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Entrevista
Carlos Heitor Cony

O escritor Carlos Heitor Cony esclarece as diferenças entre o romance e a crônica e confessa que acha a política desagradável

O escritor Carlos Heitor Cony começou na imprensa em 1952 como redator da Rádio Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Influenciado pelo filósofo e autor francês Jean Paul Sartre, escreveu seu primeiro romance, O Ventre, e, em 1956, concorreu ao Prêmio Manuel Antônio de Almeida, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Na comissão julgadora, Austregésilo de Athayde e Manuel Bandeira concordaram que o trabalho era “muito bom”, mas alegaram que não poderiam premiá-lo por se tratar de uma obra com conteúdo forte demais. Inconformado com a decisão, Cony inscreve-se no ano seguinte com A Verdade de Cada Dia e, depois de ter o texto analisado por Carlos Drummond de Andrade e Austregésilo de Athayde, finalmente ganha o prêmio. De lá para cá foram quinze romances e um longo intervalo longe da ficção. Tempo dedicado aos fatos reais, oriundos do cotidiano, como nas crônicas que escreveu para o jornal A Tarde ou para a revista Manchete; ou à biografia de personalidades, caso do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que lhe consumiu oito anos de pesquisa. Atualmente, pazes feitas com a literatura, aos 78 anos, Cony também reserva tempo e idéias para as crônicas diárias que publica no jornal Folha de S. Paulo. No mês passado esteve em território paulistano para participar do projeto Pessoas de Estilo, do Sesc Pinheiros. A Revista E, com exclusividade, entrevistou o autor, que, cético, mostrou-se pouco esperançoso em relação ao homem – “que piora de hora em hora”, como sentenciou –, mas ainda cheio de histórias para contar.

Como é passar 23 anos sem escrever? Justo você que transmite a impressão de não conseguir ficar sem escrever um dia sequer?

Na verdade, eu fiquei 23 anos sem escrever ficção. Mas eu escrevia na imprensa, no A Tarde, Manchete e Fatos e Fotos. Durante esse período também, gastei uns oito anos trabalhando com a biografia do Juscelino Kubitschek. Era um trabalho de pesquisa, já havia um texto feito pelo José Monteiro e pelo Caio de Freitas, mas faltava uma edição. Passei oito anos basicamente só nesse projeto, que é a biografia de um grande presidente. Nesse tempo em que fiquei afastado da ficção, sinceramente, não senti falta dela.

Por quê? Você não gostava de sua vida de romancista?

Eu achava que era um gênero cansado. A ficção internacional estava exausta. O romance, sobretudo, que é o ponto culminante da ficção, teve seu ponto alto no século 19. Naquela época não havia ainda autonomia da sociologia e da psicologia. Os romancistas não somente inventavam histórias, mas eram também estudantes intuitivos a respeito da sociologia e da psicologia. O romancista era ao mesmo tempo o palpiteiro maior sobre filosofia e a psicologia do homem, como Stendhal e Balzac; da economia, como Dostoiévski, Tolstói; ou ainda os romancistas franceses Flaubert, Proust e os próprios Stendhal e Balzac. Eles tinham essa vantagem de não haver autonomia entre essas duas ciências: a psicologia e a sociologia modernas, que nasceram no final do século 19. O romancista era considerado Deus. Ele criava a sociedade. Balzac, por exemplo, criou mais de 2 mil tipos humanos. O romancista era o senhor da chuva e do sol. Mas hoje, depois que essas ciências se tornaram autônomas, ninguém mais vai querer saber de aprender sociologia ou psicologia através de um romance. Assim, o romancista ficou meio sem emprego, a ele sobraram apenas o evento, a história, a intriga, que é o elemento mais presente no gênero mais popular de ficção. Tem a megera, a supermegera, a super supermegera. Esses elementos são o feijão-com-arroz da ficção moderna. O romancista não se candidata à televisão e a ele sobra pouco. É muito difícil a vida de um romancista, por isso me senti a certa altura exausto com esse gênero.

