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A polêmica sobre a clonagem terapêutica (clonagem de órgãos para transplante) e a obtenção de células-tronco (células progenitoras que mantêm a capacidade de se diferenciar nos inúmeros tecidos do corpo humano) põe em evidência duas vertentes de pensamento historicamente antagônicas: a ciência e a religião. Se, por um lado, os avanços em tais pesquisas podem aumentar de forma espantosa os meios da medicina para atingir o objetivo de salvar vidas, por outro, o preço a ser pago, segundo muitos, seria alto demais: a vida de embriões humanos. Em artigos exclusivos, a coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano (IB-USP), Mayana Zatz, e o padre Júlio Munaro, professor de bioética, expõem seus pontos de vista. Controvérsias à parte, concordam em um ponto: a vida é o mais importante.

Clonagem terapêutica - por Mayana Zatz

Uma pesquisa que acaba de ser publicada na revista Sciences por um grupo de cientistas coreanos (Hwang e col, 2004) confirma a possibilidade de se obterem células-tronco pluripotentes, a partir da técnica de clonagem terapêutica ou transferência de núcleos (TN). Trata-se de uma nova esperança de obtenção de células-tronco para fins terapêuticos que poderão, no futuro, representar a esperança de cura para milhares de pessoas que sofrem de doenças neurodegenerativas. O trabalho foi feito graças à participação de dezesseis mulheres voluntárias que doaram ao todo 242 óvulos e células cumulus (que ficam ao redor dos óvulos) para contribuir com pesquisas visando à clonagem terapêutica. As células cumulus, que já são células diferenciadas, foram transferidas para os óvulos dos quais haviam sido retirados os próprios núcleos. Dentre esses, 25% conseguiram se dividir e chegar ao estágio de blastocisto e, portanto, capazes de produzir linhagens de células-tronco pluripotentes. Essa pesquisa está sendo publicada em um momento extremamente importante, no qual se discute um projeto de lei sobre pesquisas nessa área. O projeto que acaba de ser aprovado pela nossa Câmara dos Deputados mostra uma confusão entre três conceitos: a) clonagem reprodutiva; b) clonagem terapêutica; e c) terapia celular com células-tronco (que não é sinônimo de clonagem terapêutica). Antes da votação do texto definitivo, é fundamental que nossos parlamentares entendam que a terapia celular com células-tronco, incluindo as embrionárias, pode representar a esperança de tratamento de mais de 5 milhões de brasileiros afetados por doenças genéticas, a maioria crianças e jovens, e outros milhares que sofrem de doenças comuns como diabetes, Parkinson, sem mencionar os que estão incapacitados porque sofreram acidentes.
A clonagem reprodutiva humana, que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo, é condenada por todos. Deve realmente ser proibida! Por outro lado, a clonagem terapêutica – ou técnica de transferência de núcleo que acaba de ser publicada na revista Sciences – é apenas um dos métodos para se obterem células-tronco para terapia celular ou medicina regenerativa. Entretanto, tem suas limitações.

O que são células-tronco?
As células-tronco são células progenitoras que mantêm a capacidade de se diferenciarem nos inúmeros tecidos do corpo humano: sangue, músculos, nervos, ossos etc. Elas são pluripotentes quando têm a capacidade de se diferenciarem em qualquer um dos tecidos humanos e multipotentes quando conseguem diferenciarem-se em alguns, porém não em todos, os tecidos.
Elas podem ser obtidas pela técnica de transferência de núcleo ou clonagem terapêutica, como acaba de ser publicado pelo grupo de cientistas coreanos, de tecidos adultos (medula óssea, sangue etc.), de cordão umbilical e de embriões.
A clonagem terapêutica ou transferência de núcleo nada mais é do que um aprimoramento das técnicas hoje existentes para culturas de tecidos que são realizadas há décadas. A grande vantagem é que, ao transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo, ao dividir-se, gera células potencialmente capazes de produzir qualquer tecido em laboratório. Isto abre perspectivas fantásticas para futuros tratamentos – hoje só é possível cultivar em laboratório células com as mesmas características do tecido de onde foram retiradas. A clonagem terapêutica teria a vantagem de evitar rejeição se o doador fosse a própria pessoa. Seria o caso, por exemplo, de reconstituir a medula em alguém que se tornou paraplégico após um acidente ou para substituir o tecido cardíaco em uma pessoa que sofreu um infarto. No caso de portadores de doenças genéticas, não seria possível usar as células da própria pessoa – elas teriam o mesmo defeito genético –, mas seria possível tentar obter essas células de um parente próximo, como a mãe, por exemplo, desde que ela fosse compatível.

