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Os negros na Paulicéia

por Antonia Quintão Cezerilo

Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerilo, professora universitária, pesquisadora do NEINB (Núcleo de Pesquisa e Estudos Interdisciplinares Sobre o Negro Brasileiro), membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia e autora dos livros Lá Vem o Meu Parente: As Irmandades de Pretos e Pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (Século XVIII) e Irmandades Negras: Outro Espaço de Luta e Resistência (1870–1890) – ambos lançados em 2002 pela editora Annablume –, esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E, na qual falou sobre religiosidade afro-brasileira e a contribuição do negro para a construção de São Paulo. A seguir os principais trechos da conversa:

“Nós estamos comemorando os 450 anos de nossa cidade e eu, acompanhando essas festividades, fiquei bastante incomodada com a ausência do negro nas referências feitas à história de São Paulo. O destaque é para a participação dos imigrantes. A presença do negro tem sido subestimada e deformada, impedindo assim que se construa uma identidade positiva do negro e apresentando uma história mutilada, que não forma e nem informa, mas aliena e cristaliza preconceitos.
O livro Irmandades Negras: Outro Espaço de Luta e Resistência (1870 – 1890) enfoca a história da Irmandade do Rosário de São Paulo, localizada no largo do Paissandu, na avenida São João. Ao participarem dessas associações, os negros poderiam reconhecer um significado para sua vida, na medida em que elas estimulavam a solidariedade, possibilitavam o culto aos mortos, garantiam um enterro a seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados, compravam de uma forma corporativista cartas de alforria e realizavam grandiosas festas coletivas. É importante ainda destacar a presença dos irmãos do rosário no movimento abolicionista de Antônio Bento, que procurei analisar nesse livro.
Essas irmandades tiveram o auge até meados do século 19. Depois disso, com o pontificado de Pio IX e o Concílio do Vaticano I, em 1869, a Igreja passa por uma transformação muito importante, conhecida por período de romanização. Essa fase é marcada por uma nova visão do papel do leigo no interior dessa instituição. Os negros que pertenciam às irmandades foram expulsos das igrejas, por eles mesmos construídas, e no lugar dessas associações foram criadas outras, mais de acordo com o espírito do Concílio.”

Luta e resistência

“As irmandades apresentaram sempre um caráter social e devocional. O fato de serem autorizadas e protegidas pela ação pessoal de reis eclesiásticos fez com que muitos classificassem essas associações como ‘instrumento de alienação’ dos negros.
É fundamental, e se constituiu em um dos propósitos da minha pesquisa, chamar a atenção para um aspecto muito importante: se a classe senhorial e as elites quiseram utilizar as irmandades como meio de controle e de integração do negro numa sociedade escravista, este soube transformá-las num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto racial, conseguindo dessa forma salvar sua identidade e sua dignidade.
Quando comecei a pesquisar a Irmandade do Rosário de São Paulo, me surpreendi com a grande participação desses irmãos num movimento abolicionista de São Paulo pouco conhecido, chamado Movimento dos Caifazes, liderado por Antônio Bento. O grupo tinha uma estratégia muito interessante: eles se infiltravam nas fazendas do interior do estado, principalmente em cidades onde sabiam haver tortura e violência flagrantes contra o negro, fazendo-se passar por religiosos ou pedintes para conquistar a confiança dos negros. Em seguida, buscavam trazê-los para a capital, onde permaneciam escondidos em estabelecimentos comerciais e igrejas, como a própria Igreja do Rosário. Posteriormente, eram levados para o Quilombo do Jabaquara, em Santos, onde eram encaminhados para o trabalho assalariado.”
Eram todos católicos?
“Essa é uma questão muito interessante, pois as manifestações religiosas dos negros nas suas irmandades sempre foram vistas com muita desconfiança e o seu cristianismo considerado superficial e de aparência. Mas as minhas pesquisas apontam para o fato de que os negros não eram católicos apenas por obrigação ou ‘camuflagem’. Do ponto de vista do negro, não há oposição, incoerência ou compartimentação entre o catolicismo e a sua africanidade, pois, como bem demonstrou Sérgio Figueiredo Ferretti no livro Repensando o Sincretismo (Edusp, 1995), os negros são capazes de ‘conciliar coisas que para os de fora parecem contraditórias e inconciliáveis’.”

Passado esquecido
“No início do século 20, à medida que São Paulo iniciou o seu processo de industrialização e expansão urbana, o largo do Rosário tornou-se uma área de grande valorização.
Em 1903, a Câmara Municipal declarou de ‘utilidade pública’ o local onde se situava a Igreja do Rosário. Ela, então, foi demolida e uma nova igreja foi construída no largo do Paissandu, apesar dos protestos dos moradores, que tentaram embargar as obras.
A elite paulistana pretendia dar uma feição mais européia para a cidade e aquele reduto de negros destoava desse projeto. Em 1940, o prefeito de São Paulo, Francisco Prestes Maia, também propôs a demolição da igreja, baseado em três objetivos: harmonizar a praça com as construções do local, melhorar a circulação do trânsito e, a terceira justificativa, transformar o largo do Paissandu num local digno de receber o monumento a Duque de Caxias. Em 1945, as negociações com a irmandade ainda não estavam concluídas, o prefeito Prestes Maia encerrava o mandato e seu substituto achou mais conveniente erigi-lo na praça Princesa Isabel. Assim, a Irmandade do Rosário pôde permanecer no largo do Paissandu congregando, como faz até hoje, os negros da cidade de São Paulo.”