Quando se lê o Quase Memória, tem-se a impressão de um certo êxtase, aquele êxtase de quem se encontra de novo com algo de que gosta muito. É isso mesmo?
Pois é, mas, sei lá, eu achava a ficção inútil. Já havia escrito um romance e até pensava em fazer outro, mas não aconteceu. Só que nesse meio tempo aconteceram duas coisas importantes. Primeiro, o advento do computador, que me aliviou muito, pois eu sentia muita preguiça de escrever à máquina. Era muito trabalhoso, por causa de um errinho, tinha que jogar a página inteira fora. Ah, era muito trabalhoso! Eu estava cansado da máquina de escrever. O computador me abriu várias possibilidades: mexer no texto, botar um parágrafo no meio de outro, eliminar um personagem, enfim, possibilita uma brincadeira muito gostosa. E a segunda coisa é que, nessa época também, eu tinha uma cachorra que já estava em fase terminal e não me deixava dormir. Quando eu apagava a luz, ela começava a chorar. Já quando ela me via trabalhando, ficava quietinha. Juntou isso e o computador e comecei a escrever. Eu brincava com o computador como uma criança. Quando ela morreu, coloquei um ponto final nos meus escritos e nasceu o Quase Memória.

No Quase Memória você faz uma rememoração do seu pai. O que é verdade e o que é ficção?
É meio a meio.

Existe algum paralelo entre a morte da sua cachorra e a sua infância?
Não. Na versão original, a do computador, eu tinha uma espécie de diário com a Mila, minha cachorra. Volta e meia, eu parava de escrever e anotava o que ela tinha feito. O livro acabou ficando cheio de marcações que, na verdade, era um diário meu. Havia uma parte retroativa, de reminiscência, e havia uma parte atual. Na máquina de escrever seria impossível fazer isso, pois gerava um cansaço muito grande. A espinha dorsal do livro é verdadeira.

Mas o computador ou a máquina de escrever também chegam a influenciar no seu estilo?
Não. O computador facilita, porque dá a possibilidade de anular, inventar, modificar tudo sem rasgar a folha. Na máquina de escrever, acontece de estar no fim da página e, por uma palavra errada, ter que jogá-la fora. Quando escrevi romances posteriores, mudei completamente a história com a maior facilidade, só por causa do computador. Mas é aquela história, se Balzac tivesse uma caneta de ouro, não escreveria melhor do que escreveu. O computador mais perfeito do mundo não faz nada se não existe a vocação.

Você acredita em inspiração e intuição?

Em intuição, sim; inspiração, não. A intuição é o sexto sentido, é que nos indica que estamos no caminho certo quando duvidamos de nós mesmos, nos dá confiança. A intuição existe. Sou intuitivo, acho que todo mundo tem uma dose maior ou menor de intuição. Sou um intuitivo mediano. Mas não acredito em inspiração de jeito nenhum.

Mas, quando a coisa não avança, você credita esse fato a quê?
À preguiça. Não sou mais jovem e já tenho uma estrada percorrida que dá uma certa fadiga. Não espero nada da inspiração. Não há inspiração. Por exemplo, para escrever as crônicas para a Folha de S. Paulo, sento ao computador, escrevo o cabeçalho, endereço ao editor e entro na crônica propriamente dita. Essa crônica é publicada na segunda página, junto com outras duas. Uma vem de São Paulo, a outra de Brasília e a minha, do Rio. Quando acabo de escrever o cabeçalho, paro e penso: e agora? E tem o tempo para entregar. Às vezes solto uma palavra sem mais nem menos, e assim uma palavra acaba puxando a outra e nasce a crônica.

Qual a diferença entre escrever para o jornalismo e para a literatura?
A crônica é um gênero amigo. O lugar preferencial da crônica é o jornal. O prefixo crono significa tempo, cronômetro, cronologia, crônica. Portanto, ela vem do momento. É feita e consumida naquele momento. Ao passo que a literatura tem a pretensão de atravessar o tempo. Quando se faz um romance ou um ensaio, há a pretensão justa de dialogar com pessoas que estão nascendo hoje. Machado de Assis ou Castro Alves não sabiam que eu nasceria anos depois, e eu os adoro. Quem faz literatura tem a pretensão de que o que se escreve naquele momento vai ser lido por pessoas que vierem bem depois. É um estilo que está fora do tempo. A ficção – e o romance – tem essa característica fundamental. A crônica dura o espaço de um jornal, é um gênero datado. Uma ou outra crônica, feita por um grande escritor, como Machado de Assis, extravasa um pouco essa regra. Mas no fundo a gente continua lendo Machado de Assis cronista porque ele é o autor dos romances famosos que conhecemos, como Dom Casmurro, Memorial de Aires, Brás Cubas e Quincas Borba. Se ele não tivesse escrito esses quatro livros, as crônicas dele não seriam tão valorizadas.

