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Bioesperança
RICARDO BONALUME NETO
Na língua portuguesa, como na maioria dos idiomas ocidentais, é inegável a importância do grego na formação de palavras relacionadas às ciências naturais. Nos tempos mais modernos, quando novas necessidades e circunstâncias fazem surgir novíssimas expressões, o velho e bom grego também continua a postos, sempre pronto a fornecer significados e a suprir lacunas. É o caso, por exemplo, do prefixo bio (vida), que, utilizado tradicionalmente em palavras como "biologia", "biotônico", "biópsia", é emprestado para compor novas expressões, como "biodiversidade", "biotecnologia", "bioprospecção" e até "biopirataria".
São palavras que entraram no vocabulário corrente nos últimos anos, graças, em parte, ao trabalho incansável de militantes ambientalistas. Biodiversidade pode ser entendida como a variedade existente dos seres vivos, enquanto biotecnologia é a aplicação ou o uso prático desses organismos para satisfazer necessidades humanas. A bioprospecção, por sua vez, é a procura, na natureza, tanto de seres vivos como de substâncias químicas ou genes que lhes pertencem. E a biopirataria é a bioprospecção realizada clandestinamente, sem a licença formal do país em que estão os seres vivos.
Mas a biodiversidade não deve ser entendida apenas como um mapeamento do número de espécies de determinada região, explica Adalberto Luís Val, pesquisador do Laboratório de Ecofisiologia e Evolução Molecular do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). Ela é também o estudo de como essas espécies interagem entre si e com o meio ambiente.
Essa interação é fundamental para entender por que é possível encontrar substâncias químicas interessantes na natureza. Elas fazem parte da luta pela sobrevivência dos seres vivos, e as tensões que o processo de evolução biológica causa às plantas estão por trás da variedade da flora no planeta, especialmente em locais como a Amazônia.
Também entre os animais existe uma "guerra química" constante, com a produção de proteínas que podem aumentar as chances de sobrevivência, seja facilitando a predação, seja criando proteção contra predadores.
Biodiversidade significa também "quimiodiversidade" – isto é, aos seres vivos correspondem igualmente miríades de substâncias químicas que foram aparecendo ao longo do processo evolutivo.
Esse processo fez com que certas regiões em especial apresentassem uma riqueza biológica acima da média: é o caso de grandes florestas, mas principalmente das áreas de contato entre ambientes, notadamente aquela entre a floresta Amazônica e o cerrado.
Veio de ouro?
A idéia de biodiversidade foi saudada pelos ecologistas como um grande argumento para a conservação do meio ambiente. Na natureza estaria a cura de várias doenças. Isso pode ser verdade. Mas a dificuldade dos pesquisadores é realizar a bioprospecção. Como descobrir os segredos escondidos pela evolução dentro de cada ser vivo e de seu material genético?
A revista científica britânica "Nature" apresentou, em abril de 1998, um grande dossiê sobre esse tema. Conclusão: ainda é cedo para saber se a biodiversidade é de fato "um grande veio de ouro pronto para ser minerado". Entre os vários obstáculos a esse conhecimento, o editorial da "Nature" destaca "a crescente capacidade da química de fornecer rotas alternativas e consideravelmente mais convenientes para novas moléculas", que poderiam "distorcer a relação custo/benefício" já desfavorável à bioprospecção.
Grande parte do problema, na verdade, está nos custos, pois encontrar uma molécula útil requer pesquisar milhares de organismos. Seria mais fácil projetar uma molécula no computador.
Mas o laboratório humano e sua química combinatória podem não ser a solução para tudo. A natureza é por definição um "laboratório" de dimensões gigantescas, no qual os experimentos vêm sendo realizados há milhões ou mesmo bilhões de anos.
Por isso, o trabalho dos cientistas dessa área, em grande parte, é feito numa espécie de "parceria" com a natureza, tomando como ponto de partida o que já foi produzido por ela. "Há compostos que a tecnologia tem sintetizado dentro dos laboratórios, como é o caso dos piretróides (substâncias com propriedades inseticidas). Essa síntese, porém, só foi possível depois que eles foram isolados na natureza", exemplifica Luiz Alberto Rocha Batista, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos (SP).
Mas mesmo que haja dúvidas sobre a possibilidade de extrair da natureza respostas para as grandes necessidades da ciência, isso não diminui a importância da biodiversidade, que anota em seu favor inúmeros outros argumentos.
