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Ainda fora dos trilhos

MIGUEL NÍTOLO

O magnetismo dos trens maravilhosos, com vagões aconchegantes e ambientes românticos, cortando a noite e a paisagem sem fim, isso no Brasil é coisa para se ver só no cinema. Ou para consultar na lembrança dos mais velhos. O último resquício dos bons tempos, o luxuoso Trem de Prata, que, por um gesto de ousadia empresarial, ligava São Paulo ao Rio de Janeiro, acaba de fazer sua última viagem.

O que resta no país são as surradas composições suburbanas e uma ou outra linha especial, como as que interligam Vitória a Belo Horizonte ou São Paulo a Santos. Todo o restante das ferrovias brasileiras serve exclusivamente para o transporte de cargas. E, assim mesmo, perde feio para as rodovias em volume transportado, por conta do descaso com que o sistema foi tratado nas últimas décadas.

Estatísticas divulgadas em 1997 mostram que a carga movimentada – por todos os meios de transporte – entre estados do país representa, anualmente, algo em torno de US$ 200 bilhões, isto é, 23% do PIB. Só que, de acordo com estudos do Banco Mundial, a ferrovia e a cabotagem, juntas, participam com apenas 12% do transporte interestadual, um contra-senso diante das dimensões do país e das longas distâncias que têm de ser cobertas.

Mas isso não é tudo. O Brasil tem uma malha férrea de 28 mil quilômetros, aproximadamente, oito vezes menos que os EUA, traçado que já foi maior no passado mas encolheu. Há 30 anos, de acordo com relatório da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), somavam 32 mil quilômetros as linhas exploradas. Esse recuo, diga-se, é um fenômeno universal. A diferença é que em outros países, notadamente nas nações mais desenvolvidas, o trem continua cumprindo papel de realce tanto no transporte de cargas quanto no de passageiros, chegando mesmo a competir em pé de igualdade com o caminhão e o ônibus.

Plano fracassado

Para entender a situação de penúria amargada pelo trem no Brasil, ajuda examinar um pouco sua trajetória, que já chega a quase 150 anos. A ferrovia nasceu no país com o claro objetivo de levar os produtos primários do interior para os portos. Isto é, não havia aquele espírito de integração que se viu nos EUA. "Os americanos, ao contrário dos brasileiros, utilizaram o trem para abrir novas frentes, ligar os pontos cardeais, e um bom exemplo foi dado com a conquista do oeste", diz o consultor em transporte Josef Barat, autor do livro A evolução dos transportes no Brasil. Barat argumenta que os EUA não economizaram para ligar o Atlântico ao Pacífico, objetivo geopolítico que utilizou a ferrovia à exaustão. "O trem também teve papel de realce na armação da estrutura agrária americana, ajudando o governo, na época do faroeste, a estender as fronteiras agrícolas e assentar levas de colonizadores em locais quase sempre inóspitos." O especialista lembra que a mesma importância dada pelos americanos à ferrovia na integração do leste com o oeste foi conferida às hidrovias na ligação do norte com o sul. Vale aqui um complemento: apenas nos últimos anos, o Brasil começou a levar adiante projetos de porte no campo do transporte fluvial, caso da hidrovia do Tietê que tem como meta final (em nome da integração comercial no sul do continente) transformar o grande rio paulista numa espécie de portal do Mercosul. A nova rota de comércio vai exercer influência sobre uma região com mais de 100 milhões de habitantes e renda per capita superior a US$ 5 mil.

A falta de sintonia com o resto do país, que caracterizou – especialmente no passado – os grandes projetos ferroviários brasileiros, é perceptível, por exemplo, no traçado da primeira linha férrea nacional. Foi em 1854 que o Brasil ingressou no seleto grupo de nações detentoras de investimentos na área, e coube a Irineu Evangelista de Sousa, o reverenciado barão de Mauá, a responsabilidade pela investida pioneira. Com apenas 14,5 quilômetros de extensão, a estrada de ferro fazia a ligação do porto de Mauá a Raiz da Serra, no Rio de Janeiro, um percurso bem diferente daquele imaginado 19 anos antes pelo regente Diogo Antônio Feijó ao sancionar a lei geral no 101, de 31 de outubro de 1835 (concedia carta de privilégio para a construção de estradas de ferro que ligassem a cidade do Rio de Janeiro às províncias da Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul).

