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O carro elétrico volta à pista
Crise energética e ameaças climáticas fazem renascer automóveis movidos a eletricidade
CEZAR MARTINS
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“Senhoras e senhores, estamos aqui reunidos hoje para lamentar a perda de algo que amamos. Viemos dizer adeus a um amigo especial, a uma ideia.” Foi assim, com lágrimas de luto, coroas de flores e marcha fúnebre tocada em gaita de fole que um pequeno grupo de americanos simbolicamente enterrou o EV1, o primeiro carro movido exclusivamente a eletricidade produzido no mundo por uma grande montadora. A cena verídica está no documentário Quem Matou o Carro Elétrico?, dirigido por Chris Paine, que mostra como a General Motors, em 1996, revolucionou o mercado automobilístico dos Estados Unidos com um esportivo de dois lugares silencioso e não poluente, mas, quatro anos mais tarde, alegando altos custos de produção e baixa demanda, tirou quase todos os exemplares das ruas e os triturou. Sobraram apenas raridades sem funcionamento em museus da Califórnia. Contudo, uma década depois do funeral, a ameaça do aquecimento global e as instabilidades políticas nos grandes países produtores de petróleo tornaram mais evidente a necessidade de desenvolver veículos cujo abastecimento possa ser feito na tomada. Com uma frota de quase 60 milhões de veículos e dono de uma matriz energética majoritariamente limpa, o Brasil tem a chance de ocupar um lugar de destaque nessa corrida que promete tirar o carro elétrico da tumba em poucos anos.
Por enquanto, em solo nacional, é possível afirmar que a popularização dessa tecnologia interessa mais às companhias geradoras de energia que às montadoras. É o caso da Itaipu Binacional, responsável pela gestão da maior usina hidrelétrica do país e que tem capitaneado o desenvolvimento de carros elétricos para usar em suas instalações. “Fomos convidados a participar de um programa pela KWO, uma empresa suíça geradora de energia. Eles já usavam carros elétricos lá para percorrer mais de 120 quilômetros de túneis entre as montanhas dos Alpes. Para eles, foi uma solução para reduzir tanto custos quanto emissões. A Itaipu firmou então um convênio com a Fiat para adaptar a tecnologia ao Brasil. Em 2007 já tínhamos o primeiro protótipo”, afirma Celso Novais, coordenador geral do Programa Veículo Elétrico, da Itaipu, iniciado em 2006. Outras concessionárias, a exemplo de CPFL, Eletrobrás e Cemig, também aderiram à iniciativa.
Por causa das especificidades, os engenheiros da Fiat decidiram usar a carroceria do modelo Palio Weekend, um dos mais vendidos em todo o país. Leonardo Cavaliere, supervisor de produto da empresa, afirma que, primeiro, foi preciso entender as mudanças que deveriam ser feitas para que o carro recebesse o motor elétrico, uma bateria especial e outros itens básicos necessários ao funcionamento. “O primeiro passo foi definir um kit seguro para ser montado no veículo. Concluímos a etapa inicial do projeto e entregamos uma frota. Agora, vamos analisar o desempenho dos veículos que já estão circulando.” De acordo com Novais, existem mais de 40 Palios elétricos produzidos, e o modelo, já homologado pelo Departamento Nacional de Trânsito, poderia ser comercializado, mas a Fiat diz que o projeto ainda não está totalmente concluído e não tem uma previsão de quando poderá disponibilizá-lo aos consumidores comuns.
Isso, no entanto, não deve demorar muito para acontecer. Um sinal claro de que o interesse pela inovação está aumentando é o destaque dado aos veículos elétricos na edição de 2010 do Salão do Automóvel de Detroit, nos Estados Unidos, um dos principais eventos mundiais do setor. Os organizadores criaram a Electric Avenue (Avenida Elétrica), destinada a mostrar os modelos mais recentes desenvolvidos por fabricantes de todos os países, desde a coreana CT&T, que pretende fincar pé nos Estados Unidos até o fim do ano, até a própria GM, cuja nova aposta é o modelo esportivo batizado de Volt.
