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O poder dos cartórios

LOURENÇO MOTA

A questão da oficialização dos cartórios voltou a provocar discussões apaixonadas nos últimos tempos. Não é de admirar que esse problema desperte tanto interesse em cada um de nós. Estamos condenados a conviver com eles, pois estão presentes nos momentos decisivos de nossas vidas – alegres e tristes. É neles que registramos nascimentos, casamentos, mortes, contratos. Precisamos deles para comprar e vender imóveis, reconhecer firmas, autenticar cópias de documentos e daí por diante. Somos inseparáveis, o que não impede uma relação complicada, cheia de queixas, que vão do aborrecimento das filas para alguns serviços até a revolta contra taxas que somos obrigados a pagar sem discutir.

Sempre foi assim. Aliás, foi muito pior no passado. Na história do Brasil, cartório desde o início se confunde com privilégio – algo que o rei de Portugal reservava como um dos presentes especiais a ser distribuídos entre amigos, protegidos e apaniguados. Para uns as capitanias, verdadeiros pequenos países, tal o seu tamanho; para outros as sesmarias, imensos latifúndios; para outros, ainda, os cartórios.

Todos hereditários, autênticos feudos, cuja exploração garantia fortuna a seus titulares. De todos, os cartórios eram os de exploração mais fácil, por causa do baixo investimento requerido.

Uma ação entre amigos e importante instrumento de cooptação. O folclore político nacional está cheio de casos de poderosos de várias épocas, desde a Colônia até a República, que premiaram parentes ou recompensaram os serviços de correligionários com a outorga de cartórios. É por essas e por outras que o nosso Estado já foi chamado de cartorial. O cartório entrou no vocabulário da sociologia política e da economia, na qual virou sinônimo de concessões e proteções que redundam em reservas de mercado. É verdade que muita coisa mudou nos últimos tempos. A posse de um cartório deixou, por exemplo, de ser hereditária ou mesmo vitalícia.

Apesar desse avanço recente, aquele longo passado continua a influenciar poderosamente a maneira como a população encara os cartórios. Se queremos entender o problema com a necessária isenção e a indispensável objetividade, é preciso pôr os pingos nos is. Tentar separar os fatos dos preconceitos e da compreensível má vontade. Já que os cartórios sempre farão parte de nossas vidas, esse é o primeiro passo para vislumbrar soluções que tornem a convivência menos conflituosa, mais amena.

Ricos e pobres

Para começar, a imensa maioria tende a colocar todos os cartórios num mesmo balaio, sem levar na devida conta as diferenças, sobretudo de rendimento, que os distinguem. E elas são grandes. Há os de registro civil, que cuidam de nascimento, casamento, morte. Há os que se ocupam de confecção de testamento, pacto antenupcial, procuração, autenticação de cópias, reconhecimento de firmas. Há os que registram os imóveis. Há aqueles em que são feitos os registros de pessoas jurídicas, de contratos, títulos e documentos, além de registro e entrega de notificação. E também os de protestos de títulos. Detalhe importante: nem todos são ricos. Há entre eles pelo menos um primo pobre: o de registro civil.

Os serviços aos quais a massa da população recorre com freqüência são o registro civil, o reconhecimento de firmas e a autenticação de cópias. É principalmente neles que se pensa quando se fala em oficialização dos cartórios. O caso das firmas e das cópias é um absurdo, existente talvez só no Brasil, que pode e deve ser resolvido por meio de lei, extinguindo-se a obrigatoriedade de reconhecimento e autenticação. Se se confia, até prova em contrário, na autenticidade da assinatura dos cheques, a ponto de eles serem usados largamente nas compras a crédito, por que não fazer o mesmo com relação a outros documentos? Quanto ao registro civil, questiona-se, pensando nos mais pobres, o fato de o cidadão ter de pagar por serviços exigidos por lei, como registros de nascimento, casamento e óbito.

A alegação de que a lei já obriga os cartórios a não cobrar esse tipo de serviço dos pobres não convence. Se o cartório duvidar da palavra do usuário, ele terá de providenciar um atestado de pobreza. E é fácil imaginar o que ele vai sofrer nos labirintos da burocracia para conseguir o tal atestado. Em geral, desiste antes mesmo de começar a busca. Na prática, portanto, não funciona. A solução seria mesmo tornar gratuito o fornecimento desses documentos e, para isso, há mais de um caminho.

Soluções possíveis

Pode-se oficializar esses serviços, isto é, passá-los para o Estado. Tanto no sistema francês – com o qual o brasileiro tem muitas semelhanças – como no italiano, registros de nascimento, casamento e morte são feitos gratuitamente nas prefeituras. Pode-se obter o mesmo resultado com a adoção de um sistema de convênio pelo qual os cartórios receberiam do Estado recursos suficientes para executar aqueles serviços sem qualquer despesa para os usuários. Pode-se ainda chegar a um acordo com os demais cartórios para que eles cumpram essa tarefa de graça. Isso seria uma justa retribuição por deterem privilégios que lhes asseguram alta rentabilidade.

