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Além do Pantanal
JOSÉ GERALDO COUTO
Aos 82 anos, com livro novo na praça (Retrato do artista quando coisa, Record, 81 páginas), Manoel de Barros já não pode ser chamado simplesmente de "poeta do Pantanal". Com 14 livros publicados desde 1937, ele é hoje reconhecido pela crítica como um dos grandes nomes da poesia brasileira contemporânea. E seu público leitor aumenta a cada ano, principalmente desde que Manoel foi descoberto pela intelligentsia do eixo Rio-São Paulo, nos anos 80.
Sua literatura já foi chamada de "ecológica", "telúrica" e "primitiva". De todos esses rótulos, o único que lhe agradou foi o último. "Um dia me chamaram de primitivo:/ Eu tive um êxtase", diz um poema de seu novo livro.
Na verdade, a imagem mais falsa que se pode ter de Manoel de Barros é a de um poeta dedicado a cantar a exuberância da paisagem e da fauna pantaneiras. Como ele mesmo reiterou inúmeras vezes, seu interesse está voltado para as coisas miúdas, rasteiras, menosprezadas pela razão utilitária da nossa sociedade. Os seres que povoam sua poesia são caramujos, pedras, sapos, lesmas, lagartixas. Quando muito, uma garça. "É um olhar para baixo que eu nasci tendo", resume em Retrato do artista quando coisa.
Mas não é com espírito de retratista ou de entomólogo que ele se debruça sobre esses seres, e sim com o objetivo de chegar àquilo que chama de "transfiguração epifânica", ou seja, uma iluminação sobre o mistério sagrado da vida. Sua busca é menos intelectual do que espiritual.
Apesar de zombar da solenidade da poesia ("O poema é antes de tudo um inutensílio", escreveu em Arranjos para assobio, de 1982), Manoel de Barros confere-lhe um papel essencial na busca do conhecimento.
Como todo grande artista, Manoel não se conforma com a incompletude do homem (que entretanto ele considera "sua maior riqueza"), com a sua incapacidade de integrar-se ao fluxo anônimo da natureza. Sua utopia é a maior de todas: abolir a distância entre o sujeito que vê o universo e o próprio universo. Desse desejo de apagar os limites entre o homem e os seres do mundo é que surgem alguns dos versos mais característicos do poeta: "Adoecer de nós a natureza" (O livro das ignorãças), "É preciso entrar em estado de árvore" (Retrato do artista quando coisa).
A radicalização desse impulso rumo à integração cósmica – que lembra muito a busca zen-budista do "satori" ou iluminação – leva a uma subversão absoluta da sintaxe, já que esta é vista como uma forma de aprisionamento da palavra análoga à domesticação dos seres pela lógica cotidiana. Um exemplo dessa tentativa de superação das barreiras da língua são os versos: "Quando o rio está começando um peixe,/ Ele me coisa/ Ele me rã/ Ele me árvore" (O livro das ignorãças).
Substantivos que se tornam verbos, verbos que se adjetivam – na literatura de Manoel de Barros a língua é um organismo vivo, fluido, irrepresável.
Por outro lado, seu poder de síntese e condensação é cada vez maior – por isso seus poemas e livros não param de diminuir de tamanho.
Vida singular
Para chegar a essa liberdade de linguagem e, ao mesmo tempo, a essa depuração formal, foi um longo caminho. A trajetória de vida de Manoel de Barros é tão singular quanto sua própria poesia.
Nascido em Cuiabá em 1916, ele foi criado como um menino de fazenda, entre os bichos do campo e à beira dos rios do Pantanal. Estudou dez anos em colégio de padres, mas já na adolescência conheceu as grandes cidades, começando pelo Rio de Janeiro. Aos 20 anos, ainda na década de 30, empreendeu uma viagem aventuresca que incluiu a Bolívia e Nova York. Publicou seu primeiro livro aos 21 anos, em 1937: Poemas concebidos sem pecado. A repercussão foi praticamente nula.
Na década seguinte, quando morava no Rio de Janeiro, casou-se com Stella, filha de fazendeiros de Minas e sua companheira até hoje. No Rio, tímido e retraído, não conseguiu aproximar-se dos meios literários da época. Um episódio curioso ilustra sua situação. Um dia, criou coragem e procurou seu ídolo maior, o poeta Manuel Bandeira. "Bati na porta de seu apartamento na Esplanada do Castelo, no Rio – e fiquei esperando trêmulo de emoção. E, como o poeta se demorasse a abrir a porta, despenquei correndo pelas escadas, seis ou sete andares, com o pulso a 120, decerto", resumiu numa entrevista.