A Fiat não levou o Palio Weekend para a feira, mas exibiu um protótipo de carro elétrico baseado em um de seus modelos lançados recentemente, o Fiat 500. Até mesmo o diretor Chris Paine circulou pela Avenida com uma câmera na mão, fazendo entrevistas e imagens para o próximo documentário que pretende realizar, chamado A Revanche do Carro Elétrico.
Embora o desenvolvimento das tecnologias mais avançadas ainda esteja ocorrendo nos países ricos, principalmente as que dizem respeito a baterias com maior durabilidade e capacidade de armazenamento, o Brasil não está completamente a reboque na discussão do tema. Em novembro do ano passado, a cidade de Campinas, no interior de São Paulo, foi sede do primeiro workshop de tecnologias de veículos elétricos, organizado pelo Instituto Nacional de Eficiência Energética (Inee) e pela Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Pesquisadores de universidades brasileiras, engenheiros e diretores das empresas geradoras reuniram-se para discutir os impactos que a adoção desse tipo de meio de transporte teria na economia brasileira, os benefícios para o meio ambiente e a necessidade de maior apoio do governo para incentivar as pesquisas nacionalmente. “O veículo elétrico é o futuro. Isso é inquestionável, por causa da redução de custos e da eficiência energética comprovada. Porém, se não houver iniciativas do governo para que o Brasil aprimore e acelere o desenvolvimento de projetos, vamos ter de importar tecnologia. Precisamos estar à frente e exportar o que fizermos aqui, em parceria com a iniciativa privada”, defende Novais.
Na medida para as metrópoles
Os carros com motor elétrico não podem ser considerados propriamente uma novidade, pois já havia modelos comercializados nas cidades dos Estados Unidos no começo do século 20. No Brasil, os bondes movidos a eletricidade, instalados nas principais capitais, eram o símbolo dessa tecnologia, e o Rio de Janeiro se orgulhava de ter inaugurado a primeira linha de ônibus elétricos do país, em 1918. O cenário, no entanto, já vinha mudando desde que Henry Ford havia lançado, em 1909, o imbatível Ford T, um modelo de carro mais barato equipado com um propulsor movido a gasolina. A invenção da partida elétrica poucos anos depois, permitindo o acionamento por meio de um pedal em vez das trabalhosas manivelas, fez com que os veículos a combustão caíssem de vez nas graças dos consumidores. A indústria do petróleo percebeu o grande negócio que nascia, incentivou as fábricas a dar continuidade ao desenvolvimento dos motores e criou uma infraestrutura de primeira, com postos de abastecimento e manutenção.
Ainda hoje, as principais vantagens dos veículos que utilizam combustível são o custo menor de produção e a capacidade de rodar distâncias bem maiores. A maioria dos elétricos existentes, mesmo com todos os avanços tecnológicos alcançados em um século, ainda não consegue andar mais do que 100 quilômetros com uma carga completa da bateria, que demora em média oito horas para ser recarregada. Isso inviabilizaria, por exemplo, uma viagem rápida e confortável entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em contrapartida, os especialistas são unânimes em afirmar que, excetuando-se os longos trajetos, os carros movidos a eletricidade funcionam perfeitamente para o uso urbano e poderiam contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade do ar nas grandes capitais. “As pessoas não costumam dirigir mais do que 40 quilômetros por dia, e os automóveis passam mais de dez horas estacionados em casa ou no trabalho. O que temos hoje em termos de tecnologia, portanto, é mais do que suficiente para atender as principais necessidades dos motoristas”, afirma Pietro Erber, diretor da ABVE. “Os estacionamentos e shopping centers também poderão se tornar postos de recarga de baterias no futuro. Será um grande negócio oferecer energia para os carros de graça e manter o motorista perto das lojas, fazendo compras. Tudo isso, no entanto, ainda precisa ser estruturado. Para que os elétricos ganhem as ruas terá de haver uma adaptação geral, é inevitável.”
