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Salve! Caymmi completou 90 anos.

CD, shows e série de homenagens marcam as comemorações do nonagésimo ano de vida do artista que é a história viva da música popular brasileira

O que é que tem na novela das oito que tem também por trás dos remelexos de Carmem Miranda? O que é que faz parte da Bahia, do Rio de Janeiro, do Brasil? Quem conquistou de modo cabal Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e até Josephine Baker, diva do show business americano nos idos de 1950? A resposta só pode ser Dorival Caymmi, a história viva da nossa música, mesmo que alguns não tenham consciência disso. A série de perguntas acima faz alusão às canções A Vizinha do Lado, tema da personagem de Juliana Paes na novela Celebridade, e O que é que a Baiana Tem?, imortalizada pela pequena notável num musical à la Hollywood, ambas escritas pelo ícone baiano. Esses e outros sucessos do compositor, como Maracangalha, Oração de Mãe Menininha e mais uma porção deles, estão na boca do povo, músicas que todo mundo conhece, só que, por um motivo ou por outro, há quem desconheça a autoria. Isso é conseqüência da reserva a que se permite o compositor, que, apesar da importância para a cultura nacional, não recorre a esforços de marketing ou cobertura maciça de mídia. Tudo acontece naturalmente e sem pressa, assim como as maravilhas que saem da viola de Caymmi, embaladas pelo vaivém manso de sua rede. Disse certa vez o crítico Hermínio Bello de Carvalho em um de seus artigos: “É muito rica a tipologia que desfila nas músicas que compõe: e, sábio, vai em suas canções ensinando receitas de comidas próprias da terra, cromando postais e praieiros, pincelando mulheres, construindo arquétipos fortíssimos, derramando-se a falar de amor, resgatando do folclore canções a que impõe nova vida”.
O menino Caymmi aprendeu a tocar violão sozinho – fazendo valer o autodidatismo que anuncia os gênios, tal qual foi com Machado de Assis e Wolfgang Amadeus Mozart. Mas o fazia escondido do pai – dono do violão – até o flagra. O puxão de orelha de seu Durval terminou em aula. “Quem mandou você pegar o violão?”, perguntou o pai com ares de fúria. “Aliás, você está tocando errado (...) Você precisa botar esse dedo, porque você tá botando só em cima, nas duas cordas para completar o tom. Aqui é o dó maior, você bota o dedo aqui.” A história é lembrada pelo próprio Caymmi em um dos muitos depoimentos que deu à neta, Stella Caymmi, que resultaram na biografia ilustrada Dorival Caymmi: O Mar e o Tempo (Editora 34, 2001). Foi assim que tudo começou. “Quando ele acabou de dar essa lição, por instinto, eu já estava dominando o dó maior”, conclui Dorival no testemunho a Stella.

Preguiça “caymmesca”

Já mais crescido perambulava pelas rádios da Bahia e, quase por acidente, viu-se pela primeira vez diante do microfone. Soltou o vozeirão e nunca mais se calou. Em 1938, com 24 anos, embarcou para o Rio de Janeiro e, de cara, encantou os famosos da época, como Carmem Miranda, e participou da chamada segunda fase da era de ouro do rádio, ao lado de Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Aracy de Almeida, Jacob do Bandolim e Luiz Gonzaga. “Ninguém cantou a sua terra com o impacto de postais sociocomportamentais como Acontece que eu Sou Baiano, Saudade da Bahia e Samba da Minha Terra, que marcaram nossa música para sempre”, diz o jornalista Tárik de Sousa na orelha do livro de Stella. Ele refere-se também à designação de “baiano sestroso cultor do ócio criador” de Caymmi. “Por conta disso, ganhou a irremediável e inadequada fama de preguiçoso, da qual tirou partido malandramente deitado na rede nos anúncios de TV”, completa Tárik.
Essa fama de mandrião ganhou força quando o escritor e amigo Rubem Braga tratou de popularizar a piada que rodava o Rio de Janeiro e dizia haver três velocidades: lento, muito lento e Dorival Caymmi. No entanto, se é verdade que durante a carreira o baiano não bateu nenhum recorde em quantidade, certamente o fez, com louvor, em qualidade. Como disse o escritor Aluízio Falcão em artigo publicado no O Estado de S. Paulo – sobre os 90 anos do mestre: “Ninguém compôs menos. Em compensação, ninguém compôs melhor”. A neta biógrafa completa: “De preguiçoso ele não tem nada. Mas ele curte essa história, não sinto como preconceito, não. Acho que aprendeu a usar a preguiça para se defender, para não ser pressionado”.

