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Febem: a luta contra o estigma
Objetivo não é isolar esses jovens, mas prepará-los para conviver na sociedade
Palestra de Eduardo Roberto Domingues da Silva, presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), apresentada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo em 10 de setembro de 1998. O debate que se seguiu a sua exposição pode ser lido na edição impressa da revista.
O tema adolescência é muito importante para todos nós. Temos aqui, neste conselho, grandes educadores, pessoas experimentadas, capazes de dar, além de sua contribuição pessoal, uma visão bastante objetiva do que é ser adolescente. O desenvolvimento físico e mental nessa fase da vida provoca uma série de ansiedades, uma porção de variáveis que afetam a personalidade da pessoa. Para objetivar nossa discussão sobre esse tema, que é muito amplo, sistematizei algumas informações, para que possamos ter o problema minimamente delimitado. Começo por mostrar quem é o adolescente que comete infração.
Logo que iniciei esse trabalho, tive a necessidade de me defrontar com essa questão. Na maior parte das vezes, lemos no jornal notícias superficiais, que relatam com sensacionalismo situações que nos deixam sem saber exatamente qual é o público-alvo de nosso trabalho. Outra questão importante é identificar a família desse adolescente, quais são as condições de vida dessa família. E também qual é a situação do órgão do Estado encarregado de executar a política de atendimento ao adolescente e à criança, no caso, a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor).
Depois de dar um panorama sobre esses tópicos, gostaria de falar rapidamente sobre a legislação existente. Quero dizer de antemão que a visão que tenho hoje, não só da criança e do adolescente, mas também da situação de delinqüência juvenil em São Paulo, é muito positiva, uma vez que as coisas podem melhorar rapidamente. Para isso basta um conjunto de medidas que estamos em perfeitas condições de implementar.
Gostaria de mencionar quais são os programas que o Estado oferece, através da instituição, para mostrar o porte da Febem. As medidas chamadas socioeducativas, destinadas a adolescentes infratores, são estas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida. Liberdade assistida é um programa de atendimento em que o jovem fica na sua comunidade, com a família, e tem algumas obrigações, como a de receber orientação e acompanhamento especializado de um profissional da instituição ou de fora, destacado para esse trabalho. Temos também a semiliberdade, que é um programa no qual o jovem tem atividades normais de trabalho, estudo, lazer e recreação durante o dia. Essas atividades são desenvolvidas em liberdade, embora sejam acompanhadas, e ele precisa se recolher à unidade no período noturno. Finalmente temos a internação, que é a privação da liberdade. No regime adulto, corresponderia à prisão propriamente dita.
Essas são as atuações ou os programas da Febem no que diz respeito a adolescentes infratores. Há outro trabalho na área de crianças carentes que vivem na rua, que mencionaremos de passagem, uma vez que não é o objeto da nossa discussão.
Para se ter uma idéia da Febem, devo dizer que o conceito que hoje a coletividade tem da instituição é de que ela precisa ser encerrada ou mudar radicalmente, porque está muito ruim. Os meios de comunicação de modo geral vêem a instituição como uma casa de ensino de criminalidade, conhecem o lado da violência, do espancamento, o lado absolutamente negativo. Esse conceito não era diferente para mim, quando assumi a Febem. Mas, depois de ingressar na instituição e perceber o que se faz e por que se faz, eu diria aos senhores que muitas dessas imagens ou estigmas não correspondem totalmente à realidade.
Para que se tenha uma idéia da dimensão da Febem, há uma unidade de atendimento inicial, a porta de entrada dos adolescentes, que fica na capital. Existem sete unidades de internação provisória, quatro na capital e três no interior, as quais geralmente estão superlotadas, pois são os locais onde o adolescente é recebido e fica aguardando a decisão do juiz. Ou seja, ele tem que permanecer privado da liberdade até o esclarecimento do delito que cometeu e também por uma questão de proteção social. Há um limite de tempo para ele permanecer ali: 45 dias, no máximo. Se ele receber uma medida de meio aberto, volta para a comunidade; se não, pode entrar no sistema de privação total da liberdade (25 unidades) ou no regime de semiliberdade, para o qual existem sete núcleos, seis na capital e um no interior.