Existe, também, a possibilidade de que empresas privadas invistam na criação de locais de troca rápida de baterias, previamente carregadas. O consumidor teria de pagar pelo serviço, deixando a peça antiga para ser colocada em outro carro depois que fosse reabastecida. Segundo Erber, o sucesso da ideia depende apenas de ousadia. “É como a história do ovo e da galinha. Ninguém investe porque o mercado é pequeno. E quase ninguém compra um carro elétrico porque não há estrutura. Quando essa barreira for rompida, haverá um grande avanço”, afirma.
A inspiração para a mudança pode vir de uma iniciativa de um dos ícones do petróleo no Brasil, a Petrobras, que inaugurou, em junho do ano passado, o primeiro eletroposto brasileiro. A cidade do Rio de Janeiro foi a escolhida porque, de acordo com a distribuidora, tem mais da metade das 300 motos elétricas que circulam no país e aproximadamente 20 carros com motor desse tipo. A fonte da energia é solar, captada por células fotovoltaicas, e o custo, por enquanto, é bastante elevado – R$ 2,60 por quilowatt-hora (kWh), contra R$ 0,40 da energia doméstica. Ainda assim, a companhia estima um crescimento de 50% ao ano. “Quem adquire um veículo elétrico está mais preocupado com a questão ambiental do que com o preço do combustível. Usaremos a energia do Sol, de impacto ambiental zero, mas que neste momento custa mais caro”, comenta Edimário Oliveira Machado, diretor da rede de postos de serviço. A aposta é que, com a expansão da oferta, o preço diminua gradativamente.
Enquanto isso, os fabricantes se esforçam para desenvolver baterias com maior durabilidade e que demorem menos tempo para ser recarregadas, o principal desafio tecnológico para que os veículos elétricos possam dominar as ruas. O segredo pode estar no material empregado. As que utilizam ácido-chumbo são as mais comuns, colocadas nos carros de combustão interna, mas seu desempenho não é tão satisfatório para os elétricos, principalmente em locais de temperatura mais baixa. As de íons de lítio, do tipo usado em laptops e celulares, podem ser a melhor opção, mas o tamanho dos modelos desenvolvidos para automóveis e o tempo elevado de recarga pesam contra elas. “Os motores elétricos, em comparação com os de combustão, têm manutenção muito mais simples e fácil. A bateria é o grande problema e pode ser que demore um pouco mais para encontrarmos a solução. Mas também é possível que sejamos surpreendidos por alguma invenção, porque o incentivo à pesquisa nos Estados Unidos, Inglaterra, Japão e outros países desenvolvidos é bem maior que no Brasil”, diz Erber.
As montadoras, por sua vez, apostam em um tipo de “combustível elétrico”, as células de hidrogênio – o elemento mais abundante na Terra –, que também não emitem gases poluentes. Essa fonte de energia seria ainda mais benéfica, porque os carros não precisariam da eletricidade que, em alguns casos, pode ser gerada pela queima de óleo diesel e carvão mineral. O problema é que essa tecnologia, além de extremamente cara, ainda não alcançou a mesma eficiência das outras opções. Paine afirma em seu documentário que a estratégia dos fabricantes de alardear o hidrogênio como a solução para o futuro é apenas uma artimanha para adiar ao máximo o fim do que classifica como “vício do petróleo”.
O fato é que, até agora, não existe no mercado nenhum veículo que funcione exclusivamente com energia elétrica capaz de desafiar os queimadores de gasolina. A indústria automobilística ainda está no meio do caminho, oferecendo os chamados híbridos, equipados com um propulsor elétrico e outro convencional, o que lhes permite percorrer maiores distâncias sem precisar reabastecer, mas não resolve o problema das emissões. O mais antigo e conhecido nesse segmento é o Prius, da Toyota, cuja versão básica é vendida por quase R$ 80 mil. “Hoje, os veículos elétricos ainda apresentam pouca autonomia e velocidade máxima reduzida. Para que o projeto não seja muito caro para o consumidor final, também é necessário testar mais a confiabilidade e durabilidade da tecnologia. Temos de pensar ainda na questão dos reparos. Imagine como seria, hoje, levar um carro elétrico ao mecânico de seu bairro para um conserto”, diz Cavaliere, da Fiat.
