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Onda perigosa

CECÍLIA ZIONI E LIA SANTANA

Inadimplência nunca é bom, mas desta vez é pior porque nunca esteve em nível tão elevado e por tanto tempo. Quem diz isso é alguém acostumado ao assunto: Marcel Solimeo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), que há 35 anos analisa dados colhidos pelo Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC).

E a situação pode se agravar ainda mais se a anunciada recessão se confirmar em 1999, diz o presidente da Associação e do Sindicato dos Bancos do Estado do Rio de Janeiro, Walber José Chavantes. Ele calcula serem 8,5% hoje os que atrasam pagamento entre os que compram a crédito: há cinco anos, eram só 3,5%. Os números de Marcel são bem superiores: credores em atraso chegaram em outubro à média de 13%.

Até a retomada da economia, o Brasil corre o risco de viver uma terceira onda de inadimplência, adverte o presidente do Sindicato dos Bancos. A primeira onda, explica, ocorreu em 1995, quando os consumidores superavaliaram sua capacidade de pagamento, que aumentara com o fim da inflação do pós-Real.

A liquidez melhorou em 1996, mas a segunda onda começou em 1997, quando o governo elevou os juros para desaquecer a economia. Quem tinha prestações pós-fixadas e quem estava endividado no cheque especial passou a encarar uma pesada despesa extra mensal com juros. E os que tomavam dinheiro emprestado de um lado para pagar do outro perderam esse recurso, porque, com o aperto, sumiu grande parte da liquidez da economia, diz Chavantes.

Dados da Federação do Comércio do Estado de São Paulo revelam que, em novembro de 98, 55% dos consumidores de São Paulo declararam que sua renda mensal estava muito comprometida com gastos do dia-a-dia, como contas de luz, água, telefone, condomínio ou aluguel. Dívidas de curto prazo, como carnês, empréstimos pessoais e cartão de crédito, tiravam o sono de 43% dos paulistanos. E 34% deles ainda sofriam com o pesadelo de dívidas de prazo mais alongado, como prestação de imóveis e veículos.

A retração prevista para 1999 poderá aprofundar esse quadro, ressalta Chavantes, abrindo campo para uma terceira onda sem que a segunda tenha amainado.

Há clara disposição para o pagamento de débitos atrasados, mas o que falta, mesmo, é disponibilidade de dinheiro para isso, diz Solimeo, citando como exemplo o aumento dos reabilitados entre setembro e outubro. "O recorde de inadimplência de setembro fora reflexo imediato da alta de juros, quando a Taxa de Assistência Bancária do Banco Central (Tban) bateu em 50% e os comerciantes se tornaram menos tolerantes, elevando o envio de nomes de devedores para o SCPC. No primeiro momento, muita gente perdeu a condição de pagamento; depois, esse pessoal pôde se recompor e saldou parcialmente o débito." Não por acaso, talvez tenha sido recorde a visitação em todo o país, dia 16 de outubro, às igrejas de Santa Edwiges, padroeira dos desempregados e endividados. A mesma coisa aconteceu nas igrejas de São Judas Tadeu, protetor dos aflitos, venerado a cada final de mês.

Nestes anos recentes de inadimplência crescente, o consumidor passou a fazer uma ginástica para manter a cabeça acima do nível da água, comenta o economista, baseado em indicações das pesquisas que a Associação Comercial passou a fazer, semestralmente, na tentativa de detectar os principais fatores da inadimplência. Os três últimos levantamentos indicam ser o desemprego (cerca de 40% dos casos) a primeira causa de atraso, seguido pelo descontrole nos gastos (15%).