Cabe destacar que, apesar de termos 25 unidades de internação em todo o estado de São Paulo, a grande concentração ainda está na capital. Existem dois grandes complexos, um no Tatuapé e outro na Imigrantes. São pontos de liberdade assistida, que fazem o acompanhamento em meio aberto que mencionei. São ao todo 48 pontos de atendimento, com distribuição uniforme por todo o estado. Temos outras unidades de
recepção de crianças em situação de risco. E também abrigos, que constituem o serviço do SOS Criança, mais voltado para crianças de rua e carentes, com um total de 20 unidades no estado: 18 na capital e apenas duas no interior.
Quanto ao número de funcionários, são ao todo 4.134. Quero ressaltar que houve um grande enxugamento. Esse número passava de 6 mil em 1995, além dos funcionários cedidos por outras instituições, que eram mais de 600. Isso mudou: agora só temos funcionários admitidos por meio de concurso público e que trabalham efetivamente na instituição. Quanto à distribuição, temos 2,88 mil funcionários de nível operacional; 563 de nível médio; outros 563 técnicos administrativos e de apoio (os técnicos propriamente são assistentes sociais, psicólogos, médicos e dentistas); e 128 de nível gerencial. Não é a distribuição mais adequada, mas eu diria que, em termos de concentração, a força de trabalho está no campo operacional, onde ficam os responsáveis pelo atendimento efetivo das crianças.
Outra informação importante é a questão da dotação orçamentária.
Apenas em 97 começamos a ter algum investimento em recuperação das unidades. Antes disso praticamente não havia esse tipo de investimento, e eu diria que esse é um grande problema. Ainda não temos a realização completa de 98, apenas dos primeiros meses do ano, mas as projeções indicam que chegaremos a algo em torno de R$ 135 milhões.
Gostaria de mencionar agora a questão dos custos. Sempre me perguntam quais são os custos por adolescente. Antes de 95, não tínhamos possibilidade de aferição, uma vez que os controles eram muito precários. Mas, a partir de então, montamos um sistema que pelo menos nos permitiu ter uma idéia de grandeza. Os gastos com o atendimento inicial de infratores são de R$ 340 per capita e, por mês, a internação provisória custa R$ 1,2 mil, a internação propriamente dita, R$ 1,9 mil, a semiliberdade, R$ 2,6 mil, a liberdade assistida, R$ 75, e abrigos, R$ 2,3 mil. Quero dizer que os gastos são efetivamente esses, não adianta mostrar outros números. Nesses valores estão incluídas todas as despesas. Não só as do atendimento propriamente dito, que seriam alojamento, alimentação, roupas, mas principalmente outros gastos com transporte (temos que fazer transporte para todo o estado), para levar os meninos para audiências e trazê-los de volta.
A segurança, tanto interna quanto externa, é toda paga pela própria fundação. Para se ter uma idéia do custo de um adolescente, incluindo todas as etapas do processo, como delegacia, polícia, Justiça, Ministério Público, os números certamente serão muito impactantes. Não conseguimos aferir que valores são esses.
Gostaria de mostrar agora como está a distribuição por programa. Na internação permanente, temos 2,37 mil atendimentos; na provisória, 1,4 mil. Abrigo é uma situação de menor impacto para nós (782) – são adolescentes ou crianças que precisam estar conosco as 24 horas do dia, o que é diferente de creche. Semiliberdade é uma medida socioeducativa pouco utilizada (113). Temos convênio para atendimento com entidades sociais que normalmente fazem liberdade assistida (5,7 mil) e convênio para recepção de crianças e adolescentes carentes (1,1 mil). O atendimento direto é de 10,5 mil crianças e adolescentes, com o total geral beirando os 13 mil atendimentos. Esse é um número relevante, porque efetivamente temos que considerar que o trabalho da instituição é permanente. Não posso dizer que durante a noite há uma diminuição de pessoal, pois não há. Ao contrário, o trabalho à noite
exige reforço de funcionários, porque as casas funcionam ininterruptamente. Outra questão importante é que, por termos adotado o regime CLT, o custo do trabalho em horas extras com valor adicional é muito elevado.