Para o café

A ferrovia brasileira estaria em melhor situação, hoje, se à época tivessem aparecido interessados na integração interestadual proposta pela lei de Feijó? É provável que sim. Se a ligação entre o Rio de Janeiro e as três províncias se revelasse uma experiência bem-sucedida, os trilhos certamente seriam estendidos em direção a outros pontos do país. Infelizmente, não foi o que se viu. São Paulo, que cortou seu território com mais de 4,5 mil quilômetros de ferrovias, não se importou, pelo menos nos primeiros tempos, com a ligação do estado a outros pontos do país. Aquela falta de interesse pela integração apontada por Barat também se cumpriu aqui. Os paulistas se preocuparam com a ligação do interior ao porto de Santos visando facilitar a exportação de sua produção agrícola (leia-se café). Essa idéia fixa levou à construção da Santos–Jundiaí, em 1867, investimento bancado pela São Paulo Railway e cujo traçado original previa o prolongamento dos trilhos até Campinas. Grupos capitalistas e fazendeiros também se lançaram à edificação de estradas de ferro, incursões que trouxeram ao mundo, entre outras, a Companhia Paulista de Estrada de Ferro e a Companhia Mogiana, ambas inauguradas em 1872; a Sorocabana, em 1875; a São Paulo e Minas, em 1890, que nasceu com o objetivo de servir a duas dezenas de fazendas da região da serra de São Simão; e a Araraquarense, em 1901. Elas nasceram pequenas, com poucos quilômetros de extensão, e foram esticando o traçado à medida que o tempo passava. Mas a integração, com exceção de algumas estiradas em direção a estados vizinhos, ficou limitada ao interior paulista. Resultado: a partir dos anos 30, com o início da industrialização, a ferrovia começou a perder terreno para a rodovia, processo que se intensificou com o nascimento da indústria automobilística, no final dos anos 50.

As estradas de ferro caminharam bem enquanto a economia esteve assentada na produção agrícola. Depois, como no resto do mundo, estagnaram, diminuíram de tamanho e, pior, foram ficando para trás, obsoletas por falta de adequação técnica, operacional e física. Como no Brasil as ferrovias já levavam uma certa desvantagem em relação aos passos largos dados pelo setor no exterior, a degringolada foi mais visível. Tanto que pouca valia teve a iniciativa do governo de São Paulo de agrupar as cinco grandes ferrovias do estado em torno de uma única empresa pública, a Ferrovia Paulista (Fepasa), em novembro de 1971. Era uma idéia antiga, que vinha dos anos 40 e que tinha em mira viabilizar economicamente a malha – que já sentia fundo os efeitos corrosivos da concorrência imposta pelas rodovias. A unificação do sistema, apesar da boa intenção das autoridades, não rendeu os frutos esperados. Em 1997, carcomida pelo tempo e afundada em prejuízos, a Fepasa foi transferida para o controle da União – Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) – por conta do acordo da dívida de US$ 59,4 bilhões do Banespa. A companhia transporta, anualmente, 14 milhões de toneladas principalmente de petróleo, minério, cimento e grãos. Proprietária de 420 locomotivas, 24 trens, 13.831 vagões e 589 carros de passageiros (a empresa mantém uma composição deficitária que faz o transporte de passageiros entre São Paulo e Presidente Prudente), a ferrovia foi privatizada no início de novembro. A expectativa do governo federal de repetir o sucesso obtido em 1996 com a transferência para a iniciativa privada das seis malhas nacionais antes controladas pela RFFSA não se confirmou, pois a Fepasa foi adquirida com apenas 5% de ágio pelo Consórcio Ferrovias, liderado pela Ferropasa e pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).

A concessão daquelas malhas rendeu aos cofres da União US$ 1,4 bilhão, além, é claro, de ter livrado o erário de uma montanha de prejuízos. Isso sem falar da incapacidade financeira e da indisposição demonstradas pelo governo para modernizar o sistema. Às malhas, portanto, não restava outra saída. Alguns dos novos controladores, contudo, estão em débito com o edital de licitação. O contrato de concessão estabeleceu, por exemplo, que os novos controladores deveriam proceder ao recolhimento correspondente de tributos e contribuições e a efetuar o transporte anual de um volume determinado em tonelagem (TKU – tonelada por quilômetro útil).

