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Um corpo de mulher sendo atravessado por tantas vozes urgentes

Grace Passô<br>Foto: Carol Vidal
Grace Passô
Foto: Carol Vidal

Grace Passô comenta sobre o processo de criação de Vaga Carne, que esteve em cartaz de 13/1 a 5/2/2017 no Sesc Pompeia, e que recebeu o Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro na categoria de melhor autor.

O que é o projeto Grãos da Imagem?
Vaga Carne é o projeto que inaugura o Grãos da Imagem. A ideia desse projeto é criar peças partindo de estudos e pesquisas do que seriam identidades. Então tem duas coisas: essa organização temática e a criação do projeto através do desejo de um espaço de experimentos mais radicais de teatro da minha parte.

Com o Vaga Carne, eu trabalho com coisas muito essenciais do teatro, que são essenciais para mim; eu trabalho com o espaço praticamente vazio, poucos elementos de cena, uma ideia de atuação como performance, atuação como aquilo que cria uma situação real entre corpos, entre artista e público, a ideia de falar o texto... São ideias muito simples e básicas do teatro. Então ele me obriga a trabalhar com coisas essenciais. Assim como o Vaga Carne, a ideia é que os projetos do Grãos da Imagem estejam distanciados da ideia do grande espetáculo. Não que eu não goste do grande espetáculo, mas a proposta nasceu como um desejo de criar um espaço para um experimento da linguagem teatral mais radical, mais ligado a códigos e procedimentos simples, porém, primordiais para que o acontecimento teatral exista, que o evento teatral aconteça. Resumindo, tem duas coisas do projeto Grãos da Imagem:
1) criar peças a partir de temas identitários, e isso é muito vasto mesmo, partindo de uma ideia do que seria identidade
2) em termos de linguagem, um espaço para experimentações teatrais mais radicais.

Acho que é muito normal ao longo do tempo - faço teatro há mais de 20 anos - fazer várias coisas; às vezes você vai se distanciando de questões muito essenciais das coisas que você gosta. Eu viajo muito, faço muitos outros projetos com outras pessoas, então eu senti vontade de criar um projeto que seja um espaço protegido e que eu me permita ousar mais. A criação de um lugar com esse intuito, obviamente direciona essas criações para uma expressão mais radical.

E o Vaga Carne é o primeiro espetáculo dessa série. E você já tem outros em mente, ou eles vão aparecer ainda?
Eles vão aparecer ainda. Esse ano a gente vai fazer o segundo, mas eu ainda não tenho muitas coisas concretas pra falar. Tem uma peça que eu quero trabalhar sobre a noção de estereótipos, tem uma outra que eu acho que vai ser uma reverberação das questões que o Vaga Carne traz. Então é um projeto que está ainda em elaboração. Mas o desejo é que seja um espaço protegido para experimentos mais radicais de teatro. Mas isso ainda é um início.

Por que do nome Vaga Carne?
A personagem dessa peça é uma voz, e essa voz se diz capaz de invadir, de habitar qualquer matéria sólida, líquida, gasosa; ela resolve pela primeira vez invadir, habitar um corpo humano, que é um corpo de mulher. Ao habitar esse corpo, ela começa a não ser capaz de sair dali, e começa a fazer parte da existência, se prende a esse corpo. Ela começa a sondar as identidades desse corpo, ela começa a perguntar através da boca desse corpo, o que ele representa, quem é, que imagem tem para o outro. E é esse levantamento de questões que leva o espectador a pensar, e portanto julgar e refletir, sobre aquele corpo que ele vê, tentando descobrir o que esse corpo representa no mundo, quem ele é, o que ele quer, procurando desesperadamente entender esse corpo.

A peça é como se fosse uma pintura de como esse corpo seria se fosse feito por outro; mas como é feita pelo meu corpo, é o de uma mulher, negra, brasileira, sendo atravessado pelas inúmeras vozes urgentes que se tem ouvido no país.  Eu falo pintura porque o texto tem uma forma muito poética de dizer as coisas. Não existe nenhum lugar prosaico, nenhuma história muito linear, não existe uma descrição objetiva de questões da realidade. Existe um devaneio poético sobre essa situação: um corpo invadido por uma voz que tenta entendê-lo. Obviamente isso é uma metáfora, uma porta para viajar muito e pensar muitas coisas.
O que é uma voz? O que é ter uma voz? O que é um corpo à procura de uma voz? Quais são as dissonâncias e as harmonias entre o nosso discurso e a nossa ação, entre agir e discursar?

