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O que fazer com a sucata ambulante?
Cresce o número de carros que deixam de circular. Solução é a reciclagem
MARCELO SANTOS
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Para quem está acostumado a levar cerca de duas horas para percorrer a Marginal Tietê, uma das mais importantes vias da cidade de São Paulo, a impressão é que o número de 34 milhões de automóveis no Brasil – 4,5 milhões deles apenas na capital paulista – está subestimado. Os dados são do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e referem-se a carros emplacados no país. Entretanto, apesar de parecer o contrário, muitos deles só existem no papel. Na prática, parte da frota já se transformou em sucata há um bom tempo, uma vez que o Denatran não tem informações, segundo sua assessoria de imprensa, sobre os veículos que deixaram de circular.
De acordo com levantamento do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças), o número real de automóveis em circulação é atualmente de pouco mais de 22 milhões de unidades. O estudo, apresentado no segundo semestre de 2009, baseia-se nas vendas ao mercado interno desde 1957. A mesma pesquisa indica que a idade média da frota é de 9 anos e que 15% dos veículos têm mais de 15 anos de uso. Apesar dos incentivos econômicos para a renovação, o mercado de carros velhos se mantém como uma alternativa para quem não tem condições financeiras de adquirir um veículo novo.
Como não há leis que decretem o fim da vida dos automóveis, eles resistem pelas ruas, mesmo desregulados e agonizantes, e só param de circular quando, de fato, não lhes restam as mínimas condições de rodagem. Ainda assim, tomando por base os acidentes em que há perda total, ou roubos e furtos, quando não existe possibilidade de recuperação, o Sindipeças chegou a uma estimativa, talvez a única, sobre o percentual de veículos que deixam de circular anualmente: 1,5% da frota. A principal dúvida é saber para onde vão os veículos sem condições de circulação.
Infelizmente, os números divulgados pelos principais compradores desse material não são animadores. Apenas 1,5% da sucata de ferro e aço tem como origem automóveis descartados. “A falta de legislação específica, de abrangência nacional, que incentive e regulamente a reciclagem de veículos e possibilite o desembaraço e a baixa nos órgãos competentes com rapidez é um dos gargalos a sanar”, afirma Elias Bueno, secretário executivo do Sindicato das Empresas de Sucata de Ferro e Aço.
Elias considera que o setor, composto por 3 mil empresas espalhadas pelo país, seja a principal porta de entrada para automóveis em fim de vida. Um exemplo prático disso é o amplo espaço de 50 mil metros quadrados em Guarulhos (SP), pertencente à RFR Reciclagem, onde guindastes lançam dentro do triturador (shredder) a sucata, incluindo carros inteiros. O equipamento faz também a separação, por meio de esteiras magnéticas, dos materiais recicláveis. “A capacidade da máquina é de 14 mil veículos por mês. Deve haver apenas 15 dessas em todo o país”, explica o diretor de compras da empresa, Marcos Sampaio da Fonseca, que é também presidente do Instituto Nacional das Empresas de Sucata de Ferro e Aço.
Segundo Fonseca, o total de 1,5% de automóveis reciclados pelas empresas de sucata de ferro e aço corresponde apenas aos veículos comprados inteiros, em leilões de seguradoras ou do poder público, assim como de desmanches, ao preço de R$ 0,30 o quilo, o que equivale à média de R$ 200 por unidade. “É impossível mensurar a quantidade de carros que chegam em pedaços, junto com geladeiras velhas ou cadeiras de praia, provenientes de diversas fontes, como oficinas de funilaria, carroceiros, desmanches e depósitos de sucata.”
Como não há escala para a desmontagem dos veículos, a empresa compra o automóvel já sem itens como estofamento, pneus, vidros ou bateria. Mesmo nesse estado, depois da trituração, cerca de 20% da sucata acaba no aterro sanitário. “São impurezas, terra ou materiais não recicláveis”, explica Fonseca.
Via-crúcis
O fim da vida de um automóvel depende da baixa no departamento de trânsito. É necessário que a documentação esteja em ordem, sem multas ou encargos atrasados. O proprietário deve também providenciar o preenchimento de formulários, o pagamento de taxas, a entrega das placas e o recorte do número do chassi. Feito isso, o carro pode ser negociado como sucata com um desmanche. No estado de São Paulo são 12 mil empresas desse tipo, segundo o sindicato da classe.
É aí que começa outro problema. O documento de baixa dos veículos é usado, algumas vezes, para legitimar a venda de peças de carros irregulares ou mesmo roubados e revendidos por comerciantes ilegais. Segundo o delegado Itagiba Franco, do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), a solução é o fechamento dos estabelecimentos de desmanche. Ele acha que os automóveis com baixa permanente nos departamentos de trânsito devem ser encaminhados a empresas de reciclagem, o que diminuiria, em sua opinião, as estatísticas sobre roubos e furtos de veículos. “Não é culpa nossa se há falta de fiscalização rigorosa ou mesmo se são vendidos restos de veículos com a documentação legal, abrindo a possibilidade de pessoas ‘esquentarem’ carros”, esbraveja o presidente do sindicato que congrega as empresas de desmanche em São Paulo (Sindesmanche), Veríssimo de Souza, alegando que o processo de compra de automóveis em leilões, promovidos pelo próprio poder público, abre brechas para a ação de criminosos, que com o documento revendem peças roubadas como se fossem legais. Por outro lado, destaca ele, os desmanches estão em busca de qualificação técnica para a descontaminação dos veículos e o descarte correto do que não poderá ser reutilizado. “O sindicato já tem projetos que tratam dessa questão.”
