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A saúde para além do que é orgânico
Ricardo Rodrigues Teixeira é médico e professor do departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, enxerga a saúde como algo que envolve mais do que a promoção de práticas saudáveis, a prevenção de problemas ou tratamento de doenças.
Para o professor, a saúde como um conceito dinâmico e que fica mais bem definido quando entendemos a vida para além do aspecto puramente orgânico, biomédico e incluímos nesse conceito o modo de viver e a potência de cada ser. Ele atuou como consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde entre 2007 e 2015, e fala aqui sobre medicina, encontros, arte e como cada um desses aspectos se relaciona com o indivíduo e as populações em termos de saúde.
“A única chance para um corpo de perseverar existindo é se refazendo continuamente, abrindo-se à composição com outros corpos, com os quais possa produzir modos de vida aumentativos da potência.”
Se fala muito hoje sobre saúde ser mais do que a ausência de doenças. Mas é um pouco difícil entender esse conceito do bem-estar e mesmo como ele se aplica na vida prática, como percebê-lo. O que é essa abordagem de saúde, afinal?
Para simplificar, primeiro precisamos entender que se hoje falamos em um conceito ampliado de saúde é porque assumimos que antes nossa visão estava reduzida. Essa redução da saúde à ausência de doenças decorre do predomínio da visão médica em todos os assuntos que se referem à saúde, lembrando que a missão primordial dessa prática sempre foi o tratamento dos doentes, o combate às doenças. Deu-se, entretanto, uma ampliação progressiva, ao longo dos últimos dois séculos, no sentido de se ir além do¿mero tratamento das doenças. E começamos a trabalhar a prevenção (com vacinas, por exemplo) e, mais recentemente, por volta dos anos 1980, a promoção da saúde, com enfoque na promoção de modos¿de vida saudáveis e no bem-estar, ao qual se faz menção na pergunta.
Note, porém, que essa ampliação não retira o foco das doenças e do modo como são entendidas pelo saber biomédico. Vacinamos contra uma ou outra patologia específica, e mesmo a promoção da saúde, que visa um conceito ampliado de saúde, muitas vezes se vê reduzida às dietas balanceadas e à prática de atividade física, em que a questão, no fundo, continua a ser a de que o corpo não desenvolva problemas cardiovasculares, obesidade, depressão, ansiedade. Ou seja, o referencial é sempre a doença, o saber biomédico, a vida orgânica.
Pode-se dizer que nessa ampliação, que vai do tratamento das doenças à promoção da saúde, o que acabou de fato se ampliando foi a medicalização da vida e da sociedade. Isso abre toda uma discussão sobre o lugar do discurso e das práticas biomédicas nos modos de vida contemporâneos, mas nesse momento direi apenas¿que foi essa medicalização ampliada da vida que nos conduziu a um mundo em que, para além das substâncias dos laboratórios, tudo vira remédio. Um ótimo exemplo¿são os alimentos que “previnem isso ou combatem aquilo”, a chamada nutricêutica. Enfim, um caminho que já conhecemos... Mas nós podemos tentar um outro caminho para ampliar a conceito de saúde. Eu gosto de definir a saúde como um valor. E como um “valor-afeto”.
O que você quer dizer exatamente com “valor-afeto”? E como isso ajuda a ampliar o entendimento de saúde?
O primeiro ponto que precisamos considerar é que a saúde é um valor vital, um valor referido à vida. Pensemos um instante no sentido da palavra vida... Se você olhar no dicionário, vida é uma palavra com dezenas de acepções, mas nós podemos discernir três sentidos principais.
O primeiro é a vida como aquilo que é próprio dos seres vivos (animais¿ou vegetais) e que nos últimos dois séculos se fez objeto de estudo da Biologia. O segundo diz respeito a um jeito de viver, a um modo de vida, como na frase “a vida que eu levo”.
E o terceiro faz com que a vida se torne uma espécie de “quantidade”, como se traduzisse a medida de um grau de potência, a medida de um grau de preenchimento do ser pela sua potência, como na expressão “tal pessoa é cheia de vida”. Ora, nós acabamos de comentar o quanto o saber biomédico reduz a saúde a um conjunto de processos referidos à vida no primeiro dos sentidos acima. O verdadeiro desafio de ampliação do conceito de saúde, a meu ver, é o de fazer ele abranger todo esse espectro semântico da palavra vida, quando produzir saúde passa a significar não apenas a busca de um estado do corpo definido por parâmetros biológicos gerais, mas a invenção de um modo de vida, que só pode ser único para cada pessoa, e que corresponde àquele em que ela experimenta o aumento da potência da vida.