O que eu sinto que é um sintoma do nosso tempo essa construção de discursos urgentes e potentes e o nosso desejo de realizar nossos discursos na prática. A gente se mover com esses discursos, com o nosso corpo. Que o nosso corpo seja um gesto daquilo que a gente pensa. E isso não é fácil. A gente pensa, idealiza, milita, mas às vezes a gente age, a gente se move de formas diferentes. Essa ligação não é simples de ser feita. O Vaga Carne tem a ver com essa voz, que vaga num corpo, a procura de identidade. E é claro, tem uma brincadeira com "vaga", com "vazio". Tanto que essa carne plena, é também por vezes, vazia. Esse título tem inúmeras formas de lê-lo, assim como a peça. É um grande devaneio poético a partir dessa situação teatral.

"Eu sei o que você quer, corpo, você quer me aprisionar, você quer começar a rebolar e que então eu comece a cantar uma música insinuante, você, corpo, é pura mídia!"

"Olhos são faróis. Ou facas. Ou moluscos. É um susto, é o diabo, é tudo junto. Coisa de chupar! Olho, deve ser coisa de lamber."

(trechos do espetáculo Vaga Carne)

Quando você começou a escrever esse texto?
Há mais ou menos dois anos. O meu primeiro impulso para escrever esse texto foi porque eu tive uma intuição de que esta situação daria um bom jogo cênico. A situação de um corpo catatônico, um corpo que não sabe como agir no mundo, sendo invadido por uma voz cheia de personalidade. Esse encontro estranho, eu sempre achei que daria uma boa situação teatral. Eu comecei com essa ideia teatral, e a partir daí, essa ideia me abriu portas para tocar em vários sintomas da nossa contemporaneidade. A própria ideia da voz sugere muitos significados, a ideia de voz, hoje, na nossa sociedade, está muito ligada ao reconhecimento de identidades, de espaços, ter voz é ter espaço, o direito à voz. Essa ideia da voz é muito instigante, ela traz muitas possibilidades.

A ideia da voz é muito política também.
E muito política, exatamente. Ao escrever a peça, eu fui muito invadida por muitas questões e vozes que eu venho ouvindo de militâncias que eu faço parte - ou mesmo que eu não faço, mas me identifico. Pra mim o Vaga Carne é isso: esse corpo de mulher sendo atravessado por tantas vozes urgentes do Brasil hoje. E esse corpo tentando, a todo custo, eleger a voz que o representa da forma mais real/urgente/pertinente.

Como é a experiência de escrever, dirigir e atuar o primeiro espetáculo solo?
Tenho uma coisa específica no Vaga Carne que eu não sou diretora. A peça não tem direção. Eu juntei parceiros de trabalho de muito tempo, de áreas distintas. São os  provocadores, como eu os chamo. Apesar de todos trabalharem com teatro, um trabalha com cinema, outra com sociologia, outra ligada à dança e luz... Eu ia apresentando o que eu ia criando a cada um, separadamente, e, durante os ensaios, a gente ia refletindo juntos sobre a peça. Então a direção é coletiva.

Quando eu escrevi o Vaga Carne, eu não escrevi para atuar, eu escrevi para publicar. Eu acabei não publicando a peça e atuando. Quando eu lia em eventos de leituras teatrais, ela abria questões muito profundas e as pessoas viajavam muito, iam para lugares muito diferentes. O texto sempre pareceu muito estranho quando eu lia, mas pra mim, estranho é uma qualidade, então eu comecei a me interessar pelo tanto que ele provocava estranhamento. Aí eu me envolvi com ele e parti para fazer.