Mas existem, na sua opinião, outros autores que conseguiram dar esse caráter mais atemporal às suas crônicas?
Humberto de Campos, nos anos de 1930, e Rubem Braga, até os anos de 1970, são dois autores que escreviam maravilhosamente bem e tiveram popularidade como nenhum outro teve. Quando Humberto de Campos morreu, o comércio do Rio de Janeiro fechou as portas. Ele era o homem mais famoso do Brasil. Sozinho fazia umas três crônicas por dia. Naquela época os jornais tinham três edições diárias, o matutino, o vespertino e o noturno. Não havia jornalismo eficiente no rádio e não havia televisão. Somente o jornalismo impresso praticamente abastecia as pessoas de informações. Chegou a haver quarenta jornais diários no Rio de Janeiro. Em São Paulo, havia uns outros tantos. A Folha de S.Paulo é a junção da Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Humberto Campos escrevia três crônicas distintas, a diferença entre uma edição e outra era praticamente só a crônica dele. A morte dele parou a cidade como a de Ayrton Senna. Rubem Braga não teve tanta popularidade quanto Humberto Campos, mas levou a crônica a um gênero mais adiante, deu um tratamento mais sofisticado a ela. Não teve tanta popularidade porque tinha mais concorrência. Mas, com o tempo, eles vão ficando recuados, porque a matéria-prima deles é temporária. Numa das mais famosas crônicas de Rubem Braga – talvez a mais famosa dele –, a Ai de Ti Copacabana, ele se refere ao gerente do Copacabana Palace, que era uma pessoa famosíssima no Rio. Todas as estrelas gravitavam em torno daquele homem quando se hospedavam na cidade: Gina Lollobrigida, Rita Hayworth, Errol Flynn, todo mundo. Essa crônica foi escrita em cima dele. Naquela época quem não o conhecesse era um pária. Mas hoje em dia ninguém sabe quem foi ele e aquela Copacabana do Braga não existe mais. Já, por exemplo, Fernando Sabino estourou há cinqüenta anos com o livro O Encontro Marcado (Record, 1998 – 67ª edição). Daqui a cem anos ainda haverá Fernando Sabino. Ele era um cronista e um escritor de ficção. Já o Rubem Braga, apesar de escrever mil vezes melhor que o Fernando Sabino, não deu esse corte profundo na alma humana, como fez Sabino. Ainda outro dia dei O Encontro Marcado a uma moça que nem era nascida quando esse livro foi escrito e ela o adorou. Sinto as duas posições. Tenho crônicas que se acabam logo e romances que foram lançados há quarenta anos e continuam sendo consumidos. Tenho livros de crônicas que estão mortos e ninguém ressuscita.

A crônica é mais literatura ou jornalismo?

É um gênero híbrido, faz parte da literatura e do jornalismo. Dizem que a crônica é má literatura e mau jornalismo. Até certo ponto é verdade, o cronista não tem nenhum compromisso com a literatura, pois não é um escritor mesmo, mas ao mesmo tempo não tem nenhum compromisso com o jornalismo em si, porque, afinal de contas, ele é um escritor. Então ele tem direito de inventar, de criar fábulas. Você não pode brincar em um editorial, nem no noticiário. Ali é pão pão, queijo queijo, há um compromisso com a verdade que se consegue apurar. O cronista não tem essa obrigação. O jornal é feito de duas pernas: a informação e a opinião. Acontece que nem sempre a opinião e a informação bastam.

Você comentou na palestra que acabou de dar que há os que dizem que a crônica é um gênero essencialmente brasileiro. Que história é essa?
Pois é, mas isso não é verdade, não. Em outros países existem também os cronistas, mas não necessariamente com as mesmas características que o cronista brasileiro, que é o cronista sem assunto, o mais comum na imprensa brasileira. Eu, aliás, sou um deles. A melhor definição quem deu, inclusive, foi Kafka, que era um romancista muito inteligente. Ele comparava o jornal a um trem, que tem um horário a cumprir. Ele tem que sair da plataforma tal em determinada hora para chegar a outra plataforma na hora marcada. Mesmo estando vazio, ele tem que cumprir esse itinerário. O jornal é como um trem, tem horário certo de chegar ao consumidor. Mas não pode levar assentos vazios. É um trem que é obrigado a partir cheio. Só que nem sempre há passageiros para isso. Então o que ele fez? Inventou, entre outras coisas, a crônica. Eu não diria que ela pode encher lingüiça, mas ela pode preencher o jornal. Então a crônica tem que ser atrativa, pois quem vai lê-la não procura nem informação nem opinião. Quem as quer procura o noticiário ou os editoriais. A crônica é passageiro volátil, aleatório, entra porque não tem nem opinião nem informação. O cronista não é obrigado a ter nem uma nem outra. Desde que escreva bem, o cronista pode falar sobre o que quiser, sobre a janela, sobre a namorada dele. O fundamental para a crônica não é a informação nem sua opinião. Elas não importam. O importante é a qualidade do texto. Cada cronista tem que ter um diferencial, um charme.

