Postado em 06/05/2007
Bate-papo com Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti,
unidos pelo casamento e pela arte
CECÍLIA PRADA
A expressão "casal 20" foi usada nas crônicas sociais, décadas atrás, para designar um casal que somasse duas notas 10, em elegância, beleza ou coisas assim. Vale recordá-la agora, em relação à literatura – Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti vivem um casamento de muito amor desde 1971, cada qual com produção literária muito personalizada, abundante e importante, mas unidos no cotidiano familiar e na sua grande aventura existencial. Partilham até o mesmo ano de nascimento: 1937. Affonso, nascido em Belo Horizonte, de infância pobre, carregou marmitas, trouxas de roupa para lavadeiras, vendeu balas no cinema. Trabalhou em bancos e jornais para custear os estudos universitários. Conta hoje com mais de 40 obras publicadas, de poesia, ensaio e crônicas, e mais cerca de 30 de autoria conjunta com outros autores. Lecionou em diversas faculdades do Rio de Janeiro e passou longos períodos como professor visitante em universidades estrangeiras. Recebeu vários prêmios literários importantes, inclusive o da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) pelo "conjunto de obra". Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1990 a 1996.
Marina, nascida em Asmara (Eritréia) de pais italianos, passou seus primeiros anos naquele país e depois foi morar na Itália, onde ficou até 1948, quando veio definitivamente para o Brasil. De família abastada, viveu no Rio de Janeiro sua adolescência, no imenso casarão do Parque Lage, que pertencia a sua tia, uma famosa cantora lírica. Como artista plástica, vem realizando desde a década de 1950 exposições, individuais ou coletivas, e trabalhando como ilustradora. Em 1962 ingressou no jornalismo, no "Jornal do Brasil". Lançou seu primeiro livro, Eu Sozinha, em 1968, e conta hoje com 43 obras publicadas, de crônicas, contos, poesia e literatura infanto-juvenil. Recebeu, de 1979 até hoje, 21 premiações literárias, entre as quais quatro vezes o Prêmio Jabuti. Em 1994 foi agraciada com dois Jabutis simultaneamente, pelo livro de poesia Rota de Colisão e pelo juvenil Ana Z., aonde Vai Você?
PROBLEMAS BRASILEIROS – Affonso, em seu primeiro livro, o ensaio O Desemprego do Poeta, de 1962, você expressava o desencanto e a frustração do poeta diante do mundo. Como se desenvolveu esse sentimento em sua carreira, até hoje?
Affonso – Toda a minha trajetória está marcada por esse conflito inicial, que não é só meu. Curioso é que às vezes se referem a esse livro como "O Desemprego da Poesia". Não, é "do poeta". A poesia tem o seu emprego diversificado e permanente. O poeta é que está tendo de reformular seu papel. Na Irlanda antiga, como narra Robert Graves em A Deusa Branca, o "mestre de poesia" sentava-se próximo ao rei à mesa e tinha o privilégio, que ninguém além da rainha usufruía, de usar seis cores diferentes em sua vestimenta. Minha luta tem sido pela reinserção do poeta/poesia no cotidiano e na história. Minha obra tematiza isso, bem como a participação que tive nos movimentos de vanguarda dos anos 1960, no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. E a organização da "Expoesia", em 1973, reunindo 600 poemas no Rio de Janeiro, a produção de poemas para a televisão e a luta contra a ditadura através da poesia também dão notícia de tudo isso.
PB – Stendhal dizia que a política, na literatura, era como um tiro de pistola no meio de um concerto. Mas você conseguiu firmar sua posição política na obra literária sem desmerecê-la. Pode comentar?
Affonso – Uma das coisas que a gente discutia nos anos 1960, quando havia aquela efervescência sobre as "reformas de base" no governo Jango, era o dilema sartriano, segundo o qual existe uma armadilha no êxito/fracasso. Artisticamente, você pode chegar mais rápido ao "êxito" através do "fracasso" formal, ou seja, fazendo uma obra na linha do trivial, do lugar comum, da repetição ideológica, fazendo a literatura de consolação. Ao contrário, optar por algo mais rigoroso pode não colocar o artista, de imediato, na boca do povo. Até mesmo porque, como dizia Randall Jarrell, é mais fácil um poeta acordar famoso por ter matado a mulher do que por ter escrito um poema. São opções. A vida é a arte das opções. Um dos poemas mais belos de Robert Frost é aquele em que ele diz que à sua frente abriram-se dois caminhos, um era mais fácil, ele escolheu o mais difícil. E essa escolha faz toda a diferença. Aliás, nos Estados Unidos, estivemos, Marina e eu, naquele mesmo bosque em que ele costumava andar, e esse poema está lá, inscrito em madeira, um marco no meio da floresta.