Uma de suas funções, por exemplo, seria a de aumentar a defesa do ecossistema, dizem na revista científica "Science" Stuart Chapin e outros pesquisadores da Universidade da Califórnia. Cada elemento de um ecossistema participa ativamente do seu equilíbrio. E, como argumentam esses autores, duas espécies podem ter funções parecidas, mas suas capacidades distintas de adaptação permitem que o sistema tenha maior resiliência, ou seja, resista melhor a traumas.
Na contramão da biodiversidade estaria a agricultura, que pode ser definida como o processo que o ser humano emprega para fazer artificialmente a natureza produzir mais daquelas espécies vegetais que ele consome como alimento. Ao cultivar em número cada vez maior apenas algumas espécies de plantas e ao criar em escala crescente uma variedade restrita de animais, o ser humano causa uma "homogeneização" dos seres vivos.
O resultado é a maior vulnerabilidade dessas poucas espécies a doenças. Assim, uma bactéria que ataca uma árvore pode pular para a do lado, e rapidamente contaminar uma enorme área cultivada. Na natureza, isso não aconteceria, dada a dispersão das plantas. Basta uma única vaca infectada para transmitir uma doença ao resto de um grande rebanho. O mesmo problema teria menor impacto na natureza.
Prato pobre
Desde que o ser humano inventou a agricultura, há alguns milênios, a terça parte das florestas do planeta foi erradicada. A cada ano, cresce 1,5% o corte das florestas, num total hoje calculado em 5 bilhões de metros cúbicos de madeira. Entre 1980 e 1995 uma área florestal de 13 milhões de hectares foi devastada em todo o mundo.
"Nunca se falou tanto em biodiversidade, e nunca se acabou tanto com ela como se está fazendo hoje", declarou o pesquisador Warwick Kerr, da Universidade Federal de Uberlândia, durante uma reunião da Sociedade Brasileira de Genética.
Kerr não se referia apenas ao lugar-comum nesse tipo de discussão – como os recursos potenciais da floresta Amazônica, da Mata Atlântica ou do cerrado. Na palestra que fez no evento, o pesquisador comentou a perda de biodiversidade na própria alimentação humana, notadamente nos vegetais. "O homem se alimentava com 5 mil espécies até 1500. O número caiu para 2 mil em 1750, e está hoje em torno de 200", afirmou.
O problema não se restringe ao Brasil. Aliás, pode-se dizer que aqui há potencialmente mais soluções do que problemas. Mais da metade da superfície da Terra já foi transformada – por exemplo, as regiões em que florestas foram derrubadas para uso da agricultura. O Brasil ainda tem a maior área de floresta intacta do mundo.
Mas o que fazer com as florestas remanescentes? A esse respeito, não existe consenso. "Estratégias de manejo sustentável estão sendo desenvolvidas, mas existe uma necessidade de maior interação entre estudiosos da floresta, ecologistas, representantes da comunidade, cientistas sociais e economistas", escreveram Ian Noble, da Universidade Nacional Australiana, em Camberra, e Rodolfo Dirzo, da Universidade Nacional Autônoma do México.
Segundo esses autores, as florestas estão sendo encaradas cada vez mais como um bem ambiental "global", o que levanta questões como a compensação dos seus proprietários em caso de usos economicamente não tão compensadores. "A comunidade mundial deve estar preparada para pagar ou compensar os habitantes das florestas tropicais para que eles não sejam forçados a usar ineficientemente ou destruir as áreas que restam", afirmam eles.
Colonialismo genético
Existe no Congresso brasileiro uma lei em discussão sobre acesso a recursos genéticos. A nova legislação pretende evitar a biopirataria, notadamente na Amazônia. Mas, se for muito rigorosa, corre o risco de prejudicar a ciência brasileira e afugentar a cooperação internacional, segundo a opinião de vários cientistas.
O projeto de lei foi proposto pela senadora Marina Silva (PT-AC). A primeira versão foi considerada proibitiva e xenófoba por vários cientistas.
Ironicamente, um dos colaboradores da senadora é americano – David Hathaway, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa. Ele lembra que há séculos existe no mundo o "colonialismo genético", isto é, os países criavam jardins botânicos para se apropriar, por exemplo, de plantas de outras regiões (como o célebre caso da borracha na Amazônia). Isso faz com que até hoje esses jardins instalados nos países desenvolvidos sejam vistos com desconfiança pelos ambientalistas do Terceiro Mundo, como afirmou a "Nature".
