviços que não foram executados. Segundo a investigação feita em conjunto pelo Gaeco e pelo Departamento de Investigações sobre Crime Organizado, da Polícia Judiciária do Estado de São Paulo, foram desviados do Corinthians mais de R$ 1,43 milhão com a colaboração de quatro empresas aparentemente fantasmas – N.B.L. Serviços Contábeis, CSC Consultoria em Informática, Angulus-Ware Sistemas e Tecnosys Software. "Chegou ao Gaeco uma denúncia anônima acompanhada de notas fiscais. Na investigação nos deparamos com um crime extremamente simplório", afirma Carneiro. Coincidência ou não, depois dessas duas acusações o time do Corinthians teve um desempenho ruim em campo e em 2007 foi rebaixado para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.

Outras fraudes dessa natureza foram denunciadas em grande quantidade nos últimos anos em todo o país – envolvendo até mesmo jogadores e técnicos que sonegavam impostos –, o que ajuda a entender por que a maioria dos clubes de futebol praticamente faliu. O governo brasileiro calcula que as agremiações têm uma dívida superior a R$ 1,5 bilhão com INSS, FGTS, Receita Federal e Tesouro. Para liquidar esse débito, foi criada a Timemania, uma nova loteria com que se pretende saldar os pagamentos em atraso dos times que cederam o direito de uso de seus escudos nas cartelas disponibilizadas aos apostadores. A Caixa Econômica Federal estima uma arrecadação de R$ 250 milhões apenas no primeiro ano. Na cerimônia realizada em Brasília para anunciar a regulamentação da nova loteria, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfatizou a necessidade de "recuperar o futebol, que está na carne, no sangue, na cabeça e na cultura do brasileiro". O primeiro sorteio da Timemania foi realizado no dia 1º de março, e Pelé, a maior revelação da Copa de 1958, foi contratado como garoto-propaganda.

O professor Sá Earp avalia como benéfica a medida adotada pelo governo para sanar as dívidas, mas alerta que é preciso haver um melhor gerenciamento do futebol para evitar sua deterioração dentro do contexto cultural brasileiro. "A Timemania é o governo arbitrando em causa própria, e isso não é ruim. Mas ela sozinha não tem como salvar o futebol. Muitos clubes ainda são feudos de alguns dirigentes que lucram com a torcida de uma população majoritariamente pobre e ignorante."

Vítimas

Apesar de esforços recentes para profissionalizar a administração do futebol, a sensação é que a conta do descaso é sempre paga por quem vê a modalidade apenas como um instrumento lúdico e coloca de lado todas as outras mazelas. Não fosse assim, o estádio da Fonte Nova não teria sido cenário, em 25 de novembro do ano passado, da tragédia mais recente no esporte brasileiro. Em péssimo estado de conservação, a arena recebeu mais de 60 mil espectadores para a partida entre Bahia e Vila Nova, que selou a classificação da equipe de Salvador para a segunda divisão do campeonato nacional. Aos 35 minutos do segundo tempo, a arquibancada não suportou a festa dos torcedores e desabou, matando sete pessoas. Em denúncia encaminhada à Justiça baiana, o promotor do Ministério Público Estadual Nivaldo Aquino solicitou o indiciamento do diretor-geral da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), Raimundo Nonato Tavares da Silva, conhecido como Bobô quando era jogador, e do engenheiro civil Nilo dos Santos Júnior por homicídio culposo (quando não há a intenção de matar). De acordo com o relatório, os dois haviam sido alertados dos riscos iminentes, mas mesmo assim autorizaram a realização de jogos no estádio.

As cenas de desespero, correria e choro das vítimas em Salvador assemelharam-se às vividas por cariocas que foram ao estádio do Vasco, em 2000, acompanhar a final da Copa João Havelange entre o time do Rio de Janeiro e o São Caetano, de São Paulo. Parte do alambrado de São Januário cedeu e muitos torcedores machucaram-se nas grades e foram pisoteados pela multidão que tentava fugir. Em meio ao tumulto, as câmeras de televisão flagraram o presidente vascaíno Eurico Miranda exigindo que os feridos fossem retirados do gramado o mais rapidamente possível para que a partida recomeçasse.

Diante desses casos recentes e do anúncio de que o Brasil será sede da Copa do Mundo de 2014, o Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) promoveu um estudo técnico das condições dos 19 principais estádios de futebol do país. O resultado da análise foi alarmante. "Há problemas operacionais em quase todos eles, como áreas de escape que deveriam ficar livres para facilitar a evacuação em caso de emergência e que são ocupadas em jogos importantes. Os banheiros são pocilgas, e a sujeira é imensa. Sem contar os riscos de desabamento por problemas estruturais. O valor cultural do futebol é gigantesco, mas o tratamento dado aos torcedores não corresponde a isso", avalia o presidente da instituição, José Roberto Bernasconi.

