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Ficção Inédita
Hipster

Mário Bortolotto

Eu sou um jazzman e como tal só ando sob a chuva, o sax apertado contra o peito deixando escapar longos uivos de cachorro vagabundo nocauteado pela tempestade. Estou indo tocar num pubsinho escuro, um porão enfumaçado que um sujeito maluco abriu há um ano atrás e que é freqüentado sempre pelas mesmas pessoas, as mesmas caras insones que passam a noite sentadas nas mesmas mesas saboreando a mesma marca de uísque ordinário e as mesmas notas melancólicas que saem da boca do meu sax, os anjos que permitem ao sujeito maluco manter aberto o pub, o último refúgio. Desci as escadas espirrando, o capote todo molhado, o cão sarnento escapando da chuva, os caras me cumprimentaram com um aceno débil, os mesmos caras de todas as noites. Eu podia sentar em qualquer uma das mesas e beber o suficiente para subir aos céus. Vicente, o sujeito maluco, proprietário do pub, me acenou com uma garrafa, tomei um grande e longo trago e subi ao palco, coloquei a garrafa no chão e levei o sax à boca. Havia alguém no pub que eu não conhecia. No fundo, quase oculta, tomando um dry martini. Era loura, os cabelos brilhavam na luz azul, usava um vestido negro, isso deu pra sacar quando ela se levantou e veio caminhando com o copo de dry martini, sentou-se na primeira mesa bem na boca do palco e me encarou, não sorriu e não fez cara feia, apenas me encarou como se dissesse: “Ok, cara, você é um jazzman, pra que serve isso aí na sua mão? Vamos lá, toque, me mostre como é”. Levei a garrafa à boca, mas ela tinha razão. Eu sou um jazzman, ataquei de Hair Street, algumas cadeiras voaram, Vicente subiu no balcão, as garrafas começaram a passear pelo recinto, tava tudo bem, eu tava em casa, eu tava tomado, tava tudo legal, emendei com Big Heart. Malu subiu numa das mesas e começou o seu strip habitual de todas as madrugadas. Gilson Bola, um baixinho maluco e viciado em anfetaminas, subiu ao palco e começou a emitir sons guturais ao microfone. Rip estourou um champanhe. Eu não tava nem aí, apenas fazia o meu trabalho. Ela continuava ali, desfrutando de seu dry martini, impassível. Mas eu sou um jazzman, por isso bebi outro gole, a turba gritou “vai, cara, vai”. Um garotinho de no máximo dez anos sentou na escada, tinha os pés sujos e os cabelos oleosos, um rosto triste, um pequeno anjo querendo se iniciar na noite. Logo ele seria mais um, esfaquearia seu melhor amigo e então iria para casa ouvir Ornete Coleman, assim é. Mas eu sou um jazzman. Ela continuava ali, impássivel, os cabelos louros brilhando na luz azul, olhei pro garoto envolto na fumaça e toquei When a man loves a woman. Malu parou na calcinha, Vicente sentou-se no balcão, o garoto começou a escrever qualquer coisa na parede com um lápis, ela sorriu. O resto da noite foi calmo, soprei algumas baladas tristes, os espíritos se acalmaram, fiquei com medo de desencadear de novo a tempestade. Quando já estava cansado, sentei na borda do palco e tomei o último gole de uísque. Então ela me olhou e disse:
– Já tem onde dormir?
– Eu não costumo dormir – respondi.
– Como é que você consegue manter os olhos abertos depois que o sol nasce? – ela perguntou e fez um gesto evasivo como se não acreditasse no que eu havia acabado de dizer.
– Tem um colchão embrulhado ali atrás do balcão. O Vicente deixa eu ficar. É aqui que eu me protejo dos raios de sol.
– Eu tenho um pequeno apartamento, nada ostensivo, aconchegante.
Eu sou um jazzman, por isso, talvez, não estremeci, não questionei, apenas me levantei e a segui. Rip estava deitado com a cabeça em uma das mesas, nas mãos o sutiã de Malu. Subi as escadas atrás dela, era linda, assim, perceptível enquanto a noite morria. Na parede estava escrito com uma grafia muito clara: “Não é culpa de ninguém. É só o jeito como embaralharam as cartas”. Fiquei pensando quem era o garoto de pés sujos e cabelos oleosos que escrevia com grafia perfeita e citava David Goodis. Eu a segui pelo asfalto molhado, estávamos em época de chuva, chovia todas as noites. Invariavelmente de manhã, o sol vinha e fazia o seu serviço. Eu queria sair dali, subimos de elevador e entramos em seu apartamento. Ela perguntou se eu queria vinho e então me mostrou a foto do antigo namorado, um professor de história que segundo ela gostava muito de jazz, embora gostasse também de outros tipos de música, ele gostava sempre de várias coisas ao mesmo tempo. Ela, de uma coisa de cada vez, por isso eles não se deram bem e acabaram terminando. Ela me perguntou do que eu gostava.