Desculpas

"As metas físicas de transporte – carga a ser transportada –, fixadas com base na produção de 1993, não foram atingidas por quatro das oito concessionárias, embora o setor tenha crescido 3,8% em 1997", afirma o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, em artigo publicado na "Folha de S. Paulo". Ele diz que as arrendatárias justificaram o inadimplemento alegando, entre outras coisas, o fato de a Fepasa ter perdido mais de 5 bilhões de TKUs entre 1993 e 1997. "Dizem que foram afetadas profundamente por esse desempenho negativo, tendo em vista que 50% de seus fretes são conjugados àquela ferrovia." De acordo com Padilha, as novas operadoras também reclamam da desregulamentação no transporte de combustíveis (permitiu aos distribuidores descentralizar as suas compras), que subtraiu do setor um importante naco do mercado, antes cativo da RFFSA. Da mesma forma, responsabilizam as constantes crises internacionais pelas previsões de crescimento econômico não atingidas. E não deixam de acusar as fortes chuvas, que teriam interrompido o tráfego e danificado as linhas.

O ministro dos Transportes garante que não deu amparo a essas justificativas. "As arrendatárias pediram a revisão das metas, e que o reexame fosse retroativo. Indeferimos o pedido e decidimos punir as requerentes, impondo-lhes a pena contratual de advertência." Padilha salienta que essa é a primeira das penalidades pactuadas, seguindo-se a multa e a caducidade da concessão. Ele observa, no entanto, que as metas também deixaram de ser cumpridas logo após a privatização nos países que delegaram ao capital particular a responsabilidade pela operação de suas ferrovias. "Na Argentina, por exemplo, a redução de TKUs chegou a 90% do índice de produção." O ministro relata que o Banco Mundial teceu elogios em virtude da insignificância da queda e do crescimento do setor no Brasil.

"Já vi esse filme na década de 80 nos EUA", disse à imprensa o presidente da Novoeste, o americano Glenn Michael, referindo-se ao atual panorama das ferrovias brasileiras. "Elas vão voltar aos trilhos, só que mais devagar do que se imaginava." Michael argumenta que as operadoras estão tendo de enfrentar problemas que não estavam previstos antes da concessão. A Novoeste tem comido o pão que o diabo amassou. Entre as malhas privatizadas é a que mais tem sofrido com os efeitos da desregulamentação no transporte de combustíveis. "O peso desse tipo de transporte no movimento financeiro da empresa caiu de 35% para 13%", lastima-se Michael. Explica-se: muitas distribuidoras estão optando pelo modo rodoviário, deixando as estradas de ferro em palpos de aranha. Por essas e outras, segundo o presidente da Novoeste, "as metas não estão de acordo com a realidade das ferrovias". Ou, como afirmou recentemente um alto executivo de uma das concessionárias, "as melhorias que devem conduzir ao aumento da produtividade têm de ser gradativas. Se se fizer tudo de uma vez, a estrada fica ótima, mas a operadora quebra".

Transnordestina

Todas as operadoras, justiça seja feita, estão investindo na modernização das linhas. O caminho para isso, entretanto, não é nada fácil, considerando o estado em que o sistema se achava quando foi entregue ao capital particular. A direção do Consórcio Manor não comenta, mas é voz corrente que a Malha Nordeste estava literalmente sucateada por falta de investimentos. Desequipada, ela não reunia condições para operar a plena carga. Dedicada essencialmente ao transporte de derivados de petróleo, álcool, ferro-gusa, cimento, cerveja, vasilhames, amido, algodão, fios, açúcar, tijolos, milho e sal, a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN) sabe que para se tornar lucrativa vai ter de desembolsar altas somas no reaparelhamento da estrada. Adailma Mendes, do departamento de comunicação, revelou que a CFN está decidida a investir US$ 450 milhões num período de cinco anos na modernização da malha. A empresa tem plena ciência de que sua sobrevivência depende, em boa dose, do aumento do volume de carga transportada. Por isso, planeja construir um tronco de 523 quilômetros, já batizado de Ferrovia Transnordestina, calcado num antigo projeto do Ministério dos Transportes. A nova linha férrea será implantada em três etapas. Na primeira, serão assentados 231 quilômetros de trilhos ligando Petrolina a Salgueiro, em Pernambuco; na segunda, a estrada chegará a Missão Velha, no Ceará, cobrindo um percurso de 113 quilômetros; e, na terceira, alcançará Crateús, numa extensão de 179 quilômetros.

