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Cestos e a vida na beira da praia
Na oficina de artesanto caiçara que aconteceu nos dias 16 e 17 de março, no Sesc Itaquera, circularam pelo quiosque Bichos da Mata, na unidade, técnicas tradicionais de cestaria, trajetórias pessoais e reflexões sobre diferentes lugares e formas de aprender. A atividade fez parte da programação da terceira edição do FestA! – Festival de Aprender
"[Ter me tornado] artesão é bem do tempo dos meus avós. Eu era curioso. Eles estavam fazendo, porque existe a costeira pra ir pescar. Eles faziam muito samburá pra pegar o pitu, botar o pitu pra ir pescar. Aí, quando vinha da costeira, o camarão já não vinha mais porque era a isca. Em vez de vir o camarão, só vinha o peixe. Vendo eles fazerem, eu sentei perto e aprendi na prática", recorda Alcides sobre seu tempo de menino no Quilombo do Camburi, em Ubatuba (SP), onde vive até hoje.
Bem-humorado e sempre disposto a auxiliar a turma da oficina de artesanato caiçara, Alcides é da quarta geração do quilombo. "No tempo dos escravos, os escravos fugiam para algum lugar e ali iam gerando uma família. Os troncos velhos foram morrendo e foram ficando os filhos. E foi amontando a comunidade", explica o artesão e agrofloresteiro quilombola de 54 anos. É com orgulho que Alcides exibe sua Carteira de Identidade de Artesão emitida pela Sutaco (atual Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades, do governo paulista). A difusão da agrofloresta é sua outra grande paixão.
Particularmente o artesanato feito de taboa, ele aprendeu com uma professora de Rio Claro (SP), que há alguns anos fora ensinar em sua comunidade. Em dois dias compreendeu bem a técnica e passou a fazer tapetes, fruteiras, chapéus, bolsas e chinelos da fibra da planta.
Alcides assiste Waldirene no trabalho com a fibra de taboa, em oficina no Sesc Itaquera | Foto: Danny Abensur
Waldirene é bibliotecária. Aproveitou a programação do FestA! para trazer ao Sesc Itaquera sua filha, Maria Rita, estudante do 8º ano do Ensino Fundamental. Maria Rita, que tem 12 anos, conhecia até então apenas a piscina da unidade. Ela ficou positivamente surpresa, na tarde chuvosa de domingo, com o êxito que teve na confecção do samburá. Enquanto a filha, auxiliada pelos caiçaras Tio Neco e Seu Dito, fazia o balaio com cipó de timbopeba, Waldirene contava com a ajuda do mestre Alcides para aprender a fazer cestos de taboa. "Acho que pra primeira cesta está perfeita", sorri a bibliotecária de 50 anos. Ela vai aproveitar tudo que aprendeu na oficina para aplicar em atividades junto aos frequentadores da biblioteca em que atua, especialmente com as crianças e os idosos.
Ao refletir sobre como aprendemos artes manuais, a mãe de Maria Rita lembrou de sua própria infância. "Minha mãe bordava e, toda vez que ela começava um trabalho – era bordado livre em pano de prato, então ela comprava o pano de prato já com desenho e ela fazia o bordado em cima do desenho já pronto – toda vez, ela começa a fazer. Quando ela distraia, eu ia lá, pegava e dava continuidade no trabalho dela. Então, ela começava, eu ia lá e terminava. Ponto reto também. Ela fazia, eu ia lá e terminava. Ela acaba largando lá pra eu fazer. Ela não me convidava pra fazer, mas eu ia lá de curiosa, de enxerida e fazia".
Tio Neco preparando um cipó de timbopeba para Maria Rita concluir seu samburá | Foto: Danny Abensur
"No meu tempo, o pessoal não ensinava pra gente", afirma Tio Neco, nascido no Prumirim, em Ubatuba, e um dos mestres da oficina de artesanato caiçara, junto a Alcides e Seu Dito. "Tudo que eu aprendi, eu aprendi sozinho. Não sei ler, não sei escrever. Leio um pouquinho, mas escrever mesmo, eu não sei. [...] Meu pai fazia balaio, fazia tipiti, fazia peneira, fazia tudo de madeira, fazia canoa. Tudo que é artesanato ele fazia. Então, eu olhava. Ele não ensinava", insiste o aposentado de 77 anos, que já trabalhou na pesca e com pedra, granito velho, mais especificamente, antes de se dedicar à difusão do artesanato, do fandango (estilo musical e dança) e da Folia do Divino, em suma, do folclore caiçara.
"O caiçara", define Manuel, ou Tio Neco como é mais conhecido, "é aquele que nasce na beira da praia, vive na beira da praia, come peixe, vive do mar. Meu avô era neto de escravos. Nós nascemos já mais branco, mais cor de café com leite, como dizem". "Pra mim", completa Seu Dito, de 64 anos, "os caiçaras é uma tradição" e o artesanato, "uma arte. Bem poucos que fazem. A juventude hoje em dia não sabe o que é isso".
Seu Dito, de Ubatumirim, em Ubatuba, conta que aprendeu a fazer balaio, cesto, samburá e covo de pegar peixe com os pais, irmãos e tios, ainda criança. Ninguém chamava para aprender. "Eu via eles fazendo e aprendi". Assim como Alcides e Tio Neco, Seu Dito manifesta certa angústia com relação às chances de sobrevivências desses saberes, especialmente entre os jovens caiçaras, que têm outros interesses. "Hoje a molecada não quer mais saber dessas coisas", lamenta Tio Neco, "[esse conhecimento] está se perdendo. Se não tiver ninguém pra cuidar, ele vai acabar. Esse pessoal aqui [no Sesc] é interessado. O nosso pessoal de lá não se interessa por essas coisas".
No Quilombo do Camburi, Alcides também identifica uma mudança de interesse entre boa parte dos mais novos. Eles querem "aprender a ser advogado, aprender a estudar pra não trabalhar na terra. Eles não gostam [dos saberes tradicionais]. Eles querem aprender pra trabalhar fora".
Seu Dito dá os últimos retoques no samburá feito, com destreza, por Adriana | Foto: Danny Abensur
Para Adriana, que nunca havia experimentado essas técnicas de cestaria antes da oficina, a contextualização dos saberes é fundamental para a apropriação desses novos conhecimentos. "O mais importante", reflete a farmacêutica de 27 anos, "é, conforme a gente vai aprendendo, vai preparando a peça, também pensar como eles estão fazendo lá na comunidade deles. Eu acho que aprender é um processo que tem que fazer sentido para quem aprende". Ela gostou muito da oficina de artesanato caiçara, mas especialmente de ouvir Alcides, Seu Dito e Tio Neco contarem suas histórias.
O FestA! – Festival de Aprender acontece de 15 a 24 de março em todas as unidades do Sesc São Paulo. A programação completa e outros conetúdos podem ser encontrados em sescsp.org.br/festa