Gostaria de mencionar que tínhamos 5,2 mil adolescentes em liberdade assistida em agosto de 96. Esse número até que não teve um crescimento expressivo até agosto de 98 – houve praticamente um aumento de 10%. Onde aconteceram aumentos significativos foi na internação e na internação provisória. Em agosto de 96, tínhamos 2,1 mil adolescentes. Hoje já passamos de 3,8 mil. O aumento de internação é da ordem de 80%. Os senhores não imaginam o problema que isso representa. Pegamos a instituição com esse número de internos, construímos cerca de 900 novas vagas e fizemos vários trabalhos de recuperação de infra-estrutura nas 2,1 mil vagas então existentes. De modo que ainda hoje temos um déficit de cerca de 800 vagas. Esse é um dos grandes problemas da instituição. Qual seria a causa disso? Resumidamente, o aumento extraordinário do número e da velocidade de internação. Isso se deve a vários fatores: maior rigor da polícia, forte campanha de proteção social e principalmente uma questão que está sendo interpretada de maneira equivocada, que é a política de tolerância zero. A privação de liberdade acabaria sendo encarada como uma questão de proteção social, sem que se saiba exatamente que efeito isso teria no jovem ou se estaria trazendo algum benefício para a sociedade.
Com relação à distribuição por sexo, 96% são do sexo masculino. Entre os adolescentes internos, a maior concentração está na faixa etária que vai dos 16 aos 18 anos. Quase 80% da população fica dentro dessa faixa. Quanto à vivência institucional, cerca de 65% está na primeira internação, ou seja, são jovens primários na instituição. E reinternação não significa propriamente reincidência. Aqui é preciso explicar. Se o menino, por exemplo, em liberdade assistida, em semiliberdade ou em qualquer medida anterior, não cumpre o estabelecido, pode ser internado, o que é considerado uma segunda internação. Não quer dizer obrigatoriamente que tenha havido reincidência. Quanto à procedência – cidade ou local de moradia –, a capital responde por 52%, a região metropolitana por 16% e o interior por 31%. Isso tem mudado muito. Até algum tempo atrás, o interior e a Grande São Paulo ganhavam até com grande folga da capital. E, se a curva de internação se acentuou, isso significa que as varas ou os juízes da capital se tornaram mais enérgicos.
Outra informação importante diz respeito ao tipo de delito praticado. O roubo atinge de 55% a 60%. A diferença técnica entre o furto e o roubo é que no roubo há ameaça à vítima, e no furto não há. Furto corresponde a 7,6%; tráfico de entorpecentes, a 6,3%; homicídio, a 5,4%; quebra de medida, a 3,8% (quando uma medida anterior é desrespeitada); latrocínio, a 2,9%, e os demais delitos alcançam números pouco expressivos. Essa visão é muito importante para se saber se realmente a delinqüência está em crescimento ou não. Muitas vezes, quando se fala de delinqüência juvenil, os exemplos dados são os mais trágicos: homicídios, latrocínios, estupros (no nosso caso, estupro não chega a 1%). Se somarmos esses três exemplos, verificaremos que o resultado não chega a 10% do total de delitos dos internos. Mais para a frente vamos discutir que tipo de delito necessitaria efetivamente de internação. O que é furtado muitas vezes são objetos de pouco valor. Basta consultar alguns processos ou boletins de ocorrência para saber que muitas vezes são passes, tênis, pequenas quantias, inferiores a R$ 100.
Quanto ao perfil dos adolescentes em liberdade assistida, 10% são do sexo feminino, contra 90% do masculino. O interior aplica um pouco mais essa medida, com 44%, a capital tem 41% e a Grande São Paulo, 15%.
Só como referência ou curiosidade (pois não é o objeto de nosso trabalho hoje), o adolescente abrigado é aquele que precisa ficar em uma casa, apenas com medidas protetivas. O estatuto diferencia medida protetiva, como o abrigo, para crianças carentes ou em situação de risco, de medida socioeducativa, destinada ao adolescente infrator. Temos 70% de meninos e 30% de meninas abrigados. A distribuição por faixa etária fica da seguinte maneira: de zero a 7 anos, 41%; de 7 a 12 anos, 16%; e de 12 a 18 anos há um pico (36%). Nessa faixa é muito mais comum o adolescente procurar a instituição, porque a família já se desestruturou e ele não tem onde buscar apoio.
Quanto à procedência, a região metropolitana responde por 7%; o interior, por 16%; e a capital, por 43%. Muitas vezes é de outros estados o local de nascimento. Isso para mostrar um pouco da situação de registro da instituição.
Quanto à figura do jovem, temos algumas pesquisas que mostram que quem está na Febem em nada se diferencia do adolescente comum, de bairros de classe média baixa e de periferia. Com pesquisas recentes, soubemos que os anseios deles são ter uma namorada que goste deles, aprender uma profissão, abrir uma microempresa, falar outra língua, saber se relacionar com a autoridade, enfim, coisas absolutamente compatíveis não só com a idade como com o mundo de hoje. O jovem da Febem não é aquele considerado altamente perigoso, um problema permanente para a
sociedade.