Psicologia do atraso

"Há uma seqüência lógica no atraso", diz Solimeo, "que começa por onde a sanção é menos imediata." Ele afirma ser explicável a preferência pelo que chama de "inadimplência incógnita", a que não aparece na lista do SCPC, e que ele explica pela trajetória seguinte:

Primeiro, deixam de ser pagas contas de água, luz ou telefone, cujo fornecimento pode ser recuperado facilmente. Em seguida, pagamentos de carnês vão sendo retardados, principalmente depois da baixa de 10% para 2% na multa. "Quem precisa pagar carnê e conta de cartão de crédito e não tem dinheiro suficiente, por exemplo, prefere retardar o primeiro e quitar o segundo, evitando o impacto dos juros e multas do cartão, que podem ir a 20%", explica. O terceiro passo é o mais dramático: atraso em taxas de condomínio, mensalidades escolares e de planos de saúde – contas típicas da classe média. "Aí os problemas ficam mais visíveis: o filho não pode fazer prova na escola; o nome do devedor sai na cartinha do condomínio", assinala.

Sinais de que essa trajetória está sendo cada vez mais freqüente estão por aí: um deles é a anunciada decisão do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo de processar na Justiça pais que atrasam por 60 dias o pagamento das mensalidades de seus filhos. Uma cláusula em que se preveja tal procedimento seria introduzida nos contratos de matrículas para 1999.

Outro sinal: a Telesp reduziu de 30 para 15 dias o prazo para o usuário pagar conta atrasada, antes de sua linha ser bloqueada. A empresa considera normal o índice de inadimplência entre os assinantes.

Na Comgás, o índice de consumidores com conta atrasada não chega a preocupar nem a mudar critérios de corte (70 dias após o vencimento). O que se faz é melhorar o sistema de cobrança: além de avisos na conta, dá-se um telefonema para o consumidor, 12 dias antes do prazo da interrupção. Em 1998, inventou-se um "mutirão de contas", como explica Luiz Augusto Michelin, superintendente de finanças: em abril e em setembro, expedem-se segundas vias de contas não pagas, para facilitar sua liquidação. Para desempregados, a Comgás, desde o começo dos anos 90, ampliou para 180 dias o prazo de tolerância. Nos meses de outubro de 1996 a 1998, foram estes os níveis de atraso: 2,76%, 2,77% e 3,07%.

Tentando deter – ou pelo menos alterar a favor do credor – a trajetória dos atrasos, surgem novos serviços no mercado. Solimeo cita o aumento de empresas que prestam serviços de cobrança e a alteração nos parâmetros e critérios usados para concessão de crédito. "Antes, o item emprego era importante na análise do risco do tomador; agora, prefere-se analisar a performance dessa pessoa como pagador, pois emprego já não é garantia forte."

A Associação Comercial de São Paulo, responsável pelo Serviço Central de Proteção ao Crédito, está lançando um novo cadastro, o de bons pagadores, pelo qual se espera premiar o cliente pontual com taxas mais amenas, o que significará menor comprometimento da renda.

Em decorrência desse cenário, aparecem no mercado indicadores novos ou pouco utilizados antes. Um deles é o credit score, pelo qual se verifica o potencial de cada tomador. A Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) prepara, para 1999, um Índice Nacional de Inadimplência. Até agosto, os índices regionais apontavam média nacional de 13,8%, sendo o nordeste o campeão (17,3%), seguido pelo centro-oeste (15,5%) e pelo norte (14,7%). O sudeste ficou na quarta colocação (12,2%), e o sul revelou o melhor desempenho (10,7%). O índice deve consolidar dados de câmaras de 900 municípios em todo o país.

Estatísticas não há, mas o mercado anota que, após a explosão dos juros, é cada vez maior o número de escritórios de advocacia que ampliam o número de pessoal especializado em recuperação de débitos. A maior parte trata, é claro, de dívidas decorrentes de falências. É posterior à alta de juros, também, a criação da Associação das Empresas de Recuperação de Crédito (Aserc), fundada em setembro último já com 19 sócios, e que detém 70% do mercado de crédito direto ao consumidor.