Material rodante e via permanente em estado deplorável não são exclusividade da CFN. A assessora de imprensa da MRS Logística, Carmen Maron, conta que a empresa recebeu da RFFSA 342 locomotivas e 11.187 vagões. Contudo, "daquele total estão rodando apenas 249 locomotivas e 8.190 vagões. O restante não tem condições de uso". Carmen diz que algumas unidades serão recuperadas e outras simplesmente devolvidas à RFFSA. "No ano passado, a MRS investiu R$ 32 milhões na melhoria da via permanente para eliminar os pontos críticos, estabilizar cortes de terreno e aterros e instalar 6,4 mil toneladas de trilhos e 115 mil toneladas de dormentes."

A disposição com que procuram melhorar o sistema tem permitido às operadoras a colheita de bons resultados. O setor registrou crescimento médio de 13,4% no volume de cargas transportado nos primeiros seis meses de 1998 em relação a igual período de 1997. Segundo a RFFSA, essa expansão foi obtida graças aos investimentos já realizados e que somaram, até agora, US$ 400 milhões. Parte desse dinheiro tem sido carreado para os cofres das indústrias de equipamentos ferroviários, ramo que vinha amargando queda de vendas nos anos anteriores porque o volume de encomendas não era compatível com a capacidade de produção instalada. "O segmento metrô-ferrovia projeta investimentos da ordem de US$ 18,8 bilhões até o ano 2002, na execução de 47 projetos", festeja o presidente da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), Ralph Lima Terra.

Números divulgados pela Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) dão a exata dimensão do crescimento das vendas na área. Em 1996, o faturamento das empresas ligadas à entidade somou US$ 180 milhões, montante que chegou a US$ 600 milhões em 1997 e, estima-se, alcançará US$ 800 milhões em 1998.

Receita cativa

A especialização tem ajudado algumas estradas de ferro brasileiras a operar no azul. Enfim, a prestar serviço de excelente qualidade, uma receita que pode acabar se convertendo numa alternativa econômica para algumas linhas deficitárias. Bons exemplos são dados pela Vitória–Minas e pela Estrada de Ferro Carajás, ferrovias controladas acionariamente pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e que se prestam ao transporte de minério de ferro. A Carajás também desloca – só que em números pequenos – grãos (principalmente soja), do mesmo modo que a Vitória–Minas, que carrega produtos agrícolas, madeira, celulose e veículos. O grosso transportado, contudo, é o minério de ferro, a razão da existência da CVRD.

O consultor em transportes Josef Barat garante que se trata de duas ferrovias (são quase 2 mil quilômetros de trilhos) eficientes, "eficazes tanto quanto as congêneres estrangeiras". Em depoimento ao jornal "Gazeta Mercantil", a direção da CVRD garantiu que a Estrada de Ferro Carajás é a terceira ferrovia mais eficiente do mundo – pelo fato de poder contar com carga cativa. "São 900 quilômetros de vagões cheios de minério de ferro, o que significa receita certa", disse ao jornal o assessor da unidade de minérios da Vale, Sérgio Gabizo.

A Ferrovias Norte Brasil (Ferronorte), uma estrada de ferro que pretende se especializar no transporte de grãos, entre outras coisas, tem todos os atributos para se tornar uma companhia de sucesso, a exemplo da Carajás. "Nossa proposta é promover a interligação do centro-oeste e da Amazônia ao resto do país", informou a empresa à revista Problemas Brasileiros. A mais nova linha férrea do país nasceu de um planejamento que prima pela operação econômica de trens pesados. "Estamos adquirindo nos EUA locomotivas de 4,4 mil HP, encomendando vagões de alumínio no mercado interno e comprando 50 mil toneladas de trilhos."

