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Os desafios das mudanças climáticas
O encontro em Copenhague falhou, mas existem iniciativas contra o efeito estufa
ANDRÉ CAMPOS
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Cercada de grandes expectativas, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada em dezembro de 2009, chegou ao fim sob o estigma do fracasso. O encontro de líderes mundiais não foi capaz de cumprir seu objetivo básico e terminou sem metas globais destinadas a limitar as emissões de gases de efeito estufa (GEE), cujo estabelecimento foi protelado para novembro de 2010, quando ocorrerá no México uma nova rodada de negociações visando a um acordo internacional para enfrentar o aquecimento do planeta.
Sob holofotes bem mais modestos, em meio ao desfile de presidentes e primeiros-ministros, outras lideranças também marcaram presença na reunião promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Copenhague. Prefeitos e governadores estiveram na capital dinamarquesa para discutir, entre outros assuntos, a importância de ações locais frente às mudanças climáticas. “Por que colocamos tantas esperanças num grande acordo entre países quando, segundo a própria ONU, até 80% da mitigação de GEE será feita em nível subnacional?”, indagou Arnold Schwarzenegger, governador da Califórnia – estado pioneiro na criação de medidas voltadas ao tema.
Ao mesmo tempo em que patina a cúpula de países, ganha cada vez mais evidência a necessidade de políticas “subnacionais” – jargão da moda entre ambientalistas – frente aos desafios climáticos contemporâneos. E, no Brasil, São Paulo saiu na frente ao aprovar, de forma pioneira, aquilo que os chefes das nações não conseguiram em Copenhague: metas numéricas para reduzir, nos próximos anos, a emissão de GEE em seu território.
Em junho de 2009, o prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab (DEM), sancionou a Política Municipal de Mudança do Clima. Tomando como base as emissões inventariadas na cidade em 2005, ela prevê uma redução de 30%, até 2012, dos GEE lançados localmente na atmosfera. Em novembro, foi a vez do governador José Serra (PSDB) promulgar a Política Estadual de Mudanças Climáticas. Também com base em 2005, a lei propõe, até 2020, um corte de 20% nas emissões de dióxido de carbono (CO2) em nível estadual.
Os desafios remetem a diversos setores da economia e da vida social. E, apesar de indicar focos prioritários de ação, as leis aprovadas não definem o que exatamente será feito para alcançar as metas propostas. Dúvidas à parte, é certo que o sucesso da empreitada esbarra em verdadeiros vespeiros políticos, que envolvem alterações significativas nos hábitos da população. E não só isso: as mudanças climáticas exigem também a revisão de práticas historicamente adotadas pelo poder público em São Paulo.
Reféns do automóvel
Em 2005, um inventário apresentado pela prefeitura dos GEE emitidos na capital paulista indicou que cerca de 60% advinham diretamente do transporte. A gasolina – que abastece carros e motos – e o diesel – usado principalmente nos veículos coletivos e de carga – são os maiores responsáveis por esse cenário. Juntos, respondiam por 68,3% das emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis.
Nesse contexto, a redução do número de automóveis em circulação é uma das necessidades colocadas pela lei municipal de mudanças climáticas. Melhorias no transporte público, acompanhadas da restrição gradativa ao transporte individual no centro, são algumas das diretrizes do documento, que também prevê inovações no planejamento da cidade – como, por exemplo, faixas exclusivas para veículos com duas ou mais pessoas e implantação de infraestrutura voltada à bicicleta.
Além disso, a lei estabelece como meta eliminar gradualmente – 10% ao ano – o uso de combustíveis fósseis nos ônibus. Em novembro de 2009, a prefeitura apresentou inclusive um protótipo movido a etanol a ser testado em bairros da capital. Desde 2007, o governo paulista – que, na Política Estadual de Mudanças Climáticas, também defende o transporte público em detrimento do automóvel – desenvolve suas próprias experiências do gênero, com ônibus inovadores a álcool e a hidrogênio.
Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), é cético em relação às diretrizes anunciadas. A seu ver, o real panorama de investimentos em curso é outro: bilhões aplicados em grandes obras viárias e paralisia na criação de novos corredores de ônibus. Ações recentes da prefeitura, como restrições à circulação dos fretados e veículos de carga, não priorizam, segundo o superintendente, o transporte público. “Todas essas medidas visam abrir espaço para mais automóveis”, opina. Além disso, Bicalho também desconfia das metas para uso de etanol nos ônibus: ele lembra que, em 1991, foi aprovada lei que obrigava, em dez anos, à conversão de toda a frota municipal ao gás natural, menos poluente que o diesel – algo que, contudo, não se concretizou.
As pistas adicionais em implantação na Marginal Tietê – orçadas em R$ 1,3 bilhão e bancadas principalmente pelo governo estadual – são hoje um dos principais alvos de crítica. Responsável pelo licenciamento da obra, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente municipal se diz contrária à opção “rodoviarista” em voga no país, mas alega que a mudança desse paradigma requer uma articulação nacional de longa duração. “No curto e médio prazos, medidas ainda na lógica do antigo modelo devem ser tomadas para não inviabilizar a mobilidade das cidades”, atesta nota do órgão. O governo estadual, por sua vez, argumenta que a obra, ao diminuir congestionamentos, irá economizar 1,5 milhão de litros de combustível por ano – com a consequente redução dos GEE.
Também na lógica do “antigo modelo”, a inspeção veicular é outra aposta do poder público para, através da regulação dos automóveis, minimizar a emissão de poluentes. Iniciada em 2008 na frota a diesel da capital, ela pretende atingir, em 2010, todos os 6,5 milhões de veículos do município. Tal meta, no entanto, esbarra na grande quantidade de carros não licenciados, à margem do controle do Estado. “A estimativa é que 30% da frota esteja em situação clandestina”, diz Volf Steinbaum, secretário executivo do Comitê Municipal de Mudança do Clima e Ecoeconomia – órgão que assessora a prefeitura no que respeita ao tema. Em 2009, o governo de São Paulo enviou à Assembleia Legislativa um projeto de lei que visa estender a inspeção veicular a todo o estado.
Lixo limpo
No inventário paulistano divulgado em 2005, os resíduos sólidos figuravam como a segunda maior fonte de emissões locais de GEE – 23,5% do total –, logo atrás do uso de energia para transporte e outros fins. Tal fato deve-se à decomposição do material orgânico descartado pela sociedade – que produz metano, gás carbônico e outros poluentes associados ao aquecimento global.
No entanto, esse panorama mudou com a construção de usinas de biogás nos dois aterros sanitários do município. Através delas, a prefeitura informa ter reduzido em 20% as emissões totais da cidade – dois terços da meta assumida pela gestão Kassab. As usinas evitam a difusão do metano na atmosfera ao usá-lo como combustível para gerar eletricidade – que, segundo a administração municipal, supre atualmente cerca de 600 mil habitantes.
A reprodução desse arranjo, porém, não é algo simples. “Nem todos os aterros geram biogás suficiente que justifique o investimento para produzir energia elétrica”, revela relatório realizado, a pedido do governo estadual, pela empresa de consultoria energética Andrade & Canellas. Além disso, boa parte dos resíduos sólidos ainda é descartada de forma inadequada e se perde no ambiente. De acordo com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), apesar dos avanços nos últimos anos, 8,2% dos municípios paulistas nem mesmo contam com condições adequadas de disposição final dos rejeitos.