PB – É nesse sentido que tem falado, então, no "fracasso da minha geração"?
Affonso – Clarice Lispector, nossa maior filósofa-romancista, dizia que a história de uma pessoa é a história de seu fracasso, através do qual ela/ele acaba construindo sua vida. Ela dizia também: "O erro é um dos meus modos fatais de trabalho". No caso de nossa geração, tivemos um formidável fracasso. Íamos salvar o mundo. E falhamos. A coisa era certíssima, eram favas contadas, a história, diziam, estava do nosso lado, era um trem no trilho que a gente pegava, e pronto, chegava lá. No caso brasileiro, havia uma agravante: não apenas nos disseram que Deus é brasileiro, que o Brasil era o país do futuro, como pegamos o governo JK, que foi aquele arrebatamento. Recordo-me que fui a Brasília, durante a construção, 12 vezes. Vi uma cidade e um país saírem do chão. Nossa geração só aguardava a apoteose que os teóricos socialistas nos prometeram no tal "Estado dialético". Mas, como se sabe, usando linguagem de carnaval, houve a "dispersão na apoteose". Lembro-me de ter encontrado Ivan Otero, que vinha do exílio na Polônia, e caminhando na praia ele dizia: "Lembra daquele seu poema ‘Outubro/ ou nada’? Pois é, deu ‘nada’". Claro, a piada é boa, mas não é bem assim. É com o "nada" que começa a pretensa sabedoria.
PB – Outra coisa que costuma dizer, "O que há de novo na poesia é a internet"... É essa mesmo a sua opinião?
Affonso – Há qualquer coisa em movimento por aí. Não está ainda muito claro. Houve um deslocamento da "porta de livraria" para o portal eletrônico. Mas o mais fascinante é que os recitais de poesia continuam tendo êxito. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, tem o "Corujão da Poesia", que reúne durante toda a noite, numa livraria, os poetas que seguem falando seus poemas até de manhã cedo. Os festivais de poesia a que compareço, como o de Medellín, na Colômbia, congregam milhares de pessoas, e os poetas se sentem como cantores de rock diante de um público excepcional. Há poucos anos, durante o centenário de Neruda, veja só, acabei falando poemas, lá em Santiago do Chile, mas de dentro da cabine do condutor do metrô, e todo mundo no trem os ouvia. Quer dizer, a poesia continua moderníssima e primitivíssima. Aliás, celebrando 70 anos fiz um recital de poesia num lugar bem primitivo – a gruta da Lapinha, lá em Minas Gerais.
PB – Sua atuação como presidente da Fundação Biblioteca Nacional marcou época, com a criação de vários programas de incentivo à leitura. Qual o panorama atual desse setor, no Brasil?
Affonso – Foi uma experiência fascinante estar à frente da Biblioteca Nacional, criar o Sistema Nacional de Bibliotecas, o Proler [Programa Nacional de Incentivo à Leitura], recuperar o prédio histórico, informatizar a instituição, desenvolver uma política de exportação de autores e livros, e, sobretudo, constatar, 12 anos depois, seja em Roraima ou em Paraopeba [MG], em Mossoró [RN] ou em Londrina [PR], que as pessoas que participaram desse grande projeto de transformar o Brasil num país de leitores continuam ativas. Hoje existem já várias teses prontas e em andamento relatando o que foi esse momento verdadeiramente singular na história das bibliotecas e da leitura no Brasil.
PB – Toda a sua vida parece ter sido caracterizada por uma participação vibrante em causas e movimentos... Você foi um adolescente muito rebelde?