Quanto à situação familiar, temos dados de uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP, feita com critérios técnicos e científicos muito rigorosos. Não adianta conhecer somente a situação do adolescente, é preciso também saber em que circunstâncias ele vive. Aqui há alguns dados surpreendentes, pelo menos para a grande maioria. Quando fizemos essa pesquisa, em 97, procuramos cerca de 300 famílias, o que representava mais ou menos 10% do total de internos da instituição na época. Portanto, a amostra é bastante representativa. Jovens com pai e mãe eram quase 25%. Os que tinham pai e madrasta ou pai e irmãos eram cerca de 10%. Mas ficou claro que a figura da mãe era muito forte. Os que tinham mãe natural, vivendo ou não com um companheiro, eram mais ou menos 34%. Se somarmos esse conjunto àquele dos que tinham mãe e avô ou avó, mãe e tio e mãe e irmão, chegamos a 50% de situações em que havia pelo menos o cônjuge do lado materno. Se somarmos a situação de pai e mãe, veremos que são praticamente 85% dos jovens que estão no seu núcleo familiar de origem. Esse é um dado surpreendente. Muitas pessoas imaginam que esses meninos eram completamente abandonados e provenientes de famílias totalmente desestruturadas, e não foi isso o que se constatou.
A situação dos membros da família em termos de trabalho também é surpreendente. Pais ou membros adultos registrados eram cerca de 24%; sem registro, mas trabalhando, 12%; o chamado desempregado, 17%; proprietário, 2%; autônomo, 7%, e bico, 11%. Isso mostra que há uma quantidade significativa de adultos da família posicionados no mercado de trabalho. Outra coisa interessante é o percentual de prendas domésticas ou de mães que ficam só em casa. Encontramos um número relativamente pequeno, apenas 10%. Quanto à questão de faixa de renda das famílias, o resultado também foi uma surpresa. De um a três salários mínimos, 27%; de três a cinco, 25%; de cinco a sete, 13%. Se somarmos tudo, passa de 65% a situação de um a sete salários mínimos. Não se pode dizer que fossem da classe social miserável. Eram da classe social pobre ou média baixa.
Quanto aos domicílios, nova surpresa. Aqueles que tinham infra-estrutura completa eram aproximadamente 78%. Os que não tinham coleta de lixo, apenas 7%. Os que não tinham esgoto, 8%. Percebam que, em termos de infra-estrutura, o resultado ficou num nível muito acima da média das habitações da chamada periferia. Nos últimos anos, as políticas públicas se voltaram muito para a questão dos serviços básicos. As redes de água, esgoto e mesmo calçamento acabaram atingindo um grande percentual das camadas mais pobres. Em compensação, foram deixados de lado todos os serviços sociais chamados indispensáveis.
Vejamos o tipo de habitação, segundo a posse. Os proprietários do imóvel onde moram estavam entre 60% e 70%. Imóvel alugado, entre 15% e 20%. No interior a freqüência de ocorrência de imóvel cedido
era maior, principalmente na área rural.
Outra curiosidade é o tipo de imóvel onde moravam esses meninos. A casa representava mais de 50%, apartamento bem menos (1,41%) e conjunto habitacional, 5,6%. Depois temos casas independentes, basicamente no caso de meninos que vieram de outras cidades e acabaram sendo acolhidos (com a família 13,4% e com estranhos 6%) onde cometeram delito. A favela representa muito pouco, menos de 16% do total. Muitas pessoas imaginam que é nas favelas que os meninos se tornam delinqüentes, mas isso não se confirmou. Quanto à questão da origem, segundo o local de nascimento, mais uma surpresa. Do norte vieram muito poucos (0,25%); do nordeste, 22%; do sudeste veio a grande maioria, 70%; do sul e centro-oeste os números eram bem menores (6% e 0,37%, respectivamente). Isso revela a existência de outro mito. A maior parte desses problemas não tem origem em famílias provenientes de outros locais, principalmente do norte e nordeste.
Em relação à família, vejam que a caracterização que temos é muito diferente daquilo que se supunha. Não são crianças totalmente pobres, nem provenientes de famílias desestruturadas, que tivessem perdido seus membros mais importantes. E também não são crianças e adolescentes que vieram de muito longe. Isso nos faz pensar um pouco em que tipo de resposta devemos dar a esses problemas.