Mas não faltam especialistas contrários às regras inibidoras. É o caso de Adalberto Val, para quem "não adianta proibir nada". E justifica: "Vamos parar de exportar peixes, soja, café, açúcar? Quantas sementes de plantas existem num único estômago de um peixe ornamental exportado? O que será possível extrair em termos de informação genética de apenas um grama de filé de peixe? E de uma semente de soja? E de um grão de café?" E ele mesmo responde: a ciência hoje é capaz de recompor um animal inteiro a partir de uma única célula, como foi o caso de Dolly, a famosa ovelha clonada.
O biólogo Charles Clement, do Inpa, é da mesma opinião. Para ele, uma lei de acesso deve estimular a prospecção e a utilização, sem inibir as empresas nacionais e transnacionais. "No entanto, a lei precisa resguardar algo para o Brasil e não somente royalties, pois estes vão para o governo, e o povo nunca vê nada."
Justiça social
Hathaway é outro pesquisador a abordar o ângulo social da questão. Como muitas vezes são comunidades indígenas que possuem o conhecimento sobre um recurso genético, uma planta medicinal, por exemplo, elas mereceriam usufruir dos resultados da pesquisa, argumenta ele.
Mas esse é um ponto delicado, que merece ser delineado caso a caso, pois envolve questões complexas de propriedade intelectual. Quanto da informação veio da comunidade tradicional? Quanto dela estava disponível para qualquer um? Quanto deve ganhar a empresa – ou o pesquisador – que fez os testes científicos e descobriu o princípio ativo por trás daquele "remédio natural"?
Clement é um dos que valorizam a interação dessas comunidades tradicionais, como os índios brasileiros, com a natureza ao longo dos anos. Aliás, essa é a área atual de maior estudo da etnobiologia – disciplina científica que estuda toda a relação dos animais e plantas com o homem.
Para o pesquisador do Inpa, o desaparecimento de 95% das aldeias indígenas em 200 anos de colonização causou perdas irreparáveis, pois os índios não se limitam a retirar frutos da natureza, mas interagem com ela, selecionando culturas e espécies. Com isso eles mostraram uma notável capacidade de domesticar plantas – um processo de "co-evolução" – , preservando de modo admirável a riqueza genética.
Clement minimiza a importância da lei como instrumento para o país beneficiar-se de sua riqueza natural. "Se o Brasil é o país da megabiodiversidade, precisa ter um programa à altura para conhecê-la. Se não tem, nenhuma lei de acesso controlará a biopirataria", diz o pesquisador. E explicita o que acha necessário para isso: "Conhecer quer dizer investir, em recursos humanos, em pesquisa básica, em pesquisa aplicada, em desenvolvimento, em criação de mercados para novos produtos".
Existe até uma iniciativa oficial que pretende atingir esse objetivo, mas Clement não se entusiasma com ela. É o Probem (Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade Amazônica). O programa, cujas atividades de bioprospecção deverão ser coordenadas no futuro Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus, "foi desenhado para definir produtos de interesse farmacológico ou industrial, identificar os genes que codificam para esses produtos, seqüenciar esses genes para que possam ser patenteados e colocá-los à venda para que o CBA possa ganhar royalties", diz Clement.
Para ele, no entanto, isso "não tem nada a ver com o desenvolvimento sustentável da Amazônia", que "depende de uma divisão eqüitativa dos benefícios". Para alcançá-la, o pesquisador considera necessário trabalhar com cultivos agrícolas e pesca, cujos produtos podem ser processados e comercializados na Amazônia e exportados para outras regiões. "O Probem cogita isso, mas não há previsão de quando vai começar."
Além disso, o programa "concentra-se em áreas de alto ‘ibope’ internacional", como os fármacos, em detrimento das atividades que ele considera mais adequadas para a região. "Entendo as razões para isso: o Probem precisa mostrar resultados que usem a biotecnologia e coloquem um grupo brasileiro entre os que pesquisam tecnologia de ponta no mundo", diz ele.
A crítica de Clement ao Probem não pára aí. Vale a pena transcrever a conclusão que redigiu: "A Amazônia já deu a primeira cura da malária – o quinino. Deu um dos produtos industriais mais importantes deste século – a borracha. Deu a segunda fruta tropical mais importante do mundo – o abacaxi. Deu a segunda raiz alimentícia mais importante do mundo – a mandioca. Claro que pode dar uma cura para o câncer (lembrando que há muitos tipos de câncer), para a Aids, para o que for. Não dará nada disso sem investimentos do tipo Probem vezes cem. Sem investimentos, tudo pode estar extinto em 50 anos, pois a biodiversidade também serve para fazer carvão, que aduba a mandioca para dois anos, antes que a terra vire pasto".
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