O diretor de segurança veicular da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), Harley Bueno, concorda com o delegado Itagiba não apenas no que tange à questão social, mas também tendo em vista o estado das peças e a possibilidade de que sejam reutilizadas. “Não acredito que o melhor seja revender as partes de um veículo sinistrado ou com perda total. Quem avaliaria as condições de segurança de uma peça recortada de um monobloco? Nossa opinião é que o veículo deve seguir inteiro para o processo de reciclagem.”
Inspeção técnica veicular
O envolvimento da AEA na questão da reciclagem de veículos começou durante os debates do projeto de lei 5.979, de 2001, que regulamenta a inspeção técnica veicular no país. O dispositivo, que pode ser aprovado ainda este ano na Câmara dos Deputados, pretende implantar uma checagem anual dos itens de segurança dos veículos. “Questionamos o Denatran sobre o destino dos carros que fossem reprovados na inspeção e não apresentassem mais condições de circular, já que o texto do projeto de lei não contempla essa hipótese”, relata Bueno. O Denatran encomendou então um estudo à AEA, pedindo soluções para a questão. “Nossa ideia é a implantação de pontos de reciclagem em estados com localização estratégica. Precisamos criar uma indústria, já que com a inspeção vamos gerar uma demanda. Mas é preciso que todo esse processo seja economicamente viável.”
No início deste ano, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determinou que, a exemplo do que já acontece nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, todos os municípios e estados com mais de 3 milhões de veículos adotem a inspeção veicular ambiental, em que é checada a emissão de poluentes. “É preciso ficar de olho para que a frota que não tenha condições de rodar nos grandes centros não seja enviada para os pequenos municípios”, observa Harley.
Outra ideia é criar centros de desmontagem e reciclagem, que funcionariam como uma espécie de desmanches legalizados. O diretor de operações no Brasil do Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi), José Aurélio Ramalho, acredita nesse caminho. “Cerca de 90% dos componentes do veículo podem ser reaproveitados. Os centros de reciclagem devem ser especializados para esse tipo de desmontagem”, diz, explicando que os veículos deverão passar por um processo de descontaminação, com a retirada do líquido de arrefecimento, do óleo, do fluido de freio, do ar-condicionado e da bateria. As peças que apresentarem boas condições de uso poderão ser vendidas, e itens de segurança, como air bag, barra de direção, discos de freio, entre outros, deverão ser descartados e enviados para empresas de reciclagem para ser utilizados como matéria-prima pela indústria.
A proposta é semelhante ao modelo adotado na Espanha e na Argentina. Na Espanha, um centro de reciclagem foi criado para dar um destino adequado aos carros fora de circulação. Já na vizinha Argentina essa foi a solução encontrada para combater a grande quantidade de furtos e roubos de veículos durante os anos de 2002 e 2003, em que o país passou por uma profunda crise econômica. Quando o número desse tipo de crime triplicou em relação a 2001, o governo aprovou a Lei do Desmanche, passando a monitorar todas as peças dos veículos desmontados. Com isso, os desmanches deram lugar a centros de reciclagem, criados com apoio do próprio Cesvi, e o número de roubos de carros despencou 70% no país. “Temos a intenção de repassar todo o know-how a quem se interessar”, diz Ramalho.
O grupo Tejofran, de São Paulo, que atua em áreas como saneamento básico, segurança, limpeza e usinagem, foi conquistado por essa ideia. Seu objetivo é instalar, já no segundo semestre deste ano, o primeiro centro de reciclagem de veículos do país, nos moldes dos já implantados pelo Cesvi na Europa e na Argentina. “Conheci a reciclagem de veículos há quatro anos. Desde então passamos a acompanhar o tema e, há dois anos, decidimos que queríamos um modelo parecido no país”, conta Clodomir Ramos Marcondes, diretor de relações institucionais da empresa. Já foram investidos R$ 500 mil em pesquisa e consultoria. Outros R$ 5 milhões devem ser destinados a esse projeto, que será instalado num terreno de 12 mil metros quadrados na cidade de Osasco. Os carros com baixa legal serão fornecidos através de uma parceria com a Mapfre Seguros, a mesma empresa que já opera o centro de reciclagem espanhol.
Segundo Marcondes, ainda não se sabe como será feita a distribuição das peças desmontadas. “Vamos trabalhar com comércio eletrônico, através da internet, e também com oficinas certificadas pelo Cesvi. Porém, tudo ainda é incerto. De acordo com as estimativas, se desmontarmos e vendermos 300 carros por mês já estaremos viabilizando financeiramente o negócio.”