Um estatuto de direitos
Gostaria agora de fazer uma rápida menção ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse documento é de 1990 e surgiu depois de inúmeras discussões. Acho que essa é a mais bela lei que já se fez no país, não só pelo método de trabalho, mas porque envolveu vários segmentos sociais, com a participação de inúmeros profissionais de várias categorias. O estatuto representou efetivamente a inserção do Brasil no contexto mundial na área de direitos da criança e do adolescente.
Vou procurar responder já a algumas indagações que sempre me fazem: "Mas o estatuto não é muito avançado para um país como o nosso? Hoje, precisamos de mais severidade e de mais rigor". A verdade é que esse estatuto, sendo de direitos, serve para qualquer país que tenha a responsabilidade de encarar as pessoas como seres humanos na sua plenitude de dignidade. É um estatuto de direitos, basicamente, mas também de responsabilidade. Está completamente de acordo com as regras internacionais de prevenção da delinqüência que foram apresentadas em Riad (Arábia Saudita) e também com as orientações de Pequim quanto à questão do atendimento a jovens infratores. No estatuto se suprime a expressão "menor", que dá uma conotação de incapacidade, de limitação. E, com efeito, é justamente o contrário. A adolescência é uma fase de expansão, de riqueza em todos os sentidos, e é um período de muita habilidade, de descoberta de talentos. Então não pode haver uma caracterização que seja de limitação ou de diminuição do jovem.
É muito importante dizer que o estatuto considera também a questão da idade. De zero a 12 anos estamos diante de crianças, e crianças só são passíveis de receber medidas chamadas protetivas. Quais são as medidas protetivas? É o abrigo, o aconchego da família, uma família substituta, o instituto da guarda ou adoção. Tudo isso feito através do Poder Judiciário. Muitas pessoas me perguntam se na Febem há crianças para adotar. Não, não há. Quem faz esse trabalho de entrega para a adoção, depois da destituição do pátrio poder, é sempre o Judiciário. Só para fazer um rápido parêntese aqui, cerca de 85% das crianças que estão abrigadas conosco têm família. Então nunca estariam disponíveis para adoção. Dos demais, apenas 5% estão em condição de adoção, o que significa que não estão mais sob a guarda dos pais originais. O restante está em processo de atendimento, quer dizer, a obrigação da instituição é buscar efetivamente reintegrar a criança a sua própria família natural, a uma família substituta ou a um parente próximo para manter os vínculos familiares. É por isso que hoje se diz, até com certo espanto, que há uma lista, uma grande fila de espera de casais que pretendem adotar uma criança. Há muito mais procura do que possibilidade de entrega de
crianças para adoção.
Mas volto a falar do estatuto. Dos 12 aos 18 anos, estão estabelecidas responsabilidades para o adolescente. Esse é um ponto importante. Muitas pessoas pensam que o estatuto é só de direitos. Não é só de direitos, é também de responsabilidade pesada, pois ele passa a responder pelo delito que cometeu, e os delitos são os catalogados no Código Penal. Sendo responsável pelos atos que pratica, independentemente da família ou da responsabilidade dos pais, o adolescente tem que responder pessoalmente perante a sociedade pelo que fez. Isso significa que é passível de uma medida chamada socioeducativa, cujo equivalente, no regime adulto, é a pena. O adolescente está dispensado de receber a punição, mas se responsabiliza e tem que ser enquadrado numa medida socioeducativa que, dependendo da escala, vai até a internação, que pode ser de até três anos. Três anos na vida de um jovem é muito tempo. Imaginem, quem comete um delito aos 15 anos pode sofrer privação da liberdade até os 18. Quando se fala de privação da liberdade, a própria legislação e toda a pedagogia conhecida hoje exigem que se trabalhe com esse menino a questão pedagógica e educacional, para que ele possa introjetar valores, recompor sua vida, saber se autopropor um caminho de vida, saber se autoconduzir na comunidade. O que interessa para nós, como sociedade, não é que os adolescentes fiquem privados da liberdade e isolados do convívio. O importante para nós é que eles tenham um bom comportamento. Então nosso trabalho tem que ser todo dirigido para o apoio e o acolhimento desses jovens na comunidade.