Quem atrasa e por quê

A Grupo Unidos, a maior empresa especializada em recuperação de crédito (4 mil profissionais em 500 pontos do país), deverá reaver R$ 1,5 bilhão em títulos em 1998, segundo o diretor de Informações Julio Shinohara. A empresa juntou um bom corpo de especialistas em inadimplência para proteger seus clientes. Esse grupo recomenda muito cuidado aos consumidores e o estabelecimento de controle rígido sobre os gastos, de forma a evitar pelo menos os falsos imprevistos. Pode parecer evidente, mas, quando se analisam resultados de pesquisas da Unidos sobre razões para a inadimplência, percebe-se que essa obviedade nem sempre está tão clara para os consumidores.

O levantamento, feito entre cerca de 25 mil pessoas com carnês atrasados no país, revela que uma das principais causas para a inadimplência é a compra para terceiros, isto é, quando alguém abre um crediário no próprio nome para que um amigo ou parente compre alguma coisa. Cerca de um quarto dos atrasos de pagamentos de prestações ocorre por ter essa pessoa deixado de pagar. A empresa, acrescenta Shinohara, aprofundou a pesquisa e descobriu serem mais afetadas por esse problema as pessoas que ganham menos de R$ 500 por mês. Elas dificilmente têm como absorver no seu orçamento o pagamento de prestações do parente ou do amigo, assinala.

Deve-se notar que as compras por terceiros são motivadas, em 46% dos casos, pela impossibilidade de o verdadeiro comprador comprovar a renda e em 26% por já ter restrições em seu crédito – vale dizer, já estava com o "nome sujo".

Chama a atenção também o fato de que, conforme cresce a renda da pessoa, menos disposta ela se mostra a assumir crediário de terceiros em seu nome. Somente 17% dos que ganham mais de R$ 2 mil mensais estão inadimplentes por esse motivo.

É curioso que, na parcela acima de R$ 2 mil, a incidência de atrasos de pagamento por falta de tempo ou por esquecimento seja a mais elevada (5,9%) entre todas as categorias salariais. Os mais pobres (renda até R$ 500) se esquecem de pagar em apenas 2% dos casos, indicando maior preocupação em quitar seus compromissos em dia. E são imprevistas as principais causas de atraso entre estes consumidores: despesas extras com doenças (14,7%, ante 9,5% entre quem ganha mais de R$ 2 mil) e desemprego (9,1%, ante 4,9%). A Grupo Unidos aponta outro aspecto importante na pesquisa. Salário atrasado causava 18% em dezembro de 1997 e caiu para 15,5% em agosto de 1998. Shinohara assinala que esse problema é o segundo na lista de motivos de inadimplência e se preocupa quando o relaciona ao desemprego. A perda de emprego como razão de atraso, diz, saltou de 9% (em setembro e dezembro de 1997) para 12,5% em agosto de 1998. Ou seja, talvez o atraso no pagamento de salários não tenha sido reduzido entre as empresas, pois muitas das que estavam em dívida com os funcionários estão simplesmente fechando as portas.

Só uma marola?

Há, porém, uma luz no fim do túnel, e pode ser que a terceira onda de inadimplência não passe de uma marola. Economistas do Grupo de Acompanhamento Conjuntural (GAC), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dizem que, quando o governo reduziu o ritmo da economia em 1995, usou para isso o aumento da taxa de juros combinado a restrições quantitativas de crédito, para segurar a demanda, em vias de iminente explosão. Hoje, o cenário difere muito daquele, com demanda em ritmo moderado de crescimento. Além disso, tanto em 1995 como em outubro de 1997, quando se decretou novo aumento dos juros, essa alta fora precedida por uma enorme expansão nos empréstimos bancários, que alimentavam a demanda.

Em ambas as ocasiões, segundo o diretor do Ipea, Claudio Considera, a elevação dos juros representou um choque sobre os endividados e gerou um nível de inadimplência tal que retardou a recuperação da economia. Agora, o grau de endividamento já se encontra em nível aparentemente contido e a indimplência estaria começando a apresentar sinais de arrefecimento. Com o ajuste fiscal, acredita, as necessidades de financiamento do setor público deverão diminuir e o governo terá condições de aliviar substancialmente o sistema de depósitos compulsórios elevados devidos pelos bancos sobre empréstimos concedidos e sobre depósitos. Isso, por sua vez, permitirá aos bancos diminuir a diferença entre as taxas de juros pagos ao captar dinheiro e as cobradas ao emprestar.

