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O chapéu

Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

*Por Daniel Nunes Gonçalves 

 

Recuperei meu chapéu. Aquele surrado, feito de lona marrom imitando couro, que ficava aqui atrás da porta da sala do sítio. Eu não tinha ideia do paradeiro desta relíquia que já comeu tanta poeira de estrada comigo. Até que, hoje pela manhã, caminhando de volta da cachoeira – aonde eu tinha ido ritualizar minha volta ao Sol de número 49, encontrei meu amigo e vizinho Eduardo e aproveitei pra investigar. E não é que o sumido estava na casa do Edu? Reencontrá-lo foi meu presente de aniversário. 

Tentei em vão desamassar suas abas carcomidas, dei uns tapões pra sacar o pó, como quem abraça um velho camarada, e o ajeitei na cabeça. É impressionante como certas peças de vestuário trazem consigo uma espécie de espírito que incorpora na gente. Tipo fantasia de carnaval ou máscara de herói infantil. Estufei o peito, lembrei do meu xará Daniel Boone dos seriados da infância e me teletransportei, saudosista, para aquela que deve ter sido a mais emblemática das minhas viagens de chapéu hippie. 

São Tomé das Letras, montanhas de pedra do Sul de Minas, idos dos anos 90. Minha memória já deletou a situação em que comprei o chapéu, mas deduzo que foi naquela meca dos bichos-grilos mineiros. Tenho fotos – em papel – em que poso com ele, todo estiloso. Descobri São Tomé nas primeiras jornadas com amigos que fiz na adolescência, a partir dos 16 anos, por um circuito mochileiro que incluía Trindade (RJ), Ilha do Mel (PR) e Visconde de Mauá (RJ). Gostei tanto que estive lá 13 vezes. 

Na viagem mais marcante, eu não acamparia perto do Centrinho cheio de astral, com suas ruas que cheiravam a incenso, tinham noites embaladas por covers de Raul Seixas e Pink Floyd e eram encantadas por cabeludos vendedores de artesanato e duendes de Durepóxi. A bordo do meu jipe Vitara azul calcinha, eu, Reni e Stefano, colegas da faculdade de jornalismo da PUC, trocaríamos este agito por uma semana nos cafundós de São Tomé. Em meio a montanhas sonolentas, repousava o casebre emprestado por Beto e Júlio, caçadores de discos-voadores que eu conhecera numa viagem anterior. 

Feita de pau-a-pique, a casinha não tinha luz elétrica, água encanada, gás, nada. Nem banheiro. Ou melhor: havia um vaso sanitário a uns 20 metros da casa, sem teto e cercado por três paredes de bambu, para que os visitantes contemplassem a floresta e as nuvens enquanto fizessem as coisas que as pessoas fazem em vasos sanitários. Banho, só nas águas geladas da cachoeirinha Nossa Senhora da Montanha, desde que cumpridas as regras de banhos sem roupa (!) e sem uso de sabonete ou xampu. A comida era preparada em meio ao calor, ao aroma e ao aconchego do fogão à lenha, desde que com ingredientes não perecíveis - pois geladeira ali não havia. 

Na cozinha, o som da água que corria ininterruptamente pela torneira me afligia com a sensação de que estávamos desperdiçando água. Na verdade, aquela corrente potável vinha da cachoeira, por uma mangueira dessas de lavar quintal. E me fazia lembrar que, em terras com nascentes preservadas, o líquido sagrado jamais para de brotar. 

“A Terra”, aliás, era como chamávamos aquele pedacinho de éden onde eu descobri a simplicidade. As noites eram aquecidas pela fogueira e por garrafões de vinho barato, Sangue de Boi, tomados em canecas de alumínio. Sob as estrelas, gargalhávamos com os causos contados pelo Véio, o caseiro, nosso amado guardião e ermitão que habitava o único cômodo além da cozinha. Pela manhã, saíamos da barraca ouvindo a algazarra dos macacos, que bagunçavam as roupas no varal. Preparávamos o café cantarolando, ao som do violão, “todo dia o sol levanta e a gente canta o sol de todo dia...” 

Subi e desci muitas trilhas da Terra com meu chapéu hippie, em momentos lindos que inspirariam várias de minhas escolhas futuras. A principal delas foi comprar, 13 anos atrás, com Edu e outros 7 amigos, uma terrinha com floresta e cachoeira em Juquitiba, interior de São Paulo. É onde brindo, quase cinquentão, as noites enluaradas, canto o sol de todo dia e tomo banhos de chapéu para celebrar as coisas mais simples da vida. 
 

*Daniel Nunes Gonçalves é jornalista, escritor, professor de narrativas afetivas de viagem e apaixonado por refúgios de natureza como São Tomé das Letras, onde esteve 13 vezes. 

 

A história contada sobre um objeto que carrega memória afetiva de jornadas passadas é resultado do curso “Narrativas Afetivas de Viagem”, ministrado entre os meses de abril e maio/2021 pelo jornalista e escritor Daniel Nunes Gonçalves. 

A proposta do curso é permitir que as pessoas possam viajar em relatos sensíveis baseados na memória enquanto esperam a retomada das experiências de viagens ao vivo. A atividade fez parte da programação de Turismo Social do Sesc Consolação