Fontes de obtenção

Existem células-tronco em vários tecidos (como medula óssea, sangue, fígado etc.) de crianças e adultos. Entretanto, a quantidade é pequena e não sabemos ainda em que tecidos são capazes de se diferenciar. Mas a maior limitação novamente de se utilizarem células-tronco da própria pessoa, o chamado autotransplante – que tem mostrado resultados promissores em pessoas com insuficiência cardíaca –, é que ela também não serviria para portadores de doenças genéticas.
No entanto, o sangue do cordão umbilical e da placenta é rico em células-tronco, também consideradas células-tronco adultas. Entretanto, também não sabemos ainda qual é o potencial de diferenciação dessas células em diferentes tecidos. Se as pesquisas mostrarem que as células-tronco de um cordão umbilical são capazes de regenerar tecidos ou órgãos, esta será sem dúvida a mais importante fonte para obtenção de células-tronco. Teríamos que resolver então o problema de compatibilidade entre as células-tronco do cordão doador e o receptor. Para isto, será necessário criar, com a maior urgência, bancos públicos de cordões umbilicais. Quanto maior o número de cordões existentes em um banco maior a chance de achar um compatível!
Se as células-tronco de cordão não derem os resultados esperados, a alternativa será o uso de células-tronco embrionárias, que são certamente pluripotentes. Elas podem ser obtidas pela técnica de transferência de núcleo, como demonstrado pelos pesquisadores coreanos, ou a partir de embriões que são descartados em clínicas de fertilização. Células obtidas de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar uma vida se fossem inseridos em um útero, mantêm a capacidade de gerar linhagens de células-tronco embrionárias e, portanto, de gerar tecidos. É justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar um embrião cujo destino é o lixo? Um embrião que, mesmo que fosse implantado em um útero, teria um potencial baixíssimo de gerar um indivíduo? Ao usarmos células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, não estamos na realidade criando vida? Isso não é comparável ao que se faz hoje em transplantes quando se retiram os órgãos de uma pessoa com morte cerebral (mas que poderia permanecer em vida vegetativa).
A maioria dos países da Comunidade Européia e ainda o Canadá, a Austrália, o Japão e Israel aprovaram pesquisas para obtenção de células-tronco embrionárias obtidas por clonagem terapêutica ou de embriões até catorze dias. Essa é também a posição das academias de ciência de 63 países, inclusive a brasileira. Muitos acreditam que a vida começa no momento da fertilização. Entretanto, a Coréia acaba de demonstrar que células-tronco pluripotentes podem ser obtidas sem fertilização. É fundamental que a nossa legislação também aprove estas pesquisas porque elas poderão no futuro salvar inúmeras vidas.

Mayana Zatz é professora titular de genética humana e médica do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano (IB-USP).