Vale dizer, os juros poderão diminuir e a oferta de crédito, aumentar. Mesmo havendo inadimplência dos clientes, dadas as dificuldades projetadas para 1999, os bancos pelo menos deverão dispor de mais recursos para fazer a rolagem dos créditos problemáticos, reduzindo o nível de inadimplência no país, assinala o diretor do Ipea.

Agruras de um agiota

A desestruturação causada pela inadimplência pode atingir até mesmo aqueles que, a rigor, estariam a salvo dela – os agiotas. Para os que são os donos finais do dinheiro, ou seja, os patrões nessa categoria de profissionais "liberais" que faz empréstimos a juros escorchantes, não há problema. O drama pode alcançar, porém, o agiota mais visível do público, aquele que fica do outro lado da mesa, entregando o dinheiro aos tomadores de empréstimos. Mas o dinheiro não lhe pertence. Apenas recebe gordas comissões de cada operação e tem de prestar contas de tudo aos verdadeiros capitalistas do negócio.

Um desses agiotas visíveis, que somente aceitou ser identificado pelas iniciais B. A., acreditou, por mais de uma década, que tinha tudo na vida, incluindo casa de veraneio, graças aos desesperados que a ele recorriam diariamente, e dos quais cobrava, nas épocas de inflação mais elevada, taxas superiores a 100% ao mês. Mas em meados de 1995, na primeira grande onda de inadimplência, B. A. começou a se sentir soterrado pelo volume de cheques devolvidos pelos bancos. Em conseqüência, foi se tornando ele próprio inadimplente em relação aos verdadeiros donos do dinheiro.

Para não perder a vida – esse ramo não admite falhas – vendeu tudo o que tinha, inclusive as linhas telefônicas, e passou a dormir no sofá da sala da casa de um irmão, enquanto a mulher e os filhos se refugiavam com familiares na Bahia. Mesmo vendendo tudo, B. A. ainda ficou devendo, e só escapou do pior porque dois de seus irmãos venderam seus carros e um pequeno sítio para cobrir o restante da dívida.

A partir daí, tentando refazer a vida, B. A. tornou-se gerente de uma espécie de escritório clandestino de um "banco de andar", com existência legal e cujas operações seguem as normas do Banco Central, mas, por vias transversas, empresta dinheiro sem se submeter a limites e a recolhimentos compulsórios ao Banco Central. E, obviamente, cobrando juros nas alturas.

B. A. conseguiu essa colocação porque ainda lhe restava um trunfo: a lista de clientes dos velhos tempos, pessoas que não deixaram de honrar os próprios cheques. B. A. melhorou de vida, alugou um apartamento e já vislumbrava a compra de um outro quando, em 1997, de novo os cheques dos clientes começaram a voltar sem fundos, de maneira crescente.

Conseqüência: perdeu o emprego e voltou ao sofá do irmão. No final de outubro, ao falar à revista "Problemas Brasileiros" estava disposto a dirigir um táxi pagando diária ao proprietário. Desta vez, ele acredita, está definitivamente fora do ramo.

Os grandes agiotas agem como uma forte rede que observa rígidas normas de solidariedade, mesmo sendo concorrentes. Uma delas são os sinais com que marcam os originais de contracheques dos clientes, único comprovante de renda que aceitam. Ao emprestar o dinheiro, carimbam nos contracheques um sinal qualquer, geralmente uma seta grossa, um círculo ou uma letra. Haverá tantos carimbos quantas forem as prestações.

Por causa desses sinais, quem toma dinheiro de um agiota não consegue recursos de nenhum outro enquanto o seu empréstimo não for pago, já que, ao examinar o contracheque exigido, o agiota ide

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