Affonso – Acho que fui sempre um "rebelde com causa", ao contrário de James Dean, daquele filme famoso [Rebel without a Cause, lançado no Brasil como Juventude Transviada]. Primeiro me escolheram, entre seis filhos, para ser "ministro de Deus" – meus pais eram evangélicos –, e eu ficava pregando nas esquinas lá de Juiz de Fora e da Zona da Mata, tentando salvar o mundo. Em torno de 1960, participei das agitações da União Nacional dos Estudantes – nossa revolução socialista ia salvar o mundo. Não salvamos. O mundo não quer ser salvo. E então gradualmente fui me libertando de todo messianismo, seja na religião, na política, nas artes. E aí, um dia, saí para ver o mundo. De repente, estava em meio aos hippies de San Francisco, marchando contra a Guerra do Vietnã, experimentando toda a desrepressão erótica, política e estética da década de 1960. Veio a ditadura e vi nossa geração se dispersando: "Um terço se exilou, um terço se fuzilou, um terço desesperou/ e nessa missa enganosa/ houve sangue e desamor". E veio a abertura – de tudo isso meus textos falam – e vieram outras perplexidades. Hoje estamos tendo a chance de ver essa coisa espantosa: os "marginais" de ontem estão no poder. Estamos tendo de rever os conceitos de centro e periferia.
PB – Há alguma coisa de que se orgulhe especialmente?
Affonso – Vou botar também em meu currículo: salvei a vida de muitos jovens americanos que estavam condenados a morrer no Vietnã. O estudante vinha e me dizia: "Professor, se eu tirar menos de 7 vão me mandar para a guerra". Claro, eu ajustava a nota. Não ia manchar de sangue o quadro-negro da história da minha sala.
PB – Qual seu último livro publicado? Em que trabalha agora?
Affonso – Publiquei Tempo de Delicadeza (L&PM), cansado de tanta violência e em resposta à realidade que estampei antes em "Nós, os que Matamos Tim Lopes". Saiu também O Homem e Sua Sombra (Alegoria), que acaba de ganhar traduções para o francês e o inglês. Mas este ano será lançado um livro que é algo que me levou anos de estudo: O Enigma Vazio – Impasses da Arte e da Crítica, em que aprofundo a análise das aporias da arte de nosso tempo. Tomo um viés até agora menosprezado, que é discutir o "discurso", os "conceitos" em que se baseia essa arte que se pretende "conceitual". Faço também uma análise das alucinações críticas de notáveis pensadores como Octavio Paz, Jacques Derrida, Michel Foucault, Roland Barthes, Jean Clair e outros. As artes plásticas são o grande "sintoma" para entender nosso tempo.
PB – Aos 70 anos, olhando para a vida que se estende atrás de você, concorda com o que dizia Schopenhauer – que na idade avançada podemos ver que houve um desenho, um plano, como se nossas vidas fossem"um único grande sonho de um único sonhador, e no qual todos os personagens do sonho também sonham"?
Affonso – Eu diria, como Heidegger, que minha obra é o desenho de um projeto poético-pensante. Seja na poesia, na crônica ou no ensaio, estou mapeando minha perplexidade diante do meu tempo. Não estou produzindo metáforas simplesmente, estou pensando sistemicamente. Se alguém se debruçar sobre o que escrevi, terá notícia das aporias e buscas de solução de um homem que viveu seu tempo de maneira honesta, poética e desesperadamente.
PB – Marina, ouve-se muito dizer que o movimento feminista morreu, está superado. Não tem por que existir, pois hoje as mulheres já se equipararam aos homens. Concorda com isso?
Marina Colasanti – O movimento feminista foi desmobilizado em obediência a diretrizes internacionais do movimento de mulheres. Podemos localizar essa mudança a partir do encontro de Beijing. O problema é que a evolução na conquista dos direitos das mulheres não era a mesma em todos os países. Os avanços que o chamado Primeiro Mundo havia obtido eram, provavelmente, suficientes para eles. O que nós havíamos conseguido, embora fosse muito, não era suficiente – apesar de não ser respeitada, temos uma constituição moderníssima, das mais avançadas do mundo, no que diz respeito a mulheres e crianças. Assim mesmo, tudo parou. Não foi apenas devido às diretrizes. Houve um esgotamento das palavras de ordem, do espírito utópico universalista, do enfrentamento homens/mulheres que o movimento havia criado. Rezemos para que seja apenas uma pausa histórica. Pois, se é verdade que o avanço prossegue agora quase automaticamente, é certo também que em países como o nosso, em que alguns problemas são prementes, o avanço automático é lento e deixa áreas inteiras a descoberto.
PB – Você iniciou sua vida profissional como artista plástica. Como passou ao jornalismo e depois à literatura?