O primeiro trecho da Ferronorte, de 110 quilômetros de extensão, já está em pleno uso, ligando as cidades de Aparecida do Taboado a Inocência, no Mato Grosso do Sul. Em Inocência será instalado um terminal de soja com capacidade de armazenagem de 5 mil toneladas. Até dezembro, prometia a empresa, seria feita a entrega de mais 170 quilômetros na direção de Chapadão do Sul. O plano dos controladores da Ferronorte (Brasil Previ, Funcef, Grupo Itamarati, AIG/GE, BNDES/PAR, BRP/LLC e Bradesco) é esticar a estrada de ferro até Cuiabá, no Mato Grosso, e dali seguir até Porto Velho, capital de Rondônia. É idéia, também, levar a Ferronorte até Santarém, no Pará, ligando-a ao corredor ferroviário de Carajás.

Adeus ao Trem de Prata

Infelizmente, a realidade venceu a fantasia. Depois de quase quatro anos de luxo, glamour e deslumbramento, o Trem de Prata chegou ao fim da linha e deixou de circular.

O Trem de Prata (foto) era um comboio de passageiros que trafegava entre São Paulo e Rio de Janeiro pela Central do Brasil (aquela que o cinema brasileiro tenta imortalizar com um filme do mesmo nome), em percurso de 516 quilômetros previsto para ser percorrido sem paradas em nove horas e 30 minutos.

Na verdade, era uma viagem de sonhos. Nada de aperto, sujeira, desconforto. Nada de vagões malconservados, carcomidos pelo tempo, a marca registrada da ferrovia brasileira. Uma viagem criada pela ousadia de duas empresas, a Porto Hotel, de Angra dos Reis (RJ), juntamente com a mineira Útil, companhia interestadual de ônibus, que decidiram explorar, no Brasil, uma empreitada digna de Primeiro Mundo.

O Trem de Prata oferecia três tipos de cabinas, todas com banheiro: simples, com cama de solteiro (R$ 120), dupla, com beliches (R$ 240), e suíte, com cama de casal, banheiro amplo, frigobar, lavabo e armário (R$ 360). Luxo e requinte estavam em toda parte. Além dos dormitórios, estavam presentes no vagão-bar e no vagão-restaurante, em que se oferecia um cardápio da tradicional cozinha francesa. A refeição, como o café da manhã, estava naturalmente incluída no preço. Um verdadeiro hotel em movimento.

O Trem de Prata começou a sair dos trilhos em 1998, quando as passagens aéreas ficaram mais baratas. Antes nas alturas, os bilhetes da ponte aérea entre Rio e São Paulo passaram a competir com o custo do bilhete ferroviário. Mas não foi somente isso. Enquanto o comboio esbanjava luxo e qualidade, problemas na linha, sem manutenção adequada, provocavam atrasos e até interrupção de algumas viagens, que tinham que ser completadas por ônibus.

Diante disso, não restou outra saída. Em novembro, o Trem de Prata deixou a Estação da Luz, em São Paulo, partindo para o Rio de Janeiro pela última vez.

Seu retorno, porém, não está descartado. Basta que o serviço ferroviário melhore e as linhas sejam modernizadas. Passageiros, saudosistas ou não, com certeza não faltam.

Viagem ao passado

As pessoas encerram o passeio enlevadas, com a sensação de ter viajado no tempo. Tudo combina com os anos de ouro da ferrovia paulista, quando dela dependia o transporte de carga e passageiros, especialmente de passageiros. Uma gostosa ilusão que dura pouco mais de três horas e pode ser saboreada diariamente por crianças, adolescentes, adultos, idosos, enfim, por aqueles que ainda apresentam um inexplicável pendor pelo apito do trem. Neste caso específico, de velhas marias-fumaças, dessas que a gente se acostumou a ver em filmes antigos, lembranças de um tempo que está escapulindo do baú graças ao desprendimento de abnegados sonhadores.