Sobre função, eu diria que eu sou a clássica artista de teatro brasileira, que se envolve em muitas funções, e isso passa pelo desejo de autoria. Eu comecei a escrever porque eu queria me reconhecer mais profundamente nos trabalhos que eu fazia, e quando eu falo "me", não só a mim, mas a minha realidade. Eu queria que ela fosse mais visível na arte que eu fizesse. Mas também porque artista de teatro brasileira é aquela que faz tudo mesmo. A gente se mete em produção, em várias outras coisas, não só pelo intuito de aprender, mas por necessidade. A formação brasileira se dá muito na prática. Eu não tenho um amor específico por uma função, mas a dramaturgia e direção vieram pra mim a partir de uma vivência muito profunda de atuação. Mas ao mesmo tempo, eu cuidei para que esse processo todo fosse também coletivo. O fato de eu estar em evidência na cena não se configura numa criação isolada e é por isso que tem tanta gente envolvida. Mas chegou em um momento que eu não tinha muita escolha, eu tinha que atuar, mesmo tendo escrito aquele texto.

Mas você sente que está mais gostoso você atuar em um texto seu do que o de outra pessoa?
Em um grupo que eu fiz parte em Belo Horizonte, eu atuei muito em peças que eu escrevi, então é algo que eu já venho fazendo. É um privilégio enorme você poder falar coisas que você escreveu. Porque vem com uma potência muito grande, tudo tem camadas muito profundas de significado, você lembra do dia que você criou aquela palavra. No caso do Vaga Carne, que eu escrevei o texto descolado da cena, eu lembro de quando eu escrevi aquela palavra, depois quando vai pra cena. Vira uma bomba de subjetividades. Vira uma bomba de expressão da libido. Isso também é um privilégio, não vou ficar fingindo que não é. Ao mesmo tempo, eu me espanto profundamente quando ouço leituras de pessoas sobre a peça sendo infinitamente melhores do que a minha. E aí é que eu acho que ela tem potência. É muito louco ver uma coisa que nasceu de outro lugar, com outros objetivos, criando discursos pra outras realidades, é um processo muito bonito.

Eu acho muito bonito se falar o que escreve, me remete à muitas figuras clássicas da oralidade, tipo o Carlos Drummond de Andrade, aquela voz mais tímida, e você ouvir as palavras que ele escreveu, isso tem uma potência! Vira um mistério compartilhado. Você vê a Adelia Prado falando, tem uma beleza.

Você pode comentar um pouco sobre a experiência dos diversos públicos pra quem você já apresentou Vaga Carne e sua expectativa para o público de São Paulo e do Sesc Pompeia?
Em São Paulo é a primeira vez da peça. É a segunda temporada, nem deu tempo de fazer em Belo Horizonte. Eu estreei ano passado no festival de Curitiba, fomos pra Recife, Salvador, São José do Rio Preto, Rio de Janeiro e foi muito lindo. A primeira temporada você malha mais a peça, você faz mais, ganha mais maturidade e você vê a resposta do público. A gente tem muitas respostas boas e potentes. E de crítica, fomos indicados para muitos prêmios de lugares muito diferentes da cidade, a gente teve um público grande em todas as passagens por esses lugares, então estamos em um lugar que a peça tem rendido muito retorno. Cito até que quem não gosta da peça, não gosta radicalmente, e isso é sempre bom sinal, pois assim eu sinto que ela é alguma coisa no mundo.

São Paulo é muito importante para mim no teatro, grandes referências profissionais na minha vida estão aqui. Desde a primeira vez que eu vim pra São Paulo com trabalhos, eu fiz muitas parcerias artísticas potentíssimas. Então é uma cidade meio casa pra mim. Esse lugar da megalópole, que é sempre difícil de conquistar algum espaço, as delícias e as doenças dos grandes centros, me interessa muito. E o movimento teatral que existe aqui, o teatro político dessa cidade, ele é de extrema importância para o Brasil.

O ouro daqui, do espaço cênico do Sesc Pompeia, é que é um teatro muito pequeno, e eu gosto de teatro pequeno, que traz a raridade de um encontro extremamente íntimo. É raro você poder fazer o seu espetáculo idealmente, para poucas pessoas, é uma festa íntima.