Em outra ocasião, no Pantanal, apresentaram-lhe João Guimarães Rosa, que visitava a região. Timidamente, Manoel trocou com o autor de Sagarana algumas informações sobre bichos e palavras regionais. A conversa não foi muito longa, mas a afinidade entre os dois escritores ficou evidente. Manoel de Barros – que foi muitas vezes chamado de "Guimarães Rosa da poesia"– confessa que lhe custou muito esforço não sucumbir à influência do ficcionista mineiro. Entre os livros que ainda planeja publicar, está uma reconstituição, meio verídica, meio inventada, de seu diálogo com Rosa.
Em 1949, com a morte de seu pai, Manoel de Barros viu-se diante de uma encruzilhada. Ou continuava no Rio, anônimo e isolado, publicando discretamente seus livros de vez em quando, ou voltava para o Pantanal, para administrar as terras que o pai lhe deixara de herança, na região de Corumbá. Por sugestão da mulher, viraram fazendeiros.
A partir daí, Manoel de Barros passou a dividir seu tempo entre cuidar da terra e fazer poesia. Continuou publicando seus livros (lançou quatro entre 1956 e 1970), e foi furando lentamente o bloqueio do anonimato, tornando-se conhecido em círculos cada vez maiores de leitores. Sua descoberta pelos grandes centros do sudeste se deu em 1980, quando mandou seu novo livro, Arranjos para assobio, ao escritor, desenhista e humorista Millôr Fernandes, no Rio. Millôr gostou tanto que se empenhou pessoalmente em divulgá-lo entre intelectuais e jornalistas cariocas. Aos poucos, Manoel foi-se tornando, nos meios acadêmicos e bem-pensantes, uma espécie de autor cult.
Jornais e revistas começaram a tentar entrevistá-lo, a maioria das vezes sem sucesso. Avesso à publicidade e às colunas sociais, Manoel de Barros viu criar-se a seu respeito o mito do autor "bicho-do-mato", do ermitão que se afastava do mundo e só falava com os bichos. Nada mais falso. Superada a primeira barreira da timidez, o escritor mostra-se afável e falante, capaz de discorrer tanto sobre animais de sua região como sobre literatura, cinema ou artes plásticas – sempre compartilhando suas dúvidas e evitando o tom professoral.
Sintaxe dos analfabetos
Talvez quem tenha melhor captado essa ambivalência de Manoel de Barros – um homem na confluência entre a natureza bruta e a cultura mais refinada – tenha sido o cineasta mato-grossense Joel Pizzini, que dedicou ao poeta e sua obra o curta-metragem Caramujo flor, realizado em 1990. A dupla face de Manoel de Barros – moderno e arcaico, rural e urbano, rústico e sofisticado – aparece no filme desdobrada em dois "alter egos", um interpretado por Ney Matogrosso e o outro por Rubens Corrêa.
O ano de 1990 foi também o momento em que Manoel de Barros fez a primeira grande reunião de sua obra até então, recolhida no volume Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda), editado pela Civilização Brasileira. Graças a esse volume, que tomava emprestado o título de um livro seu publicado em 1966, tornou-se acessível a um público mais amplo a quase desconhecida produção inicial do autor. Descobriu-se então que, desde seus dois primeiros livros – Poemas concebidos sem pecado (1937) e Face imóvel (1942) –, Manoel de Barros já cultivava algumas das características que seriam centrais em sua obra: a atenção às criações lingüísticas da fala popular, a memória da infância, o humor e a ironia diante da cultura livresca, etc.
Manoel de Barros fica hoje mais tempo na cidade (em Campo Grande) que na fazenda. Divide seu tempo, segundo diz, entre as conversas com o povo e a escrita. Procura a sintaxe torta dos analfabetos, dos loucos e das crianças. "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema", escreveu em O guardador de águas (1989).
Escreve todo dia, à mão, em pequenos cadernos. Seu maior trabalho vem depois: desbastar o que foi escrito, jogar fora tudo o que for lugar-comum, redundância e previsibilidade. Antes de se dar por satisfeito, mostra tudo à mulher, Stella, que opina se o poema está pronto ou ainda falta trabalho.
É assim que funciona a "oficina" de um dos mais originais poetas de nosso tempo. Observação, experiência vivida – tudo isso plasmado por uma inteligência aguda e uma absoluta generosidade diante da palavra e da vida. O resultado está nas livrarias, para quem quiser ver.
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