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Biblioteca feliz

REGINA ROCHA

Quando se fala em biblioteca das escolas básicas brasileiras, imagina-se uma sala afastada do convívio dos alunos, mobiliada com uma escrivaninha à entrada e livros dispostos sem ordem clara nas prateleiras. Em geral, o local permanece aberto apenas para atividades complementares de aula, desestimulando o contato espontâneo das crianças com as obras.

Esse modelo tradicional de biblioteca, comum na rede pública, mas também presente na maioria das escolas particulares, está sendo finalmente repensado por educadores, administradores escolares, pesquisadores e arquitetos. Um dos projetos pioneiros pode ser visto na Escola Municipal de Primeiro Grau Professor Roberto Mange, no Jardim Esther, bairro da periferia de São Paulo. Desde maio, alunos e professores contam com um espaço acolhedor, confortável e colorido, criado não apenas para abrigar livros, mas também mídias eletrônicas, como computadores e aparelhos de vídeo e som, tudo organizado da maneira mais acessível às crianças e jovens.

A sala integra uma experiência pioneira de construção de "bibliotecas interativas" em escolas, projeto de pesquisa desenvolvido desde 1995 pelo Proesi (Serviços de Informação em Educação), do Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Participaram também professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadores da Académie de Créteil, na França – estes buscando novas idéias para a construção de espaços culturais voltados aos imigrantes de ex-colônias, parcela mais pobre da população francesa.

No início de 96, a professora Maria Helena Perrotti procurou os pesquisadores do Proesi em busca de uma solução para um grave incidente que atingira a sala de leitura da escola: as fortes chuvas daquele ano haviam inundado o local, precariamente instalado no subsolo do prédio, e destruído metade do acervo de livros, tornando o ambiente ainda mais insalubre. A ajuda dos pesquisadores não tardou, e o projeto, inscrito em um programa de melhoria do ensino público, ganhou financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa). "Estavam ali as condições ‘ideais’ para a pesquisa: uma escola pobre, com sérios problemas de repetência e evasão escolar, próxima a três grandes favelas e sujeita a todos os problemas da violência urbana", conta Edmir Perrotti, do Departamento de Biblioteconomia da ECA e coordenador do projeto.

Exercício da curiosidade

Mais que uma biblioteca convencional, a equipe procurou criar uma forma interativa de acesso ao conhecimento, permitindo que os alunos não só consultem livros, revistas, vídeos, CDs de música e multimídia, mas também elaborem os seus próprios textos, que passam a compor o acervo, ao lado das outras publicações. Todos esses recursos – livro, computador e também a comunicação oral – têm peso igual na construção do conhecimento das novas gerações, argumentam os pesquisadores.

A variedade e atualidade do acervo surpreende: são livros de arte, quadrinhos, jornais, livros de culinária, rock, esporte, entre outros assuntos, rompendo-se a fronteira entre os livros para diversão e estudo. Para Regina Obata, professora da ECA que faz a vinculação do projeto entre a USP e a escola, "do ponto de vista do leitor, não há realmente um limite na compreensão do que sejam os diversos tipos de materiais". Como exemplo ela cita aquele tipo de livro, bem popular entre as crianças, que ao se abrir forma objetos como paisagens e maquetes: "Livros assim fazem muito sucesso entre os adolescentes, a despeito de serem classificados como infantis. Se algo define um livro, é o fato de dar prazer", sustenta Regina Obata. Quanto à biblioteca, a melhor definição seria: um lugar para o exercício da curiosidade.

Arquitetura

A interatividade projetou-se também no detalhamento arquitetônico, com móveis e espaços modulares, que podem cumprir várias funções, conforme o interesse e a necessidade dos usuários. Assim, a mesma estrutura serve para apoiar uma mesa, funcionar como estante e abrigar livros ou equipamentos eletrônicos. Mais: detalhes de desenho no piso e dois lances de arquibancadas delimitam um pequeno auditório para palestras ou encenações teatrais dos alunos. Quando não há "espetáculo", a área é utilizada para a convivência com livros e amigos.

O conceito de biblioteca interativa implica liberar o acesso dos alunos à sala e aos materiais, principalmente para o exercício do direito à expressão, desvinculado das obrigações curriculares e em horários livres como o recreio, por exemplo. No entanto, ainda não é o que se vê na escola. Por trás de pequenas dificuldades, como falta de um encarregado para abrir a sala, ou sutis barreiras que afastam as crianças da exploração dos meios eletrônicos, há ainda certa resistência dos funcionários do programa Sala de Leitura, desenvolvido há anos nas escolas municipais de São Paulo, voltado prioritariamente a atividades complementares às aulas.

"Após a primeira fase, em que implantamos a biblioteca, apresentamos os materiais e apontamos suas possibilidades, entramos agora na etapa mais difícil da pesquisa, que envolve a questão do uso. Como a proposta de apropriação do espaço será entendida e aceita pela escola? Ainda não sabemos", diz o professor Perrotti. As crianças revelam evidente satisfação com a nova biblioteca que ajudaram a construir. "Elas estão preparadas para utilizá-la, pois são mais abertas à idéia de participação. Resta o trabalho de capacitação dos professores, sempre mais complexo, e que será a próxima etapa do projeto", informa Regina Obata.

Apesar dessas dificuldades iniciais, a biblioteca interativa já atrai interessados, como a prefeitura de Diadema e de outros municípios paulistas, algumas escolas particulares e participantes do projeto Pró-Leitura do MEC. "É importante frisar que não se trata de copiar esta biblioteca, repeti-la em outro local; o conceito de interatividade é que importa, e sua aplicação resulta em vários formatos de biblioteca, conforme a situação dada. Nosso projeto custou cerca de R$ 39 mil em mobiliário e reforma do espaço. Mas vamos imaginar um município sem recursos. O livro, para essa comunidade, poderá surgir dos registros da comunicação oral", imagina Edmir Perrotti.

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