Os centros de reciclagem também podem ser uma solução para grandes frotistas que, ao final da vida útil do automóvel, são obrigados a realizar leilões. “Não há um processo adequado de descontaminação quando esses carros são desmontados. Se fossem enviados aos centros de reciclagem, isso seria feito com responsabilidade ambiental”, diz o diretor da Tejofran.
O papel das montadoras
Gilmar Ferreira Batalha, professor de engenharia mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), defende que as montadoras sejam responsáveis pelos veículos “do berço até o túmulo”, seguindo um modelo já adotado na União Europeia, onde uma diretiva do Parlamento Europeu chamada ELV (End of Life Vehicles – Veículos em Fim de Vida) determina que até 2015 os carros fabricados tenham 95% dos componentes feitos de material reciclável. Além disso, os veículos já saem de fábrica com manual de desmontagem e reaproveitamento. “Não é questão de ser bonzinho e sim de sustentabilidade”, observa.
Segundo Batalha, a reciclagem é importante também porque o setor automotivo passa por uma mudança de paradigma. “Houve uma geração de automóveis movida a vapor. Depois chegaram os motores de combustão interna. Mas esse período está acabando, com a chegada dos motores híbridos, que combinam a parte elétrica com a mecânica”, diz. Na opinião do professor, com a substituição do sistema motriz dos carros haverá uma imensa frota em desuso.
Batalha sugere que a compra de um veículo passe a ser encarada como a aquisição de um serviço de mobilidade a ser usado durante um tempo determinado. “Depois disso, as próprias empresas comprariam o carro para ser reaproveitado como matéria-prima.”
De forma paralela à implantação da reciclagem é preciso, segundo Batalha, repensar os projetos dos veículos, que não podem mais ser concebidos para durar 20 ou 30 anos, enquanto as montadoras são obrigadas, por lei, a produzir peças de reposição para carros com até dez anos da fabricação. Segundo ele, o Brasil tem capacidade técnica para produzir os próprios projetos para a indústria automobilística nacional. “É preciso que a sociedade esteja atenta e cobre ideias ecologicamente corretas”, diz.
Se a reciclagem de automóveis no Brasil seguir a trilha das latas de alumínio – mais de 90% das quais são reaproveitadas – ou mesmo de embalagens PET, vidro e aço, com índices de recuperação acima de 50%, é bem possível que o país consiga dar um rumo certo à frota obsoleta que, por enquanto, ainda espera por um destino nos pátios e desmanches brasileiros.
Carros abandonados
Foi durante as idas e vindas de sua casa ao trabalho que o jornalista Marcos Rozen, de 36 anos, percebeu vários carros esquecidos pelas ruas por onde passava. Morador de Cotia, cidade vizinha à capital paulista, ele passou a fotografar os veículos abandonados e publicou as imagens na internet, através do blog “Autos Órfãos” (www.autosorfaos.wordpress.com). “Foi uma surpresa quando comecei a receber fotos de todo o país com carros abandonados”, comenta. São modelos novos e antigos, conservados e depredados, e até mesmo carcaças, como uma encontrada diante do mar azul de Jericoacoara (CE). Há também raridades, como o modelo sedã Oldsmobile Cutlass Ciera, ano 1989, parado numa via da Asa Sul, em Brasília, desde 2003. “O que mais impressiona é que boa parte dos carros abandonados não era apenas sucata; muitos estavam em boas condições, necessitando apenas de poucos reparos”, diz o jornalista, que coleciona mais de 300 fotos na rede mundial de computadores.
Entre 2005 e 2008, funcionários da prefeitura de São Paulo recolheram 1.379 veículos abandonados nas ruas da cidade, uma média de 340 por ano. Já em 2009, esse número saltou para 650 carros.
O presidente do Sindesmanche, Veríssimo de Souza, conta que os filiados ao sindicato são constantemente procurados por proprietários de carros com dívidas que querem vendê-los como sucata. “É preciso que o veículo não tenha nenhuma restrição para que isso aconteça”, diz. Quando perguntam o que fazer, o conselho parece piada: “Você abandona o carro e liga para a delegacia ou para a prefeitura. O veículo é levado para o pátio e em três ou quatro meses vai a leilão. É melhor dar de graça para o governo. Pelo menos assim você fica livre, já que o Detran vai dar baixa no carro por você”.
Para ser considerado abandonado, basta que o veículo permaneça por cinco dias estacionado num mesmo local, em via pública. Quando há denúncia de uma situação dessa natureza, a polícia militar é acionada para checar se o carro é fruto de alguma atividade criminosa. Se não for, segue para um pátio da prefeitura, onde permanece por 90 dias. Depois disso, pode ser leiloado.
Para quem abandona o carro, a única penalidade pode ser uma multa aplicada por despejar de forma inadequada o “lixo” em via pública. Em São Paulo o desembolso pode chegar a R$ 500. Já o Código de Trânsito Brasileiro não entende como infração o abandono de veículos nas ruas.