Gostaria de mencionar rapidamente a questão da medida de internação. Vou fazer uma comparação um tanto pobre em termos ilustrativos, mas que é importante quanto ao aspecto de prazo. É o seguinte: a internação deveria ser, para nós que lidamos com delinqüência juvenil, alguma coisa como a UTI é para os médicos. Ninguém fica na UTI mais que o estritamente necessário, porque corre o risco de ter outros problemas ou complicações. Com a internação ocorre mais ou menos o mesmo. Não há dúvida de que alguns desses meninos têm de ser retirados do convívio social. Mas durante esse período precisam de acolhimento, de um atendimento adequado. Não adianta tirarmos todo mundo, como se pretende com essa operação de tolerância zero. A polícia realmente é muito eficaz. Vocês não imaginam quanto. O contingente de policiais que existe em São Paulo é bastante expressivo, da ordem de 80 mil efetivos. Eles trabalham mesmo, recolhendo jovens infratores. Só que levá-los para um ambiente de privação da liberdade pode ser um erro maior. Então todas as medidas que devemos tomar em relação a eles dizem respeito fundamentalmente não só ao momento atual, mas ao que vai acontecer com a vida deles daqui a três, quatro, cinco anos. Acho que aí é que temos de efetivamente mudar as perspectivas de trabalho.
Esse é o último item da minha palestra. Gostaria de reforçar muito a idéia de que não é mais possível termos uma instituição gigantesca, cuja principal tarefa seja a repressão, a vigilância do corpo. Precisamos implantar uma nova filosofia de trabalho, para torná-la efetivamente uma instituição de cunho pedagógico e educacional. E não é verdade o que se diz, que na Febem isso não existe. A Febem tem um projeto pedagógico, que contém bases éticas, organizacionais e também de trabalho cotidiano. De acordo com essas bases éticas, é muito importante mostrar aos jovens que acreditamos neles, da mesma forma como acreditaram em nós também no passado, demonstrar-lhes que temos tolerância em relação a seus conflitos e dificuldades, que temos capacidade de dialogar para enfrentar todas as ansiedades e angústias do jovem, e que estaremos presentes na vida deles, em qualquer circunstância. E vamos construir junto com eles algo que seja útil para a vida deles e para a nossa também. Quando estamos diante de um jovem que, por alguma razão, cometeu um delito, é importante olhar para ele, pois não se trata de um criminoso adolescente. Isso vale para 99% das situações. É claro que há exceções e não podemos deixar de mencioná-las, mas simplesmente não consigo raciocinar só pela exceção.
Existem jovens que têm problemas psicológicos ou estruturais muito sérios e que realmente cometem erros ou crimes hediondos. Isso é inegável, e em todos os lugares é assim. E aí vem um pouco o sentido do meu otimismo. Tenho recebido visitas de pessoas do exterior, principalmente americanos e europeus, e eles me dizem com grande convicção que a população com a qual trabalhamos, esses jovens infratores, tem expressão, olhar brilhante, vontade de fazer as coisas, cordialidade. É um pouco a expressão do nosso povo, que é assim. E eles se defrontam com problemas muito maiores em seus países ou cidades de origem. Lá os jovens são muito rancorosos, e a situação é muito mais difícil de ser trabalhada. Isso efetivamente é uma vantagem para nós. Para usar uma denominação que agrada aos economistas e aos empresários, é uma vantagem comparativa importante. Podemos ter ao longo do tempo, dependendo de nosso desempenho no trabalho, resultados altamente auspiciosos. Mas o contrário também vale. Se não soubermos acolher adequadamente esses jovens, estaremos perdidos. Tenho encontrado tanto em juízes quanto em alguns promotores, mesmo em alguns advogados, esse espírito de educador, mais do que do profissional que cuida exclusivamente da sua tarefa. Quem está diante de um jovem precisa ter uma relação de educador para educando. E o resultado será positivo, sem dúvida nenhuma. É por isso que ainda estou nessa atividade, suportando uma porção de
dificuldades.
Outra coisa que gostaria de dizer se refere às bases organizacionais. Não podemos mais imaginar uma instituição chamada total, como era o sistema Funabem, implantado em meados da década de 70 e que era um modelo recuperador e auto-suficiente, uma instituição completamente fechada em si. Ou seja, o conceito era de que se levava o jovem para lá e se resolvia toda a vida dele. Na verdade, esse é um modelo completamente superado. Hoje, o que precisamos ter é uma instituição ligada a outras que também trabalhem com crianças e adolescentes, nas áreas de saúde, educação, profissionalização, cultura e lazer. Isso é muito importante, porque muitos desses jovens têm desempenho e talento impressionantes. Por exemplo: existem jovens que, sem nenhuma iniciação em informática, com apenas dez dias de aula adquirem uma velocidade de digitação superior à de profissionais. Outros, que nunca conheceram um instrumento musical, mostram talento para participar de uma orquestra, e isso acontece de forma espontânea e natural, simplesmente porque alguém os chamou para fazer um exercício de música, de repente abrindo-lhes uma perspectiva.