Bioética – clonagem humana e ética - Padre Júlio Munaro

O anúncio de que cientistas sul-coreanos haviam conseguido clones de embriões humanos provocou reações em todo o mundo. Uns aplaudiram com entusiasmo, considerando o fato como início de uma nova era para as ciências biomédicas, uma porta aberta para curar doenças ainda fora do controle da medicina. Outros reagiram com espanto, considerando a clonagem terapêutica uma ameaça à dignidade humana.
A reação mais dramática partiu do Vaticano. Seu porta-voz, Elio Sgreccia, especialista em bioética e conselheiro do papa na matéria, igualou a clonagem humana para fins terapêuticos aos campos de extermínio de Hitler. Disse ele: “Não se podem destruir vidas humanas na esperança de encontrar remédios para salvar outras vidas. Isso seria uma repetição do que os nazistas fizeram nos campos de concentração”.
Também Leon Kass, presidente do Conselho de Bioética de George W. Bush, pleiteou o banimento de todo tipo de clonagem humana, reprodutiva ou terapêutica.
Ian Wilmut, clonador da ovelha Dolly, afirma que “a clonagem humana não deve ser proibida, pois ela pode salvar muitos milhares de vidas”. Também não se declara contrário, pelo menos em certas circunstâncias, à clonagem reprodutiva, embora a maioria dos cientistas a exclua.
Woo Suk Hwang, líder da equipe sul-coreana que produziu os primeiros clones humanos, declarou-se favorável à clonagem terapêutica. Antes, considera-a um dever: “Estamos motivados, por uma sensação de dever, de que isso precisa ser feito e pela convicção de que pode ser feito”. Indagado sobre a reação do Vaticano, respondeu: “Nós não fizemos nossa pesquisa para criar monstros. Estamos concentrados em fazer nossa pesquisa para tratar vários tipos de doença”. Hwang prescinde do problema ético de destruição de vidas, ponto essencial da reação do Vaticano.
Doentes e familiares que entrevêem nas células-tronco embrionárias a única esperança de cura declaram-se favoráveis à clonagem terapêutica. São interessados e prescindem do aspecto ético. É o caso do ator Christopher Reeve, 51 anos, vítima, em 1995, de uma queda de cavalo que o deixou imóvel do pescoço para baixo. Sobreviveu, mas quase sem movimentos. Para ele, a esperança de cura está nas células-tronco embrionárias. Por isso, tornou-se defensor da pesquisa em curso, atraindo para a sua luta outras personalidades do mundo artístico.
Poucos países se posicionam contra as pesquisas com células-tronco embrionárias. Entre eles os Estados Unidos e o Brasil. Tudo indica, porém, que a cultura laica dominante, interesses financeiros e terapêuticos, busca de prestígio científico e técnico levarão a superar as resistências que ainda persistem. A comunidade científica mundial não aceita restrições. A mídia lhe garante respaldo. A indústria farmacêutica, por sua vez, investe firme.
A questão das células-tronco embrionárias, porém, continua restrita ao campo das pesquisas, sem previsão de aplicações imediatas, embora a opinião pública acredite que os resultados estejam ao alcance da mão.
Woo Suk Hwang, chefe da equipe sul-coreana, advertiu que “ainda serão necessários muitos anos de pesquisa antes de chegar à aplicação médica. Precisamos passar por um longo e complicado processo. Pacientes não podem ter fantasias ou expectativas excessivas”. E acrescenta: “Ainda falta algum tempo para que tudo isso se concretize. Temos problemas técnicos a resolver, tais como a maneira de fazer com que as células-tronco embrionárias humanas possam formar diferentes tipos de célula, de maneira confiável. Existem também aspectos ligados à segurança: precisamos saber ao certo se essas células não irão provocar problemas como o câncer”.
Trata-se de problemas técnicos que, mais cedo ou mais tarde, serão resolvidos.
O problema mais profundo da clonagem terapêutica, porém, não é técnico, mas vital, ou seja, quando começa a vida humana propriamente dita. Para alguns, ela existe desde a fusão do óvulo com o espermatozóide, ou desde que uma célula adulta é transferida para um óvulo esvaziado (caso Dolly ou dos cientistas sul-coreanos), formando a primeira célula, portadora de patrimônio genético do qual resulta um ser humano completo. Para outros, só existe vida humana a partir do sexto dia, quando o embrião já se desdobrou num conjunto de 100 ou 200 células, todas idênticas. Para outros, a vida humana começa mais tarde ainda.
É a partir da idéia de quando começa a vida que se passa a legitimar ou a excluir diferentes usos de células-tronco embrionárias que acarretam a destruição do embrião.
A Igreja Católica manifestou, em documentos recentes, seu ensinamento a respeito. No documento Donum vitae, de 1987, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé afirma: “Esta congregação tem conhecimento das discussões atuais acerca do início da vida humana, de individualidade do ser humano e da identidade da pessoa humana”. E passa a justificar a sua posição: “A partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é aquela do pai ou da mãe, e sim de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca se tornará humano se já não o é desde então”. E invoca a seu favor os conhecimentos da biologia e da genética que demonstram “que desde o primeiro instante encontra-se fixado o programa daquilo que será este ser: um homem”.
Na encíclica Evangelho da Vida (1995), João Paulo II, após condenar o aborto, acrescenta: “Isto vale para o sistema que emprega os embriões humanos ainda vivos, às vezes produzidos especificamente para este fim, seja como material biológico à disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas doenças”. A condenação, portanto, abrange também os embriões excedentes das clínicas de fertilização in vitro.
Nas últimas três décadas, o embrião caiu sob o domínio da técnica, perdeu a sua imunidade e está exposto a inúmeros perigos. Em vista disso, o Vaticano propõe que a humanidade, através da ONU, elabore um Estatuto do Embrião, no qual conste seu direito inalienável à vida. O momento não parece propício para atingir este objetivo.

Padre Júlio Munaro é professor de história do cristianismo e de bioética