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O diretor franco-polonês Roman Polanski esteve no Brasil para uma retrospectiva de sua obra no CineSesc e falou com exclusividade à Revista E sobre seu processo de criação e o desafio que será filmar Oliver Twist

No Brasil a convite do Sesc São Paulo, em virtude de uma retrospectiva de seus filmes realizada pelo CineSesc, o cineasta Roman Polanski provocou o furor que era de esperar. Foram coletivas de imprensa, bate-papos com diretores brasileiros e cinéfilos, arrebatados – principalmente os mais jovens – com a possibilidade de ver filmes como O Bebê de Rosemary e A Dança dos Vampiros em tela grande e sala escura. De fato, Polanski ofereceu aos brasileiros tudo o que se pode esperar de um artista com grandes realizações na bagagem. Famoso por evitar o contato com a imprensa, nesta visita o cineasta, de 71 anos de idade, esforçou-se para ser cordial – “não dou entrevistas, o Brasil foi realmente uma exceção”, chegou a admitir, em conversa com a Revista E.
Filho de pai judeu e mãe católica, morta em Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial, Polanski, sobrevivente do Holocausto, conseguiu mudar o próprio destino graças ao cinema – para o qual se entregou, mesmo contrariando a rígida formação religiosa a que foi submetido depois da morte da mãe. Estreou como ator em 1945 num filme de outro polonês ilustre, Andrzej Wajda, mas não demorou a assumir o lado da câmera para o qual nasceu. Na década de 1960, enfrentou nova tragédia familiar, devido ao assassinato da mulher, a atriz Sharon Tate, grávida, vítima de uma seita acusada de praticar rituais satânicos.
Depois de construir uma obra sólida e impor sua marca em vários sucessos, entre eles Chinatown, Tess e O Pianista (vencedor de três Oscar em 2003, inclusive o de melhor diretor), o cineasta usufrui o merecido reconhecimento.
Em depoimento exclusivo à Revista E, Roman Polanski conta que por pouco não fez um filme sobre esquis, em vez de O Bebê de Rosemary, explica por que é avesso a entrevistas e confessa o que há por trás do desejo que o impulsiona ao próximo trabalho: uma nova versão para o clássico de 1837 de Charles Dickens, Oliver Twist.

Vida pessoal e mídia

“Estive envolvido em alguns eventos que chamaram muito a atenção da mídia, que os tratou de uma maneira sensacionalista. As pessoas se interessam muito mais pelo lado macabro do que pelo lado virtuoso das pessoas. É impossível para qualquer um imaginar a extensão da tragédia que foi a morte de minha mulher, Sharon Tate. O mundo inteiro ficou chocado e o evento foi tratado de maneira ainda mais sensacionalista pelo fato de ter ocorrido logo em seguida ao lançamento de O Bebê de Rosemary. A imprensa fez uma ligação horrorosa entre o filme e esse fato trágico. Uma pessoa mentalmente saudável não poderia pensar em uma ligação tão macabra como essa. Eles nos acusaram pelo nosso estilo de vida; foi como se as vítimas fossem as culpadas. Agiram assim até encontrar Charles Manson (o chefe da seita que assassinou sua mulher). Mas, até hoje, cada vez que alguém escreve sobre isso, olha para trás, para o que já foi escrito, vai sempre à mesma fonte escarafunchar o que aconteceu, como foi tratado. Por pura ignorância, esses jornalistas reescrevem o que leram e apenas acrescentam outra camada (de sensacionalismo). É como um telefone sem fio, uma pessoa diz uma coisa, que vai ganhando versões deturpadas e, ao final, é completamente diferente do que foi falado inicialmente. É dessa forma que funciona a mídia.
É por isso que onde moro não dou entrevistas. O Brasil foi realmente uma exceção, e isso se deve ao fato de eu vir pouco ao país e, uma vez estando aqui, sinto que devo isso aos brasileiros.”