A saúde é tanto mais um valor vital, quanto o que vale é se poder viver uma vida “cheia de vida”. E por isso é um valor-afeto, na medida em que o afeto é a própria “medida” desse valor. Ou seja, trata-se de¿um valor que se mede no corpo, enquanto um afeto, uma variação para mais ou para menos da potência desse corpo. Nós sentimos e experimentamos essa variação da potência e sabemos precisamente o que ela vale, o que ela indica sobre a força da vida em nós.
Essa explicação do afeto, sobre como as coisas nos afetam, considera a saúde como algo de um grupo, mas também muito particular. De que forma a convivência com outros seres vivos afeta um corpo, um indivíduo?
Experimentamos afetos na medida em que nosso corpo é afetado por outros corpos. Nem sempre afetado de modo a experimentar afetos aumentativos da potência, é bem verdade, pois nem tudo que nos afeta compõe com o nosso corpo. Há coisas que o decompõem.
A história de um corpo é a história de seus múltiplos encontros com outros corpos (e aqui é preciso entender “corpo” num sentido bem amplo, que pode tanto ser um outro corpo humano, quanto um alimento, um remédio ou mesmo uma ideia, um pensamento). Todo corpo sofre continuamente o efeito dos outros corpos. Se são corpos que lhe convêm, que concordam e compõem com sua natureza, este corpo experimentará afetos aumentativos da potência; mas se, ao contrário, estes outros corpos decompõem as relações que o caracterizam, ele experimentará afetos diminutivos da potência. Essa é a lógica implacável da vida, a base de sua dinâmica polarizada!
Nós fazemos uma infinidade de bons e maus encontros ao¿longo de uma vida. E viver é essa variação contínua da potência, para mais e para menos, ao sabor dos encontros que vamos produzindo e nos produzem. É preciso dizer, nessa altura, que quem nos ajuda a ver as coisas dessa maneira é o filósofo Bento de Espinosa, que também dizia que todo corpo, tudo o que existe, se esforça para continuar existindo, contra tudo aquilo que busca subtraí-lo da existência. Em outras palavras, tudo que existe se esforça por manter suas relações características, contra a ação de outros corpos que buscam decompor essas relações.
Mas este esforço, para Espinosa, não é um esforço meramente conservador, de se conservar como está. A única chance para um corpo de perseverar existindo é se refazendo continuamente, abrindo-se à composição com outros corpos, com os quais possa produzir modos de vida aumentativos da potência. Em outras palavras, não é mero impulso conservativo e reativo em relação ao que o ameaça, mas é fundamentalmente movimento afirmativo da vida na busca de relações de composição com outros corpos, e que são relações que definem, antes de mais nada, o que seria uma relação de cuidado. Isso tudo pode parecer um pouco abstrato, mas de verdade abstrato é o conceito de uma “saúde perfeita”, que não existe.
A saúde tampouco é um bem que se possa possuir ou perder, mas aquilo que se afirma em nosso esforço continuado para continuar existindo e que produzimos compondo com outros corpos, quando inventamos formas de vida em comum, que é o que verdadeiramente nos fortalece. E isso é muito concreto. São coisas que nós sentimos¿e experimentamos...
Se a saúde, então, não é só algo ligado ao conceito biomédico, ela acontece fora dos locais específicos para a saúde também? Como a arte e as atividades culturais se misturam a isso?
Sim, essa ideia ampliada de saúde realmente amplia nossa percepção de quem ou o que está implicado na produção de saúde. Se você produz encontro, você potencialmente produz saúde, mesmo que não esteja ocorrendo nada que seja culturalmente reconhecido como uma prática de saúde.
Um espaço público, enquanto um espaço democrático para a produção de encontros, produz saúde. A arte, por sua vez, produz tipos especiais de encontro, que deslocam nossa sensibilidade, fazem com que a gente sinta as coisas de outras maneiras, ampliando o nosso poder de ser afetado. E quando ampliamos nosso poder de ser afetado, ampliamos nossas possibilidades de inventar outros modos de vida, mais potentes. Se a saúde, no sentido ampliado que estamos discutindo, se define pelo aumento do nosso poder de afetar e ser afetado, produzindo modos de vida mais potentes, então a arte não deixa nada a dever à ciência e à medicina na produção da saúde.
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