O desafio brasileiro
Poucos sabem que o Brasil já teve um carro totalmente elétrico, desenvolvido na década de 1970, e cujo fim foi parecido com o do EV1 americano, embora sem nenhuma solenidade fúnebre. Criado pelo engenheiro João Conrado do Amaral Gurgel, fundador da montadora nacional que levava seu nome, o Itaipu tinha carroceria de fibra em forma de trapézio e lugar para o motorista e um passageiro. O pequenino veículo deveria ser lançado em 1975, na cidade paulista de Rio Claro, embalado pela crise do petróleo em todo o mundo, e custaria o equivalente a um Fusca 1300, um dos modelos mais populares da época, mas não passou da fase dos protótipos. A baixa autonomia e a necessidade de esperar dez horas pela recarga da bateria foram fatores decisivos para o fracasso da iniciativa. Gurgel ainda tentou, no começo da década de 1980, produzir um furgão elétrico, mas o destino final do projeto não foi diferente.
Atualmente, a maior dificuldade para desenvolver um veículo elétrico brasileiro é a inexistência no mercado nacional de empresas que fabriquem a maioria das peças necessárias. Além disso, a alta tributação praticamente impede a criação de um projeto que seja competitivo. Enquanto a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), no caso de um modelo popular convencional, é de 7%, a dos elétricos é de 25%. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, solicitou ao presidente Lula uma revisão desses percentuais no final do ano passado, mas ainda não houve resposta. “A tributação é muito alta. O governo está atento a essa questão e já iniciou reuniões com as montadoras para entender melhor o assunto”, conta Cavaliere. Os defensores dos carros elétricos alegam que a renúncia fiscal seria compensadora, por incentivar a entrada de vez de fabricantes de veículos, motores e baterias no mercado, levando-os a aumentar o investimento em pesquisas. Eles observam também que, como a frota ainda é bastante reduzida no país, o impacto na arrecadação seria mínimo, bem menor que o causado pela redução do IPI concedida no ano passado como medida para combater os efeitos da crise econômica global.
Segundo os especialistas, nem a argumentação de que um aumento exponencial da frota de veículos elétricos seria a gota d’água para criar o caos no sistema elétrico brasileiro faz sentido. “Se todos os 60 milhões de veículos fossem trocados de uma vez, o consumo de energia no país aumentaria 30%. Não é uma elevação tão preocupante”, argumenta Novais. Isso porque a recarga das baterias seria feita fora dos horários de pico e sem perdas – a quantidade de energia não utilizada continuaria armazenada nos carros.
Além disso, mesmo que seja necessário usar combustível fóssil para ampliar a geração de energia, haverá benefícios ambientais. De acordo com cálculos feitos pela equipe de Itaipu, se um barril de petróleo fosse queimado em uma usina termelétrica, a quantidade de eletricidade produzida faria o carro elétrico percorrer o dobro da distância coberta por um veículo convencional com a mesma quantidade de combustível em seu tanque. A julgar pelos esforços dos cientistas e das indústrias em todo o mundo, pelos benefícios para o meio ambiente e pelas vantagens econômicas, é possível imaginar que, em breve, o setor automobilístico passe por um choque. Resta apenas saber se o espírito do veículo elétrico, dessa vez, terá força para sobreviver aos interesses comerciais das indústrias que cresceram com o aumento do consumo de petróleo e à inércia de motoristas ainda pouco sensíveis aos apelos ambientais e acostumados, há mais de um século, a queimar gasolina para conseguir se locomover.