Na opinião de Sabetai Calderoni, presidente do Instituto Brasil Ambiente – organização que presta consultoria em projetos de gestão de resíduos –, as usinas de biogás são uma solução paliativa e insuficiente. “O que precisamos é de centrais de reciclagem integral”, defende. O incentivo ao reúso e à reciclagem de materiais são diretrizes em ambas as políticas – municipal e estadual – de mudanças climáticas. Na capital, para que seja emitido o alvará de funcionamento, a lei passa inclusive a obrigar os empreendimentos de alta circulação – como os shopping centers – a manter programas de coleta seletiva.
Apesar de muitos municípios já contarem com ações na área, Calderoni lembra que ainda é ínfimo o percentual de resíduos de fato abrangidos pela coleta seletiva. Segundo ele, um dos obstáculos à ampliação da reciclagem é a falta de responsabilização das empresas em relação ao destino final de seus produtos. “Na Alemanha, a indústria é responsável pela carcaça dos automóveis que chegam ao fim da vida útil”, diz ele, lembrando que isso gerou mudanças nas fábricas para minimizar o uso de componentes descartáveis.
Modelo industrial
A Política Estadual de Mudanças Climáticas prevê a busca de novos padrões de produção industrial, como o uso de materiais menos impactantes, menor geração de resíduos e adoção de combustíveis mais limpos. Determina ainda que sejam criados incentivos – isenções fiscais, crédito facilitado etc. – à adaptação das fábricas e acena com a incorporação da variante climática ao licenciamento ambiental. Em 2008, o governo paulista divulgou um ranking das companhias locais que mais emitem dióxido de carbono em seus processos fabris – por setor, as empresas de aço e ferro-gusa (39%), petroquímicas (25%) e de minerais não metálicos (17%) lideraram a relação.
Em defesa da indústria paulista, Nelson Pereira dos Reis, diretor do Departamento de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), qualifica como “prematura” a meta de redução global de 20%, até 2020, prevista na lei estadual. Em sua argumentação, ele evoca o princípio da responsabilidade diferenciada já previsto em acordos internacionais sobre o tema. “Os países ricos devem ter metas absolutas de redução, e aqueles em desenvolvimento devem reduzir o ritmo de crescimento de suas emissões”, observa. Para viabilizar ações com esse objetivo, a Fiesp pede ainda melhor regulação jurídica nacional do mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) – instrumento que permite a venda de “créditos de carbono” advindos de projetos industriais voluntários de redução de emissões.
Ao contrário da capital paulista, o estado ainda não possui um inventário global dos GEE emitidos em seu território – a política aprovada obriga à sua realização até dezembro de 2010. Segundo o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), discutir metas antes do inventário é inadequado. “Não adianta propor uma redução de 20% se não soubermos o patamar do qual estamos partindo”, critica. Além disso, segundo ele, faltam metas setoriais concretas na lei estadual, o que a tornaria uma mera carta de intenções – Diogo defende, por exemplo, que ela inclua regras mais rígidas para o fim das queimadas nos canaviais, prática que libera CO2 na atmosfera. Na contramão das críticas, Oswaldo Lucon, assessor técnico da Secretaria do Meio Ambiente estadual, afirma que medidas restritivas deverão vir. “Às vezes a questão da produção mais limpa precisa ser tratada de forma impositiva”, assegura.
Entre os setores da economia, a construção civil ocupa posição de destaque nos debates sobre aquecimento global, por sua grande influência nos padrões de consumo energético e alta demanda de materiais fabricados mediante liberação de GEE – aço, cimento, plástico etc. No Brasil, uma boa notícia é o aumento de empreendimentos imobiliários interessados em obter certificações relativas à incorporação de aspectos sustentáveis aos edifícios – como a adoção de materiais menos impactantes, dispositivos para economizar água e luz e a preocupação com a reciclagem.
Medidas voluntárias, no entanto, são apenas parte da solução. “A experiência tem mostrado que a redução do uso de energia em construções não irá acontecer sem a intervenção de políticas públicas”, afirma estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Na capital paulista, já foram aprovadas algumas medidas pontuais: desde 2007, vigora lei que obriga as novas edificações a ter sistemas solares para suprir 40% da demanda por água quente. Além disso, desde 2006 a prefeitura exige o uso de agregados reciclados nas obras de pavimentação do município.