E qual seria o seu charme?

Eu, por exemplo, adoro Humberto de Campos, que foi um dos maiores cronistas da imprensa brasileira. Comecei a fazer crônica há muito tempo. Outro dia peguei um livro, que é uma coletânea de crônicas que publiquei no Correio da Manhã, e simplesmente aquilo não dizia mais nada a mim, aliás havia um monte de coisas que nem eu entendia. A crônica tem esse problema: o prazo de validade dela é curto. Há uma exceção na minha vida. Apesar de a crônica ser um gênero datado, há um livro meu, O Ato e o Fato (Editora Objetiva, 2004), feito em 1964, por ocasião do golpe militar, que foi relançado agora, por conta dos quarenta anos do golpe. No entanto, naquela época, três meses depois de lançado, o livro já estava velho. Já tinha havido o AI-2, estávamos a caminho do AI-5, enfim, a situação política tinha mudado tanto que aquelas crônicas, publicadas logo após o golpe, pareciam ingênuas. Lembro-me que há dez anos peguei uma dessas crônicas para ler e não me lembrava quem era um dos personagens para quem eu tinha dedicado quase toda uma crônica. Mas o livro acabou sendo relançado agora. No entanto, é uma exceção. Mas isso aconteceu por uma questão histórica, e não somente pela crônica em si. Nesse caso, sem querer, justamente por ter sido datado em uma determinada época, me tornei um sobrevivente. É como se você estivesse andando em Roma e, de repente, chutasse um pedaço de cerâmica e descobrisse que aquilo tem grande valor histórico. Sem dúvida, o pedaço vai parar no museu. A crônica é como esse pedaço de cerâmica, não vale nada, mas tem uma ligação visceral com determinado momento. No caso do livro sobre o golpe, são crônicas ligadas a um período muito marcante não só da minha vida, mas de todo o País. Tornou-se “reeditável” quarenta anos depois por seu valor histórico e não somente por mérito da crônica em si. Mas ela, pura e simples, é datada.

Mas cabe ao cronista tentar contornar essa, digamos, deficiência da crônica?
Ah, sem dúvida. Por exemplo, eu voltei a escrever crônica para a Folha de S. Paulo em 1993, e as primeiras crônicas foram dedicadas ao presidente Itamar Franco. Hoje eu fico até na dúvida; será que o Itamar existiu mesmo? Ele foi presidente da República? A crônica tem esse lado efêmero. Mas isso não quer dizer que qualquer um faz. São necessários alguns truques, sem eles não se sobrevive. Eu tenho os meus, como todos.

Jornalismo e política. Em que fronteira fica isso na sua literatura?
No início da minha vida profissional eu me recusava a tratar de política, não entrava nem na minha ficção nem nas minhas crônicas. Só que veio 1964 (ano do golpe militar), e aí política passou a ser um assunto cotidiano para mim, com meus amigos todos presos, assim como eu também comecei a sofrer algumas violências. Assim a política virou meu cotidiano e entrou no meu trabalho. Mas não falo dela com muito gosto, não. Faço por uma questão de revolta, que foi muito marcada pelo golpe de 1964. Continuo achando a política um assunto muito desagradável.

Você está pessimista em relação ao Brasil?

Estou, mas não só em relação ao Brasil. Em relação ao homem também, que piora de hora em hora. Deus piora de hora em hora. Ele não melhora, não.

O que você acha da nossa classe política?
Quando somos jovens, imaginamos que há um futuro do qual participaremos como adultos e que terá coisas melhores. Mas depois a gente vê que continua tudo igual, que os valores continuam os mesmos, ou piores, deteriorados. Tenho impressão de que na vida política há uma deterioração muito grande. Haja vista a política internacional, veja Israel e Palestina, Estados Unidos e Iraque, a União Soviética fracassou... Há ainda a desigualdade social... Ninguém resolve esses problemas.