Burocratização do cinema
“Eu teria muitas dificuldades, hoje, de fazer um filme como O Bebê de Rosemary nos Estados Unidos. Acho que os estúdios hoje têm muitos executivos que funcionam como um comitê. Naquela época ficava a cargo do dono do estúdio aceitar ou não a proposta de um filme; se ele aceitasse, o cineasta teria então liberdade total. Agora eles querem saber de tudo, escrevem ‘notas criativas’ no roteiro... Eu não acho que eles me deixariam, por exemplo, colocar gesso no nariz de uma estrela de cinema durante todo o filme, como já fiz com Jack Nicholson.
O curioso sobre O Bebê de Rosemary é que minha intenção era fazer um filme sobre esqui, que era minha paixão. O produtor sabia disso, então ele me ligou e disse que tinha um projeto sobre corridas de esqui, não me lembro bem. Quando o encontrei em Hollywood, ele me deu esse roteiro e os originais de O Bebê de Rosemary. Foi aí que me disse que era este o que ele realmente queria que eu fizesse e perguntou se eu poderia lê-lo naquela noite mesmo. Foi o que fiz, e no outro dia aceitei a proposta. Não é bem um filme de esqui...”

Criação e filosofia
“Sou um cineasta, e não um filósofo. Não penso em coisas como sexo, poder ou religião quando estou fazendo um filme. Deixo isso para os críticos. Agora, existem assuntos pelos quais sou atraído instintivamente, sinto-me envolvido e faço. Mas não tenho essa mesma relação com a filosofia. É simplesmente um caminho escolhido para apresentar o assunto de maneira mais convincente. Fica mais realista, mais crível. No entanto, creio que os tópicos que escolho para meus filmes também foram explorados por outros cineastas. Talvez a diferença é que uma coisa muito importante para mim é fazer com que as pessoas pensem depois de ver o filme. A maioria dos filmes a que assisto, depois do jantar, eu já esqueci. Os que lembro, gosto de voltar a vê-los. Claro que algumas questões filosóficas me atraem, mas não necessariamente baseio meu trabalho nelas. Acho que o sexo, por exemplo, tem um grande papel, um grande poder sobre a política e sobre o resto das pessoas. Obviamente algo como a Aids é capaz de mudar completamente a relação entre as pessoas, não somente no âmbito sexual, mas em todos os outros. Relações entre homens e mulheres, entre as classes e na própria política sofrem um enorme reflexo do sexo. Um homem ou uma mulher que têm sua liberdade sexual completamente restringida modificam o comportamento – a maneira como eles se vestem, seduzem e até mesmo como falam com o sexo oposto. Um político que vai a uma reunião e está insatisfeito sexualmente terá um comportamento diferente do que aquele que está plenamente realizado.
Por outro lado, não chegaria a dizer que existe uma substituição da política pela relação entre sexo e poder em meus filmes. Seria uma maneira errada de enxergá-los. Faço filmes sobre pessoas que estão no filme, não tenho outras questões filosóficas a resolver. Eu pego um livro ou uma peça, ou invento uma história, mas não fico preocupado com a filosofia por trás disso. Deixo isso para quem escreve sobre filmes.”

Universo infantil
“Decidi filmar Oliver Twist (o livro de Charles Dickens conta a história de um menino órfão que foge para Londres e se junta a uma gangue de garotos) em primeiro lugar porque quero fazer um filme para meus filhos, isso é muito importante para mim. Eles vivem comigo, acompanham minhas atividades, e então sinto vontade de fazer algo relacionado ao mundo deles, não com temas abstratos, como os filmes que costumo fazer. Depois de O Pianista, esse é o projeto certo para mim, é um livro fabuloso. Há vários filmes baseados nesse livro e gosto de todos eles. Identifico-me com o tempo da história, com o humor, com a emoção. Mas meu filme terá uma abordagem totalmente diferente. É como quando vamos a um restaurante e pegamos o cardápio para escolher o prato. Escolhemos que comida queremos, mas não perguntamos quais vitaminas há nos alimentos ou como seu cultivo se relaciona com a agricultura do país. Você só tem vontade de comer aquilo e pronto.”