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Archie Shepp: uma aula do músico radical e poeta engajado
Por Carlos Calado*
Vanguardista, radical, revolucionário. Adjetivos como esses são utilizados com frequência ao se traçar o perfil de Archie Shepp – um dos músicos mais ativos e intelectualizados da geração que, na década de 1960, cultivou e difundiu a rebeldia sonora e política do free jazz, ao lado de Cecil Taylor, John Tchicai e Don Cherry, entre outros. Acrescente-se também o fato de Shepp ter sido discípulo e parceiro eventual do messiânico John Coltrane (1926-1967), o jazzista mais cultuado e imitado nas últimas décadas. Pronto, o mito está completo.
Graças a essa imagem divulgada há décadas, qualquer um se surpreende ao ver e ouvir pela primeira vez esse músico, poeta e dramaturgo norte-americano. Na noite de encerramento do festival Sesc Jazz (2/9), na plateia do teatro do Sesc Pompeia, alguns certamente não imaginavam que poderiam ouvir o radical saxofonista tocar uma canção tão romântica como “The Stars Are in Your Eyes” (de sua autoria), quase em ritmo de bossa nova, incluindo uma breve citação de “Nature Boy” (de Eden Ahbez), antigo sucesso do cantor Nat King Cole (1919-1965).
Os mais familiarizados com a obra e a trajetória musical de Shepp sabem que seu ativismo político – na luta pelos direitos civis dos negros ou contra a desigualdade social, entre outras causas – não o impediram de adotar, já na década de 1970, um repertório bem amplo, que inclui diversas vertentes da música negra norte-americana. Para isso contribuiu sua carreira paralela de professor de Estudos Afro-Americanos, em universidades de Massachusetts e Buffalo. Um exemplo: “Goin’ Home” (gravado em 1977) e “Trouble in Mind” (1980)”, álbuns que Shepp dedicou ao gospel, ao blues e ao rhythm & blues, em inspirados duos com o pianista Horace Parlan (1931-2017), são preciosidades musicais que merecem ser descobertas pelos ouvintes de hoje.
Muito bem acompanhado pela percussão de Kahil El’Zabar e seu Ritual Trio, que inclui o baixista Jamaladeen Tacuma e o pianista Henri Morisset, Shepp ofereceu à plateia, praticamente, uma aula sobre a diversidade da música afro-americana. Soprando seu roufenho sax tenor, abriu a noite com o bebop “Hope #2”, que compôs para homenagear o pianista Elmo Hope (1923-1967). Tocou “Don’t Get Around Much Anymore” (de Duke Ellington), com todo o swing que esse clássico da era das big bands pede. Mais inusitada foi a lenta versão de “Summertime” (de George Gershwin), ao sax soprano, com El’Zabar dedilhando uma kalimba (pequeno teclado de origem africana para ser tocado com os polegares).
Já o anunciado tributo a Coltrane não chegou a entusiasmar, talvez porque algumas das músicas escolhidas não são tão representativas de sua obra e ainda foram espalhadas ao longo do show, em vez de formarem um bloco no roteiro do show. A serena balada “Naima” ganhou uma versão pouco feliz, com Shepp borrando a melodia, demasiadamente, ao sax tenor. A releitura da romântica “I Want to Talk About You” (de Billy Eckstine) seguiu pelo mesmo caminho, mas foi salva pelo lírico solo de Morisset, ao piano, assim como pelos vocais de Shepp, com seu vozeirão de barítono. Coltrane foi lembrado também por “Cousin Mary”, um animado blues de sua autoria, que Shepp chegou a gravar com El’Zabar e seu Ritual Trio, no álbum “Conversations” (1999).
Entre altos e baixos, o clímax do show veio com “Revolution”, dramática composição baseada em um poema que Shepp dedicou à sua avó, Mama Rose, que viveu na época da escravidão. Acompanhado pelo cajón (instrumento de percussão que consiste em uma caixa de madeira, usado originalmente pelos escravos africanos, no Peru) de El’Zabar, com um ritmo tribal, Shepp expôs o tema com o sax soprano e emocionou a plateia ao vocalizar os versos do poema de maneira bem teatral, algo entre um canto falado e um rap. Em nenhum outro momento dessa noite, o músico radical, o poeta engajado e o ativista político estiveram tão próximos.
*Carlos Calado é jornalista, editor e crítico musical. Escreve desde 2009 o blog Música de Alma Negra.
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