A preocupação com as compras públicas é outra cobrança feita aos políticos. No estado de São Paulo, já existem normas que orientam os servidores a observar critérios socioambientais na aquisição de produtos e serviços, além de decretos específicos que obrigam a administração estadual a adquirir veículos a álcool e lâmpadas de maior eficiência energética. Já na capital, uma iniciativa existente é a contratação de ciclistas – em vez dos tradicionais motoboys – para os serviços de entrega da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente.
Apesar dos avanços, Laura Valente de Macedo, diretora regional da ONG Iclei – que assessora órgãos estatais brasileiros em projetos relacionados a compras sustentáveis –, vê a necessidade de capacitar melhor os funcionários. “É algo que envolve desde mostrar critérios sustentáveis ao técnico que faz a compra até convencer o departamento jurídico da legalidade de um edital proposto”, exemplifica. Ela ressalta, no entanto, que alguns aspectos da legislação de licitações em vigor ainda prejudicam avanços na área. “Não é possível, por exemplo, exigir a compra de produtos feitos localmente, algo que seria muito favorável à sustentabilidade.”
Conexões sustentáveis
O desmatamento, ao eliminar plantas que retêm CO2 por meio da fotossíntese, é hoje a principal fonte de GEE no Brasil. Dados preliminares do segundo inventário nacional de emissões, ainda não concluído, indicam que 57,5% do total advém desse processo – associado principalmente à destruição de mata nativa com o objetivo de preparar o terreno para abrigar empreendimentos agropecuários em regiões de cerrado e na Amazônia.
Tal procedimento ocorre principalmente fora das fronteiras paulistas – o estado mantém apenas 14% da vegetação original. No entanto, como são importantes consumidores de produtos da Amazônia Legal, agentes públicos e privados de São Paulo sofrem pressão crescente para a adoção de práticas de consumo consciente voltadas à região. Como reflexo disso, surgiram nos últimos anos normas mais rígidas para fiscalizar a entrada de madeira proveniente de outros estados, tanto em nível municipal quanto estadual – iniciativa que rendeu a ambas as esferas administrativas o título de “Amigas da Amazônia”, concedido pela ONG Greenpeace. Ainda candidato à prefeitura da capital, Gilberto Kassab assinou, em 2008, um compromisso com organizações da sociedade civil que incluía a exigência de legalidade na cadeia produtiva das empresas que abastecem a cidade com matéria-prima amazônica.
Um estudo realizado pelo Movimento Nossa São Paulo e pelo Fórum Amazônia Sustentável mostra que ainda há muito a fazer nessa área. Divulgado em 2008, ele identifica empresas que atuam em São Paulo adquirindo grãos, gado e madeira produzidos mediante desmatamento ilegal. O problema afeta inclusive o mercado de compras públicas – o frigorífico multinacional Friboi, que à época mantinha contratos de fornecimento de carne para merenda escolar na capital, foi um dos citados na pesquisa.
Iniciativas de mitigação à parte, projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – órgão da ONU que coordena pesquisas sobre o tema – indicam que, mesmo com o sucesso de ações que visam conter os GEE, algum grau de aquecimento global já se tornou inevitável. “Há muito passamos do ponto de retorno. É importante, portanto, nos preocuparmos com as mudanças que virão”, recomenda Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele ressalta que alterações no clima reforçam desigualdades sociais – tendendo a atingir mais severamente os pobres – e critica a falta de espaço da adaptação às mudanças na agenda política. Atualmente, Nobre coordena estudos sobre a vulnerabilidade da capital paulista ao aquecimento que virá. Resultados preliminares indicam, por exemplo, um aumento de enchentes e de secas – que podem inclusive prejudicar o abastecimento municipal de água.