Reunidos em torno da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), com sede em Campinas, no interior de São Paulo, um grupo de pessoas amantes do trem conseguiu lograr êxito numa área em que o Estado levou a pior: a conservação de estradas de ferro. Graças à recuperação de velhas locomotivas a vapor – restauradas, uma a uma, peça a peça, pelos dirigentes e associados da ABPF, pessoas comuns que, nos fins de semana, se convertem em marceneiros, mecânicos, tapeceiros, soldadores, pintores e eletricistas –, a entidade está oferecendo às pessoas uma prazerosa volta ao passado. Em 1977, ano de sua criação, a ABPF recebeu do estado (leia-se Fepasa), em regime de comodato, o empréstimo de todo o conjunto ferroviário existente no trecho de 24 quilômetros que liga as estações Anhumas, em Campinas, e Jaguary, em Jaguariúna. Explorado até 1971 pela finada Companhia Mogiana de Estradas de Ferro – empresa que passou para o controle do estado com a criação da recém-privatizada Fepasa –, esse fragmento ferroviário só não foi riscado do mapa graças à obstinação dos fundadores da associação, em especial do engenheiro francês Patrick Dollinger. Em outubro de 1977, a Fepasa encerrou suas operações ali. Dollinger fez publicar um anúncio no jornal "O Estado de S. Paulo" convidando os amantes do trem a constituir uma associação de preservação nos moldes das que conheceu na Europa. Recebeu a adesão de inúmeras pessoas, várias delas ainda à frente da associação, caso do engenheiro mecânico Juarez Spaletta, membro do conselho permanente. Motivado pelo interesse de um punhado de anônimos que, como ele, tinham a maria-fumaça impregnada em suas reminiscências, Dollinger apresentou à Fepasa um plano de recuperação. A ex-estatal acedeu. E o sucateamento daquele traçado, em franca consumação, foi providencialmente interrompido.

Zelo missionário

"Teve início, então, uma verdadeira operação de guerra na busca de locomotivas a vapor, carros, vagões e peças", lembra Vanderlei Alves da Silva, diretor de comunicação social da ABPF e há dez anos envolvido com a preservação do trecho. Ele conta que não foi fácil chegar ao atual patrimônio ferroviário operado pela entidade porque o material disponível, abandonado em pontos distintos do país, estava a meio passo da inutilização. Os problemas técnicos com que se defrontou a equipe da ABPF eram formidáveis. A persistência e a dedicação, no entanto, se sobrepuseram ao que parecia improvável: leigos reformando velhas locomotivas. Mas eles não estavam sozinhos. Contaram o tempo todo com a ajuda de alguns profissionais do ramo, como o ferroviário aposentado Ivo Arias, que continua prestando serviços técnicos à ABPF. Silva salienta que ao zelo missionário daqueles associados (que ele chama de voluntários) juntou-se a ajuda financeira de várias empresas da região, parceria que tornou possível recuperar (além de 14 locomotivas a vapor) 35 carros de passageiros, carro-restaurante, carro-correio, carro administrativo, estações, moradias e vagões. E, evidentemente, a própria linha férrea. Uma tarefa espinhosa que soa como coisa agradavelmente simples, mas que tomou tempo e exigiu muito dos envolvidos. Felizmente, algumas ferrovias decidiram colaborar. "Cerca de 80% desse patrimônio foi cedido à associação em comodato. Os 20% restantes foram doados", informa o diretor de comuniçação social da ABPF.

O esforço desses sonhadores deu origem a um grande negócio. Grande no sentido de que, pelo menos nos 24 quilômetros entre as estações Anhumas e Jaguary, a ferrovia renasceu. Está viva e palpita na cadência ditada cerca de 20 anos atrás pelo francês Dollinger. Marias-fumaças que ajudaram, no passado, a levar o café até o porto de Santos, transportam agora saudosistas, turistas e estudantes. Num dia os vagões são puxados pela locomotiva a vapor 302, fabricada na Inglaterra, em 1896. Noutro, pela 505, montada em Berlim, em 1927. Seis marias-fumaças (oito estão em manutenção) e os vagões recuperados pela ABPF estão na ativa e são operados pelos associados com o auxílio de alguns poucos funcionários em regime de escala de trabalho, ressalta Silva. Foguistas, maquinistas, mestres-de-linha, telegrafistas, chefes de estação, entre outros ofícios ferroviários, hoje fazem parte do currículo de um seleto grupo de afiliados (no total são mais de 2 mil em todo o país, que pagam para a entidade, semestralmente, irrisórios R$ 23). Esse é o exemplo do vice-presidente da ABPF, Francisco Carlos Bianchi, químico de uma fundição de Piracicaba, município adiante de Campinas para quem segue rumo ao interior do estado. Ele se sentiu atraído pelo movimento deslanchado por Dollinger porque nunca escondeu sua ligação sentimental com o trem. Seu avô foi maquinista da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. É o caso, também, do técnico mecânico Hélio Gazetta Filho, morador de Campinas e há 14 anos diretor da associação. Suas funções: maquinista e restaurador de carros de passageiros, tarefas que executa com desusada satisfação, todos os fins de semana. "Nada é comparável ao prazer de tomar nas mãos um carro em frangalhos e poder vê-lo, meses mais tarde – depois de reformado em nossas oficinas –, servindo aos turistas."