Por que se fala que a instituição não recupera ou não recupera adequadamente? Na verdade, há aí também um exagero de linguagem. Falar de recuperação significa pressupor que houve um estrago anterior, o que muitas vezes não ocorreu. Aliás, na maioria absoluta das vezes isso não aconteceu. É preciso que tenhamos para com a juventude e para com as crianças o acolhimento que elas tentam encontrar em todos nós.
E uma instituição não pode assumir sozinha a responsabilidade que é de toda a sociedade. Acho que as pessoas de certa forma já aprenderam que é muito melhor fazer uma rede de atendimento. Seria muito bom que todos pudessem fazer uma visita à instituição. Estamos abertos a jornais, revistas, televisões, entidades e associações várias, para que vejam o que está acontecendo com esses jovens.
Agora quero falar um pouco sobre a questão organizacional. Há uma porção de problemas na instituição por causa de uma hierarquia muito fechada, onde existe proteção ou autoproteção de um funcionário em relação a outro, formando um ambiente em que não há oxigenação. Para tornar o trabalho fluido e aberto, temos que quebrar essa estrutura. E como é possível conseguir isso? Adotando métodos de gestão mais modernos.
Considero importante medir o desempenho das pessoas, acho que isso é estimulante. Quanto mais se exige de uma pessoa, desde que se dêem recursos e condições, mais ela se realiza. Quisemos implantar na Febem um programa de gerenciamento pela qualidade total. No começo me diziam que isso era loucura, que o ambiente não era propício, que não seria possível aplicar, numa entidade social com uma série de problemas enormes, uma filosofia empresarial. Para nossa surpresa, no entanto, a adesão foi de 98%. As pessoas querem mostrar a qualidade do seu trabalho. Todas têm compromisso. Aliás, na área de quem trabalha com crianças, de modo geral, existe um devotamento inigualável. Isso é uma riqueza que não podemos desprezar. Esse método de gestão pela qualidade ficou tão arraigado que hoje buscamos a certificação ISO 9002. Estamos perto de consegui-la para uma unidade menor, de carentes, e também para uma de infratores. A de carentes se encontra mais
adiantada, tanto que já estamos contratando a certificação. Temos todos os manuais de procedimentos feitos pela própria equipe. Não dá mais para dizer que aquilo é um depósito. Algumas unidades realmente estão superlotadas, mas isso não depende de nós. Jamais podemos recusar uma criança. É preciso que as pessoas saibam que a superpopulação afeta qualquer serviço, tudo se congestiona. O nível geral do atendimento cai, e não é isso o que queremos.
Prestígio
Mas eu falava sobre a missão, a visão e as metas. Os próprios funcionários querem tornar a instituição respeitada. É enorme a vontade que eles têm de mostrar um bom desempenho, não só ao país, mas ao mundo inteiro, porque o que se faz em São Paulo acaba repercutindo, em termos de direitos humanos, e corre o mundo. Propondo-se a aplicar totalmente a metodologia existente no Estatuto da Criança e do Adolescente, os próprios funcionários implantaram um sistema de trabalho que os leva a se orgulhar da atividade que desempenham e do seu papel na sociedade. Diferentemente do que acontece na capital, em algumas cidades do interior quem é funcionário da Febem tem prestígio no comércio, tem um valor pessoal importante. É isso efetivamente o que eles querem.
Outra coisa importante é que eles querem que a Febem conquiste confiabilidade em suas parcerias intra e extragovernamentais. A substituição daquele modelo fechado, piramidal, por outro mais aberto exige a confiabilidade dos parceiros. E há uma série de outras fundações que estão conosco. Tanto a USP como a PUC estão fazendo intervenções muito importantes em todo o trabalho que vem sendo desenvolvido. Então é preciso ter essa troca de confiabilidade. Outro ponto importante que se estabeleceu foram os valores. E os valores que essa instituição precisa ter se resumem ao trabalho como forma de educar. Então todos estão se instrumentalizando para efetivamente funcionar como educadores. Querem a valorização do ser humano, tanto do educador quanto do educando. Querem a cidadania como um direito de todos: do menino, do funcionário e da família do menino. Querem um envolvimento prazeroso nas
atividades do dia-a-dia. O
nosso cotidiano não é de rebeliões e de agressões. Nosso cotidiano é de trabalho, muitas vezes mais sacrificado do que em qualquer outra instituição, por causa da superlotação,
das limitações físicas e orçamentárias.