Qualquer uma dessas soluções, mais o fim do reconhecimento de firmas e da autenticação de cópias, já eliminaria a maior parte das queixas da população. Quanto aos outros cartórios, a situação é um pouco mais complicada. Os adversários da oficialização alegam, por exemplo, que ela vai contra a tendência de o Estado moderno delegar o máximo possível de atribuições aos particulares, limitando-se a funções de coordenação e fiscalização. Acrescentam que a passagem desses serviços para a órbita estatal poderia torná-los piores, já que são notórias a ineficiência e a lentidão da burocracia oficial. No final das contas os usuários é que sairiam perdendo.

Por maior que seja o peso desses argumentos, é inegável a procedência de muitas queixas da população. Não propriamente quanto à qualidade do serviço prestado pelos cartórios, mas quanto ao preço que se é obrigado a pagar por ele. O melhor exemplo é o do registro de imóveis. Pouco importa que, no conjunto da população brasileira, seja uma minoria que recorre a esse serviço. Não é por ser uma minoria que seus anseios e queixas podem ser ignorados. Reclama-se, e com razão, que as taxas cobradas são muito elevadas.

Quem fixa e quem embolsa essas taxas? Quem faz isso é o Estado, não os cartórios, embora eles sejam ouvidos e, naturalmente, pressionem para que os valores fixados sejam altos, pois é deles que vivem. E mais: o Estado, sem trabalhar, sem prestar diretamente qualquer serviço, fica com 27%, mais 20% que, no caso de São Paulo, vão para o Ipesp, o instituto de aposentadoria dos funcionários. Os restantes 53% ficam com os cartórios. Nessas condições, é claro que também o Estado, e não apenas os donos deles, tem interesse em manter altas as taxas cobradas do público. Esse é um aspecto nem sempre lembrado, mas cuja importância não pode ser menosprezada.

Como sempre foi

Aparentemente, também neste caso a solução não é difícil. Basta, para começar, que o Estado abra mão dos 27% que recebe sem fazer nada, ou de pelo menos parte deles. Por que não? E, em seguida, diminuir a margem de lucro dos cartórios no momento de fixar as taxas. É possível fazer isso de forma a assegurar-lhes um retorno razoável e digno pelo serviço que prestam. Mais uma vez, é o caso de perguntar: por que não? Quem determinou que eles têm, necessariamente, de ganhar tanto? Aos usuários não importa que os serviços sejam prestados pelo Estado ou por particulares, desde que tenham boa qualidade e custo razoável, coisas perfeitamente compatíveis.

Infelizmente, como quase sempre acontece, aquilo que parece tão fácil na teoria se revela muito difícil na prática. Tanto é assim que a discussão do problema dos cartórios se arrasta há décadas, sem que nada tenha sido feito de concreto até agora para satisfazer os interesses dos usuários.

No caso do registro de imóveis, nem o Estado nem os donos de cartórios querem ouvir falar em eliminação ou diminuição de ganho. Preferem, em vez disso, manter uma interminável discussão sobre oficialização ou não dos serviços. Talvez por saberem que ela não leva a nada, o que é uma forma de apelar para o tradicional "deixa estar para ver como fica". E, é claro, fica tudo como sempre foi. Para mudar esse quadro seria necessário que o Legislativo se dispusesse a enfrentar os poderosos grupos de pressão que querem a todo custo mantê-lo indefinidamente como está. E até agora nossos legisladores não deram nenhum sinal de que têm coragem para isso. A força daqueles grupos é tão grande que eles conseguiram resistir até mesmo ao poder discricionário do regime militar, quando este tentou, sem êxito, introduzir mudanças radicais nos cartórios.

Fiscalização

A única coisa que não parece passível de discussão nesse problema em que quase tudo é complicado e polêmico é a eficiência da fiscalização das atividades dos cartórios pela Corregedoria da Justiça, por determinação constitucional. Quer eles continuem privados como hoje, quer sejam oficializados algum dia, a ação da Justiça é a melhor garantia para os usuários de que os serviços prestados manterão alto nível de qualidade e seriedade. O juiz José Renato Nalini, do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, que já trabalhou na Corregedoria e é grande conhecedor do assunto, chama a atenção para a abrangência dessa fiscalização e o rigor com que é exercida.

Em São Paulo, pela interpretação que a Justiça dá ao artigo 236 da Constituição, que trata dessa matéria, é possível até mesmo cassar a delegação dada aos cartórios, se eles não estiverem funcionando como devem. Depois de elogiar a qualidade e a seriedade com que os cartórios em geral executam seus serviços, ele lembra que "a Corregedoria tem poderes para, se for o caso, destituir o titular de um cartório, depois de processo administrativo, e nomear um interventor até que se faça concurso para a escolha do novo titular".

Como se vê, foi-se o tempo em que os titulares de cartórios podiam se comportar como senhores quase absolutos de seu negócio, que era vitalício e na prática hereditário, na medida em que lhes era possível encaminhar sua sucessão. Hoje nem estabilidade no emprego têm mais. Mas as mudanças realmente importantes pararam aí.

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