A preocupação com o bem-estar do torcedor é recente no Brasil, mas foi suficiente para pautar a criação do Estatuto de Defesa do Torcedor – a lei 10.671, de 15 de maio de 2003. Contudo, a aplicação das regras na prática ainda é falha. A simples exigência de que todos os assentos dos estádios sejam numerados, por exemplo, causou discussão e descontentamento e até hoje não foi cumprida integralmente. Outro problema é a presença acintosa de cambistas em frente às bilheterias em praticamente todas as partidas realizadas nos grandes centros. Sem medo de ser presos, os vendedores oferecem aos retardatários que ficaram sem entradas para partidas de grande interesse ingressos a preços bem mais caros do que os praticados regularmente.

Mesmo quando supera os obstáculos para conseguir entrar no estádio de futebol, o torcedor ainda pode ser vítima de outras formas de corrupção. O Ministério Público paulista descobriu, em 2005, um esquema em que árbitros escalados para jogos do Campeonato Brasileiro daquele ano recebiam até R$ 15 mil para favorecer empresários que faziam apostas em páginas da internet hospedadas fora do Brasil. Pivô do escândalo, o juiz de futebol Edílson Pereira de Carvalho confessou em depoimento à Polícia Federal que participava de toda a operação e, dentro de campo, criava situações – como não marcar faltas, pênaltis e escanteios – para que o resultado apontado por seus comparsas fosse o mesmo do jogo. Um dos apostadores, o empresário Nagib Fayad, na época também assumiu sua culpa e alegou em sua defesa que era viciado em jogos de azar. Carvalho, Fayad e outros acusados agora são réus em um processo criminal de estelionato aberto na Justiça de São Paulo.

Outra conseqüência foi a determinação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva de que os 11 jogos fraudados pelo árbitro no torneio nacional fossem anulados e disputados novamente. A decisão causou um novo estardalhaço, porque torcedores que foram aos estádios sentiram-se enganados e ameaçaram entrar com processos para reaver o dinheiro pago pelos ingressos. Além disso, muitos jogadores já tinham sido negociados por suas equipes com outros clubes, impedindo uma reprodução fiel dos confrontos. No final daquele ano, o Corinthians – na época financiado pelo MSI – conquistou um dos títulos mais polêmicos da história do futebol brasileiro. Isso porque, se os resultados iniciais tivessem sido mantidos, o campeão brasileiro de 2005 teria sido o gaúcho Internacional.

Perspectivas

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) preparou uma série de comemorações neste ano para lembrar o primeiro título mundial e, ao mesmo tempo, começar a promover a realização da Copa de 2014 no Brasil, confirmada em outubro do ano passado. Além do amistoso que aconteceu em fins de março contra a Suécia, adversária na final de 1958, a instituição que coordena os campeonatos nacionais também convidou alguns jogadores daquela época, como Zito e Djalma Santos, a apresentar o novo uniforme da seleção em uma festa no Rio de Janeiro.

Para Bernasconi, do Sinaenco, "mais do que convescotes", o Mundial de 2014 deve incentivar o Brasil a promover um novo salto qualitativo em diversos setores da economia, como ocorreu há 50 anos. "A Copa do Mundo é uma das poucas coisas que une todo o povo brasileiro. A realização desse evento coloca diante do país uma chance única de desenvolvimento, porque é preciso melhorar toda a infra-estrutura para receber milhares de turistas e patrocinadores daqui a sete anos", afirma ele. O engenheiro cita como exemplo a necessidade de investimentos para a melhoria da malha ferroviária e aeroportuária, da segurança pública, de hospitais, hotéis e centros turísticos. "Diferentemente de uma Olimpíada, que ocorre em uma única cidade, a Copa do Mundo é distribuída por todo o país. Muitas capitais têm interesse em receber seleções internacionais. Para isso, precisarão recuperar suas áreas degradadas, e esse esforço, se ocorrer realmente, vai se refletir até nos municípios limítrofes."

É impossível prever se a segunda Copa realizada no país será capaz de fazer com que dirigentes, empresários, atletas e políticos entendam a importância de preservar a dignidade de um dos maiores patrimônios culturais do Brasil. Contudo, se as agressões e jogadas desleais ao futebol continuarem sendo praticadas em um ritmo cada vez maior, é de se imaginar e lamentar que em breve a credibilidade do esporte possa estar tão derretida quanto o troféu de ouro erguido pelo capitão Bellini pela primeira vez em 1958, mas roubado no Rio de Janeiro algum tempo depois que a seleção ganhou o tricampeonato mundial em 1970 e pôde trazer a Jules Rimet definitivamente para casa. 

 

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