– De jazz – respondi e atirei longe o porta-retrato com o professor de história.
– Por que você fez isso? – ela perguntou e tratou de colocar o professor em lugar seguro.
– Eu não gostei dele – tomei um bom gole de vinho e me acomodei em uma almofada com inscrições chinesas.
Ela começou a mexer nos discos.
– Quer ouvir alguma coisa? Eu não tenho muitos CDs de jazz, serve outro tipo de música?
Ela segurava um Marvin Gaye contra o peito.
– Por que a gente não vai direto ao assunto?
– O que você quer dizer com isso?
– Ah, você sabe, esse prólogo todo, tá muito manjado, primeiro um vinho, depois a música, você não vai tirar mesmo muito de mim. Por que a gente não vai de uma vez pra cama e acaba logo com isso?
– Eu não acho que as coisas tenham que ser necessariamente assim – ela disse isso franzindo as sobrancelhas e com um acento grave na voz como se levasse a sério o que estava dizendo.
– Deixa disso, você e eu estamos a fim de apenas uma coisa. Eu tô cansado, toquei a noite toda...eu tô louco pra ver o que você tem embaixo desse seu modelito de luto.
– Serve outro tipo de música ou não?
– Não – eu caminhei até ela e joguei longe o velho Marvin. Eu sou um jazzman e tudo o que eu queria eu só ia conseguir de uma maneira. Caímos sobre as almofadas e as coisas aconteceram ali mesmo, uma vinheta do Jonh Zorn tocava incessantemente na minha cabeça. No final foi tudo bem, adormeci.
Quando acordei, estava nu sobre as almofadas. A primeira coisa que procurei foi meu sax, ele estava encostado em uma estatuazinha grega, um desses deuses frescos, acho que Apolo. Minhas roupas estavam estrategicamente dobradas em cima do braço da poltrona, tratei de vestir as calças e entrar dentro do tênis que estava alinhado nos pés da poltrona. Era como se minhas roupas dissessem: “Tá na hora de ir embora. Sua presença por aqui é indesejável”. Fui até a cozinha. Ela fazia panquecas. Ontem à noite, por mais que eu me esforçasse, jamais conseguiria imaginar ela fazendo panquecas, uma inofensiva garota preparando o seu café da manhã. Ela sequer olhou pra mim. Abri a geladeira. Ainda havia um pouco de vinho, entornei a garrafa e deixei o casco vazio sobre a geladeira. O casco vazio também estava me mandando embora, e aquelas panquecas e o silêncio dela, o chiado da frigideira, a indiferença dela, todo o apartamento me jogava escada abaixo, achei melhor fazer a vontade deles. Fui pra sala, coloquei a camisa, peguei meu sax e já ia saindo quando vi o aquário. Eu não tinha ainda notado o aquário. Ele estava lá, ostensivo, hipnotizante, e mesmo assim eu ainda não tinha notado. Um aquário de apenas um peixe. Aproximei meu rosto do vidro. E foi como se o peixe tivesse me sacado com seus dois olhões tristes de peixe solitário. E nós ficamos nos olhando. O Hipster e o peixe. Em aquários diferentes, mas com vidas iguais. Escandalizados. Com nossa torpeza prepotente de seres solitários. Lets Get it on invadiu o apartamento. Marvin finalmente teve sua chance. Estava descendo as escadas quando vi o garoto sentado nos degraus, o mesmo garoto da noite passada, o mesmo garoto que escreve frases tiradas de livro noir nas paredes. Me sentei ao lado dele e o encarei. Ele disse: “Toca”. Levei o sax à boca e toquei Trouble in my mind, a música subiu as escadas, invadiu os apartamentos, escapou pelas janelas e tomou as ruas. O menino colocou a cabeça no meio das pernas e ficou ouvindo. Talvez ela tenha parado com as panquecas, talvez ela tire o avental e desça as escadas, talvez ela expulse Marvin do CD player, talvez ela me chame de volta, talvez. A música acabou, me levantei, desci as escadas com o garoto atrás de mim. Lá fora começava a anoitecer. Perguntei pra ele:
“De onde você veio?”
Ele não respondeu. Apenas olhou pra cima, algum lugar indefinido.
“Eu já imaginava.”
Ele não sorriu. Seu olhar atravessou a rua. Um cachorro que revirava uma lata de lixo ganiu de desespero e solidão.

Mário Bortolotto é autor de Bagana na Chuva (Editora Ciência do Acidente, 2003).