A família em festa
Em 30 de abril passado, Dorival Caymmi completou 90 anos. Ele possui hoje – merecidamente – o título de maior compositor brasileiro vivo. “Caymmi, quando fala, confirma aquela estranha percepção contida em suas letras simples, deliberadamente não rebuscadas”, afirma Aluízio. “Não são versos literários como os de Noel ou Vinicius, Caetano ou Chico. Os versos de Caymmi são despojados, mas neles se flagra um apuro que faltou a todos os letristas de sua geração (...). Nem pensem que Caymmi é sábio porque está com 90 anos. Ele é sábio desde o começo. O seu primeiro sucesso, O que é que a Baiana Tem?, diferenciava-se, em ritmo e poesia, de tudo o que se fazia em 1938.” A opinião é reiterada por Danilo Caymmi, um dos três filhos de Dorival: “Eu acho que a grande glória do compositor é ter a música viva”. Para Danilo, a atualidade da obra do pai é decorrência de um talento visionário. “E é o que acontece com papai. Ele é uma pessoa que jamais se referiu ao passado dizendo coisas como ‘naquele tempo é que era bom’. Ele é um homem do presente, do agora. E tanto é assim que a música dele, agora, está aí na novela, não muito longe de uma parceria dele comigo e o Dudu Falcão, que foi tema de abertura de Porto dos Milagres, outra novela da Globo. Isso para um homem de 90 anos, com uma atividade profissional de mais de 60, é muito bom. Ele é vivo com a música viva.”
O filho coruja conta ainda que a celebração do aniversário tem muitos aspectos positivos. E os presentes não vão só para o aniversariante: a família e todos os amantes de boa música saem ganhando. O CD que Dori, Danilo e Nana gravaram juntos em homenagem ao pai – parte das “atividades” de aniversário – uniu os irmãos sempre ocupados com seus compromissos pessoais; e brindou o público com uma coleção de sambas que virou ainda um show antológico, reunindo os três no palco. O primeiro no Canecão, no Rio, no dia do aniversário de Caymmi, e mais um em São Paulo e outro em Minas Gerais. Em São Paulo houve uma prévia dessa festança toda, no show de abertura do projeto do Sesc Consolação, 90 anos de Caymmi (ver boxe). Em meio a tantas demonstrações públicas de reconhecimento ao grande valor da obra do veterano Caymmi, Danilo faz questão de salientar o ambiente de proximidade em que a família se encontra. “A gente tem visto o papai sempre. O feriado da Semana Santa, por exemplo – eu infelizmente não pude ir –, Dori e Nana passaram com ele. O meu irmão mora nos EUA e, por causa do trabalho, não é toda hora que a gente tem essa disponibilidade, mas a gente está procurando estar muito junto, muito próximo.” Para o músico, este é um momento especial para toda a família. “O que mais nos emocionou foi o fato de ele ter ficado comovido com o disco. Ele até chorou ouvindo o disco, e isso não é muito comum dele. Foi muito bacana a gente ter feito um trabalho que o tocasse dessa maneira.”

Por baixo da saia - Caymmi compôs, Carmem Miranda cantou e ninguém mais se esqueceu
É curiosa a relação entre a letra de O que é que a Baiana Tem? e o traje que ela descreve. Hoje, mais de 60 anos após o tema ter explodido no Brasil e no mundo, não se sabe mais se a música esmiuçava a roupa ou se a vestimenta passou a ser determinada pela música, tamanha a intimidade entre as duas. “Eu pensei comigo: ‘Meu Deus! Eu tenho aqui tudo armado’”, explicou o próprio Dorival Caymmi tempos depois. “‘Tem torço de seda, tem; tem brincos de ouro, tem.’ Eu fui armando por aí, a crioula com a roupa de dia de festa. Quer dizer, o chamado turbante, que na Bahia se chamava de torço. Era o pano da Costa, que no Rio chamariam de xale. Mandava-se vir da costa d'África. ‘Correntes de ouro, tem’, uns correntões que eu tinha visto no Tio Nonô, que Mãe Menininha usava. E aí vem: ‘Tem pano da Costa, tem.’ Depois, embaixo do pano da Costa: ‘A bata rendada, tem, pulseira de ouro, tem’, a mão na frente. ‘Tem saia engomada, tem, sandália enfeitada, tem.’ Eu podia botar anáguas, mas não dava. E fui urdindo, fazendo a formação do tipo vestido.”