Marina – Não passei de uma coisa a outra: somei. Continuo me sentindo artista plástica. Agora mesmo estou pregada na prancheta, desenhando, fazendo as ilustrações de um livro meu infantil. Meu olhar é de artista plástica, meu amor por arte continua inarredável, e aliás está escancaradamente presente na minha poesia. Mas eu não teria podido me sustentar como gravadora, que era o que fazia quando fui para o "Jornal do Brasil". Deslizar para o jornalismo foi o que a vida me ofereceu de melhor como solução. De jornalista a escritora foi ainda mais natural, sem ruptura alguma, porque eu trabalhava com jornalismo cultural, era redatora, cronista. Ao escrever o primeiro livro não tive de decidir categoricamente: vou ser escritora. Tive de decidir: vou escrever um livro. E não é a mesma coisa. Só um pouco mais adiante, depois de publicada a segunda obra, uma coletânea das crônicas, e começando a terceira, assumi a escrita como rumo definitivo.
PB – Teve de abrir mão de alguma coisa?
Marina – Pela escrita tive de deixar algumas coisas de lado. A mais considerável talvez seja a publicidade. Fui publicitária durante vários anos e com prazer, porque gosto da profissão. Mas chegou um momento em que tornou-se imperioso escolher. Não ia ser possível atender a contento o trabalho da agência, o de imprensa e o da literatura. Isso sem falar em família, casa, filhas, aquilo. E na hora da escolha abri mão logo do que melhor me pagava! Não por denodo, como se dizia outrora, mas porque, animicamente, era o que menos me alimentava. A publicidade exige muito, pouco dá e nada deixa. E eu sou, por temperamento, uma pessoa que precisa de permanência. Ver o trabalho todo desaparecer logo depois de ter sido feito era para mim desolador.
PB – Dos 43 livros que publicou até hoje, quais você recomendaria para quem quisesse mergulhar em sua obra?
Marina – Eu indicaria um dos livros de contos de fadas – Uma Idéia Toda Azul ou 23 Histórias de um Viajante, que são respectivamente o primeiro e o mais recente. Um de poesia, Fino Sangue, o mais recente – a gente tem sempre a esperança de estar melhorando. Um sobre a questão feminina, A Nova Mulher, o primeiro, mas está esgotado, assim como quase todos os outros sobre o tema. Se me fosse dado indicar mais um, ficaria na dúvida entre E por Falar em Amor, um ensaio que expõe bem meu pensamento sobre esse tema que tantas vezes retomei, ou Fragatas para Terras Distantes, minhas idéias teóricas sobre literatura e sobre o meu fazer. E a minha atuação política. Acho que com isso, sem se esgotar num mergulho, um leitor saberia sobre qual estrutura se apóia o restante da construção.
PB – Você e Affonso escreveram também vários livros em conjunto. Como foi essa participação?
Marina – Todo casal com tantos anos de percurso em comum é excepcional. Hoje em dia, a própria idéia de casal estável vai se tornando excepcional. Nós somos um casal que tem um fator de coesão muito importante: a profissão. Sempre foi bom fazer livros juntos. Pena que sejam poucos. O primeiro, uma tradução de um livro de Barthes sobre o desenhista Erté, foi pura complementação: eu era a tradutora, ele o teórico. O segundo, Imaginário a Dois, devemos à editora, que o idealizou e fez a escolha dos textos. E o terceiro – Agosto 91, foi feito a quatro mãos mesmo, cada um atuando como copy desk do outro...
PB – Foi quando vocês viram, literalmente, o comunismo acabar?
Marina – É verdade. Fomos testemunhas da história, mesmo. Estávamos em Moscou em agosto de 1991. Bem ao lado do Kremlin, vimos os tanques passando, e o Affonso até ironizou: "Será um golpe de Estado?" Era. Mais do que isso: era o fim do comunismo, do império soviético. Largamos o encontro internacional de diretores de bibliotecas nacionais, passamos uma semana em meio às barricadas e dentro do próprio Kremlin, pois estava programada uma recepção com Gorbatchov. Mas ele estava preso na Geórgia, não pôde comparecer. Entramos no palácio comboiados por tanques e comemos sanduíches, caviar e tomamos refrescos, olhando por entre as cúpulas e torres aquele dia tão histórico. Nas muitas viagens que fizemos tivemos experiências incríveis.