Cenário para TV

O diretor de comunicação social da ABPF esclarece que nos fins de semana as composições estão sempre cheias e que de abril a novembro os dias úteis são reservados para o transporte turístico de estudantes (projeto pedagógico). "Também alugamos o trem para casamentos, passeios com grupos de pessoas da terceira idade (feito para os saudosistas matarem a saudade da maria-fumaça), convenções de empresas, gravações de comerciais e filmagens em geral. Volta e meia a televisão utiliza nosso patrimônio como cenário em seus seriados. Foi assim com as novelas ‘O Rei do Gado’, ‘Serras Azuis’ e ‘Estrela de Fogo’." Essas viagens são didáticas, e as explanações sobre a ferrovia e sua história começam na estação de embarque, Anhumas. Numa das salas do velho terminal funciona um museu que mantém em exposição peças de antigas locomotivas e vagões de passageiros, objetos, aparelhos de comunicação que deram vida às estações de outrora (telefone de manivela, telégrafo e sino) e muitas fotos.

Essa estrutura operacional é única no país. A ABPF atua em outros pontos do Brasil por meio de sedes regionais em São Paulo, Araraquara e Franca (no interior do estado), Rio de Janeiro, Tubarão e Rio Negrinho (em Santa Catarina). São museus com bibliotecas que exibem peças e partes de marias-fumaças. A única exceção fica por conta de Rio Negrinho, que promove o turismo sobre trilhos num trecho de 50 quilômetros. "Só que sem a regularidade do trabalho levado a cabo entre as estações Anhumas e Jaguary, traçado exclusivo da ABPF e onde colocamos trens para correr a qualquer hora. Em Rio Negrinho, dependemos de autorização da proprietária do traçado, a Ferrovia Sul Atlântico", observa Silva.

As diferenças não param por aí. Os 24 quilômetros explorados comercialmente pela associação são uma cópia da paisagem de décadas atrás. As estações intermediárias, onde moravam os funcionários que cuidavam da manutenção da linha, conhecidos por "turma", estão lá, em adiantado processo de restauração. A ABPF está investindo na recuperação do conjunto arquitetônico das paradas de Carlos Gomes, Desembargador Furtado, Tanquinho e Pedro Américo. "Nosso objetivo é formar o maior museu vivo da América Latina", disse em recente depoimento o diretor de cultura da entidade, Henrique Anunziata. Como fazer isso, se o dinheiro é sempre curto? Que tal ceder em regime de comodato as casas para os sócios decididos a reformá-las? Aparentemente descabida, a idéia foi aceita. Resultado: as estações e construções adjacentes se transformaram num grande canteiro de obras. "Ganhamos uma casa de campo", diz, eufórica, Carmen Cecília Bianchi, esposa do vice-presidente da ABPF. O casal vem há três anos restaurando por conta própria uma das sete residências da Estação Pedro Américo. Carmen diz que os dois filhos menores contam nos dedos os dias da semana que faltam para a sexta-feira, quando a família costuma tomar o caminho de Pedro Américo. "Agora temos o nosso sítio." Essa curtição ganha um sabor ainda mais especial quando Francisco Carlos Bianchi, o marido de Carmen, é escalado para pilotar a maria-fumaça – uma rotina que se repete pelo menos um sábado por mês. Quando ele se aproxima de Pedro Américo alegra os ouvidos da mulher e dos filhos com um apito longo. Faz parte da magia da ferrovia.

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