O iniciador de uma escola - Em série de shows realizados no Sesc Consolação, diversos músicos reverenciaram o compositor
O Sesc São Paulo marcou participação nas comemorações dos 90 anos de Dorival Caymmi com uma série de shows que levou ao palco da unidade Consolação vários artistas para cantar o mestre e mostrar um pouco da escola criada pelo compositor baiano ao longo da carreira. O evento 90 anos de Caymmi abriu com show de Dori e Danilo Caymmi e foi encerrado com Rodrigo Rodrigues, recebendo ainda Jussara Silveira, Ana Luiza, Claudio Nucci, o grupo Zarabatana, Ney Mesquita, Renato Braz e Bia Góes. “A minha apresentação junto com Dori foi, na verdade, uma prévia do que nós fizemos, já com a Nana, no Canecão, no Rio, no dia 30 de abril, aniversário de papai, um show maior”, explica Danilo Caymmi. “Mas no Sesc já foi muito bom. A resposta do público, principalmente aos sambas, foi muito boa, o teatro lotou e nós ficamos muito felizes, muito satisfeitos. Aliás, o Dori veio a ressaltar numa entrevista toda a importância cultural do Sesc.”
Danilo Caymmi comenta também que, embora tenha continuado tocando paralelamente seus projetos pessoais, assim como seus irmãos, todos se prepararam para ter disponibilidade nesta época do ano para as comemorações do aniversário do pai. Ele garante que esse timing é herança de família. Outra lição profissional do mestre destacada pelo músico é a sábia relação com o tempo. “Acho que o grande ensinamento que o papai passou para mim como compositor – e para o meu irmão também – é procurar fazer uma música que dure, e não uma coisa imediatista. O que equivale a dizer: fazer uma canção bem-feita.” Quanto ao sucesso do show no Sesc e das demais apresentações, Danilo credita ao carinho que o público tem por Dorival Caymmi e sua música. E agradece, em nome do pai: “É muito bom, muito carinhoso da parte do público. É o reconhecimento natural de um grande ícone da música popular brasileira”.

Música, paixão da vida inteira


1914 – Nasce, no dia 30 de abril, Dorival Caymmi (foto), quarto filho do casal Durval Caymmi, o Ioiô, e Aurelina Cândida Soares Caymmi, a Sinhá.

1935 – Dorival estréia na Rádio Clube da Bahia.

1938 – O músico viaja para o Rio de Janeiro, consegue apresentar-se na Rádio Transmissora, famosa na época, e consegue incluir uma composição sua, O que é que a Baiana Tem?, no filme Banana da Terra, com Carmem Miranda (foto).

1940 – No dia em que completa 26 anos, Dorival Caymmi casa-se com Stella Maris (ao lado, em retrato pintado por Caymmi), ex-caloura da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, e eterna companheira.

1956 – Caymmi lança o sucesso Maracangalha. Para quem pensa que não conhece, eis um trecho da letra: “Eu vou pra Maracangalha/ Eu vou/Eu vou de liforme branco/ Eu vou/Eu vou de chapéu de palha/Eu vou/Eu vou convidar Anália/Eu vou”.

1964 – É lançado o LP Caymmi Visita Tom e Leva seus Filhos, Nana, Dori e Danilo, parceria entre Dorival e outro ícone da música brasileira, Tom Jobim (na foto acima ao lado direito de Caymmi, à esquerda aparece Vinicius de Moraes).

1972 – Dorival Caymmi apresenta sua Oração de Mãe Menininha.

1986 – Dorival Caymmi invade o Sambódromo do Rio de Janeiro; o enredo Caymmi Mostra ao Mundo o que a Bahia e a Mangueira Têm dá o título de campeã do carnaval carioca daquele ano à verde e rosa.

1993 – Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Caymmi polemiza ao dar o seguinte parecer acerca de um ritmo que havia tomado de assalto a Bahia e o Brasil: “O axé music é uma farsa”.

2001 – No ano em que Dorival Caymmi completa 87 anos, ganha da neta, Stella Caymmi, filha de Nana, um belíssimo presente: a biografia ricamente ilustrada Dorival Caymmi – O Mar e o Tempo (Editora 34).

2004 – Com lançamento de CD que reúne seus três filhos – Danilo, Nana e Dori (foto) – cantando seus sambas e série de shows em São Paulo, no Sesc Consolação, o Brasil celebra os 90 anos do Buda Nagô, apelido carinhoso presente em uma canção-homenagem composta por Gilberto Gil.