Não dá para estabelecer comparações de nossa atividade a não ser com a de instituições similares. Fui atrás de alguns dados do exterior. No Brasil, os números são bastante inferiores aos de instituições estrangeiras. Nos Estados Unidos, um adolescente privado de liberdade custa algo em torno de US$ 6 mil por mês. Na Itália, o custo é da ordem de US$ 10 mil mensais. Isso significa também que eles, com certeza, têm unidades muito menores do que as nossas em algumas cidades, o que eleva o custo. Hoje, a pedagogia recomenda unidades menores, onde a aproximação individual até se torna possível, mas com isso o custo sobe. Porém, acho que para a sociedade interessa não só o valor absoluto do custo, mas o que representa em benefício para todos. Se por um lado há um desembolso, de outro queremos um retorno, que é uma sociedade mais protegida, com pessoas habilitadas ao convívio social. É nosso desejo melhorar o padrão de honestidade e integridade no trabalho e no campo pessoal. Nesse ponto temos que ser muito exigentes, mas o nível de exigência não pode superar a compreensão, quer dizer, é necessário reconhecer as dificuldades inerentes ao trabalho. É o que temos dito a juízes
e promotores; não adianta sobrecarregar a instituição, pois tudo fica comprometido. Por isso o número de horas extras é excessivo; por isso as condições se tornam precárias.
A unidade da Imigrantes, que funciona como uma espécie de delegacia, onde os meninos ficam recolhidos até a decisão judicial, representa para nós um encargo exagerado. E todos querem a busca do padrão de excelência no desempenho de sua função. É importante ressaltar o trabalho de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. São pessoas que se dedicam a produzir algo de valioso, primeiro para os meninos, depois para mostrar a outras autoridades. O estatuto estabelece um ponto importante: o juiz tem grande flexibilidade. Essa também é a riqueza do estatuto. O juiz pode se basear em vários elementos, inclusive em um relatório técnico produzido dentro da instituição. O relatório técnico, ao contrário do que muitos mencionam, tem bases muito claras, não só pela acuidade da entrevista mas pela verificação de todos os dados.
Queremos efetivamente aproximar a família e reforçar a perspectiva de vida desses jovens. Mas para isso é preciso que os profissionais tenham um projeto de vida comprometido com esse trabalho. Não é nada fácil trabalhar em uma casa com adolescentes que, por qualquer razão, estão em conflito com a lei. A adolescência e a juventude sempre quiseram ousar, estão sempre no limite; se puderem, eles avançam. Basta que nos lembremos dos nossos tempos de juventude, de estudantes. Acho que muitos dos progressos alcançados se devem a esse espírito.
Temos profissionais que querem projetar para o menino um trabalho útil para ele e que acaba sendo importante para todos. E então surge um conflito que é o seguinte: como um menino que roubou pode receber um relatório da Febem que recomenda que ele volte para o meio aberto? Os senhores já devem ter visto isso nos jornais. Eventualmente alguns promotores e juízes reclamam disso. Mas é que algumas vezes se percebe, depois que o menino está na unidade, que não foi dele a autoria do delito, como apareceu no boletim de ocorrência. Muitas vezes esse menino tinha um trabalho, freqüentava uma escola profissionalizante, estava inserido na comunidade. Então, para que tirá-lo da comunidade, com o risco de estigmatizá-lo? Precisamos lutar contra o estigma. Toda sociedade civilizada precisa acolher velhos doentes, pessoas incapazes e jovens também. Se não fizermos esse trabalho, nosso convívio social nunca será melhor. É muito importante que, quando esse jovem venha a sair da instituição (e aí também estamos começando um programa de egressos), possa ser acolhido. Muitas vezes nem a família quer mais saber dele, quanto mais outras instituições e a própria comunidade. Então ele vira uma presa fácil da marginalidade outra vez. É por isso que a reinternação ainda se encontra num patamar razoável. No Japão, com o bom sistema penal de que dispõem, o índice de reincidência, pelo que me disse o secretário de Justiça, é da ordem de 70%. Vejam a magnitude do problema. O que podemos fazer para melhorar isso? Finalmente, acho que precisamos cultivar a capacidade de opinar e influir na construção de um modelo institucional inovador. No fundo, é disso que precisamos.
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