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Educação é práxis, comida é patrimônio
Por Juliana Casemiro*
Amanhece em Rondônia e o povo Karo Arara se prepara para sua primeira refeição. Será pamonha doce com castanha ou pamonha salgada? Macaloba de cará ou mandioca? Enquanto isso, em Sapê do Norte no Espirito Santo, na casa de farinha da comunidade quilombola, começa o preparo do beiju. Com perplexidade constatamos que, apesar dos duros ataques, estas formas de comer e viver sobrevivem nas tradições e sabores dos nossos povos originários.
Para quem mora em uma grande cidade parece tudo muito exótico e folclórico. Afinal, nas metrópoles brasileiras e do mundo afora, a mesa parece ser mais comportada e previsível. Parece haver conforto no lugar-comum. Estamos diante de um “conforto” fabricado pelas indústrias de alimentos e da mídia.
Com o aumento do excesso de peso e das doenças relacionadas à má alimentação, o indivíduo foi para o centro da berlinda, com prescrições repetindo as “velhas opiniões formadas sobre tudo” – principalmente sobre culpar/julgar. O que para muitos soa como acomodação ou falta de vontade para disciplinar hábitos na realidade revela a opressão de um sistema alimentar que induz ao consumo de um tipo de dieta obesogênica e que produz doença.
Outra peça relevante desse enredo é o que Maria Emília Pacheco tem chamado de “criminalização da cultura alimentar”. As formas tradicionais de produzir queijos, farinhas, geleias e outras preparações que fazem parte da alimentação há séculos passam a ser consideradas impróprias diante de normas sanitárias criadas para (e pela) grande indústria. Revela-se assim a “ditadura do alimento”, denunciada por Vandana Shiva, com suas conexões entre as poucas e grandes corporações que controlam toda a cadeia produtiva. A agricultura baseada na concentração de terra e riqueza e no uso intensivo de agrotóxicos, que sacrifica o meio ambiente e os seres humanos, é a que produz matéria-prima para a produção de ultraprocessados. Por outro lado, fortalecer as experiências da agricultura familiar e camponesa, da produção orgânica e agroecológica e da produção artesanal e tradicional é favorecer a vida em sua plenitude.
Desvelar esta realidade é desafio da Educação Alimentar e Nutricional (EAN). Justamente nessa proposta de inflexão sobre as análises de consumo alimentar estão as principais contribuições da Campanha Comida é Patrimônio para a EAN. A semente da campanha foi o questionamento deste contexto: Que alimentos (não) estamos comendo?
Estamos deixando de comer a nossa comida de verdade, que é patrimônio. Alertamos que outras formas de produzir, consumir e viver não são apenas realizáveis, mas já estão em curso. Através de denúncias e anúncios, de registro de vozes e experiências, o desejo é levar estes debates, que, à primeira vista, parecem complexos, para a mesa do café — porque comida de verdade é assunto de todos nós.
*Juliana Casemiro é nutricionista, Doutora em Educação em Ciência e Saúde pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUTES/UFRJ) e mestre em Saúde Pública Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ. Professora Adjunta no Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (INU/UERJ). Integra a Secretaria Executiva do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Ela foi uma das palestrantes do Seminário Internacional Conexão Comida. As gravações completas das mesas e conferências está disponível aqui.