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Bons ventos para a navegação

Medidas oficiais e encomendas da Petrobras favorecem construção de navios

NILZA BELLINI


Navio-sonda / Foto: Divulgação

Se existe um negócio que parece ir de vento em popa no Brasil é o dos portos e da indústria naval. Não havia tanta expectativa positiva no setor desde que Juscelino Kubitschek criou o Fundo da Marinha Mercante (FMM), em 1958, e manteve como sua principal fonte de financiamento a Taxa de Renovação da Marinha Mercante (TRMM), calculada sobre o peso das mercadorias importadas e exportadas.

No caso atual, o otimismo é explicado, entre outros motivos, pela demanda, por parte da Petrobras Transporte S.A. (Transpetro), de mais de 350 embarcações e 50 plataformas de petróleo, nos últimos cinco anos. Paralelamente, o governo também concedeu diversos incentivos, como isenções fiscais e financiamento para estaleiros e armadores, e criou o Fundo de Garantia para a Construção Naval (FGCN), além de ter elaborado políticas para a atração de investimentos e de parceiros tecnológicos estrangeiros.

Embora as perspectivas pareçam muito boas, o segmento continua, por outro lado, a ser insignificante no cenário internacional. A frota brasileira representa apenas 0,6% da marinha mercante mundial e o país detém somente 0,1% da produção naval. Os portos estão sucateados, a indústria de navipeças foi praticamente desmontada nos anos 1990 e não existe, ainda, uma política nacional coesa que interligue toda a cadeia de suprimentos. São tantos os problemas que o vento favorável pode virar, se não forem concretamente solucionados.

O transporte marítimo é – e sempre foi – um dos sistemas mais importantes para a indústria e o comércio do país. O maior avanço da indústria naval na história do Brasil moderno, porém, ocorreu faz mais de meio século. “Isso aconteceu em 1958, na época de Kubitschek, com a instalação, no Rio de Janeiro, do Estaleiro Ishibrás, de origem japonesa, e, em Angra dos Reis, do Estaleiro Verolme, de origem holandesa”, explica Alcides Goularti Filho, doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Todo o dinheiro para o setor vinha da TRMM, que existe até hoje com a mesma finalidade, rebatizada como Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM). Depositados no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), os valores dessa taxa são administrados por um conselho diretor nomeado pelo Ministério dos Transportes.

A queda

Entre as décadas de 1960 e 80 o Brasil chegou a ser o segundo maior construtor de navios do mundo, perdendo apenas para o Japão. Foi determinante para esse sucesso a disponibilidade, no país, de aço e componentes elétricos, fabricados pelas recém-inauguradas siderúrgicas estatais e pela indústria eletrometalomecânica em expansão. Esse cenário começou a mudar no início dos anos 1980 e, no final do século 20, a indústria naval brasileira estava completamente sucateada. Destacou-se como elemento para essa degradação o escândalo da Sunamam (Superintendência Nacional da Marinha Mercante), hoje extinta. Durante a presidência de João Baptista Figueiredo, a indústria naval brasileira era altamente subsidiada pelo governo federal. Funcionários da Sunamam e de outros setores da administração, em conjunto com armadores e construtores navais, fraudaram contratos e desviaram bilhões em dinheiro público – escândalo que levou inclusive ao suicídio o industrial Paulo Ferraz, presidente do Estaleiro Mauá.

Daí em diante, os subsídios para a indústria naval foram cortados, a gestão do Fundo da Marinha Mercante foi transferida para o BNDES e a indústria naval entrou numa grave crise. A produção despencou drasticamente e muitos dos estaleiros foram fechados. O último grande navio produzido no Brasil, o Livramento, foi entregue em 1996. “Os efeitos da política neoliberal adotada nos anos 1990 atingiram diretamente a marinha mercante e a indústria da construção naval brasileira”, explica Goularti. “Se com o escândalo da Sunamam o setor da navegação já seguia uma trajetória de crise, a recessão e o desmonte do Estado quase extinguiram a indústria da construção naval e os armadores nacionais”, observa.

O renascimento

As notícias do ressurgimento da indústria naval brasileira começaram a aparecer na mídia em 2004, em função de dois fatores: o lançamento da primeira etapa do Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef) e o início da construção do Estaleiro Atlântico Sul (EAS), o maior e mais moderno deste hemisfério.

O Promef já está na segunda fase. A primeira, com edital de 2005, anunciou a compra de 26 navios. O Promef II, iniciado em 2008, inclui, entre outras encomendas, a de sete grandes petroleiros de posicionamento dinâmico (DP, na sigla em inglês), que, pela primeira vez, serão fabricados no Brasil (o DP permite que a posição e as manobras do navio sejam controladas automaticamente por meio de sensores e por GPS, o que torna o processo de atracação muito mais eficiente). O programa prevê também a compra de gaseiros, navios de apoio marítimo (offshore) e de mais uma plataforma de petróleo. O cronograma de entrega das encomendas da fase I vai de 2010 a 2013. Já os navios da fase II devem estar prontos entre 2011 e 2014.

As perspectivas atuais entusiasmam Sérgio Leal, secretário executivo do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), instituição que representa os estaleiros brasileiros instalados em diversas regiões do país. O BNDES estima investimentos de R$ 55 bilhões na indústria naval e de apoio à exploração marítima de petróleo nos próximos anos. No final de dezembro, o Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante, que também licencia agentes financeiros para o setor, definiu os 161 projetos prioritários (155 de novas embarcações e seis para construção ou ampliação de estaleiros) que receberão verbas no valor total de R$ 14,2 bilhões, provenientes do AFRMM.

Os projetos de estaleiros poderão consumir até R$ 4,3 bilhões, com destaque para a construção de duas unidades na Bahia, uma no Ceará, uma em Alagoas e mais duas no Rio Grande do Sul. Além disso, outros R$ 5,2 bilhões serão destinados a embarcações de apoio marítimo, R$ 1,3 bilhão ao transporte de carga, R$ 3 bilhões a projetos da Transpetro, R$ 42,9 milhões a obras no interior, R$ 80,7 milhões a apoio portuário e R$ 177,4 milhões a diversos propósitos. São números gigantescos.

“Isso não quer dizer que todos os navios e estaleiros serão construídos imediatamente”, ressalva Sérgio Leal. “Esses projetos, definidos como prioritários pela comissão, devem passar agora por uma série de outros estudos técnicos e financeiros para que tudo seja concretizado”, diz. Os agentes habilitados são o Banco do Brasil, o BNDES, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste e, em processo de autorização, a Caixa Econômica Federal. Essa análise, que também define o cronograma financeiro, pode durar mais de um ano.

“A renovação da frota prestadora de serviços para a Petrobras também já exigiu a reabertura de estaleiros paralisados e a abertura de novos parques industriais de pequeno e médio porte”, diz Leal. Segundo ele, esses empreendimentos representaram, nos últimos dois anos, a oferta de 46 mil empregos diretos e 230 mil indiretos. Grandes grupos econômicos, como Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e OAS, em associação com estrangeiros, estão envolvidos na construção de estaleiros. Em Pernambuco, o Estaleiro Atlântico Sul, com investimentos de R$ 1,6 bilhão, já está praticamente concluído e opera desde setembro de 2008.

O abstrato e o concreto

Embora as expectativas de profissionais do setor sejam muitas e todas positivas, é importante destacar que os números relativos a navios com conteúdo nacional anunciados pelo governo e pela Petrobras podem não vingar, porque ainda não existe uma política industrial brasileira capaz de abranger toda a cadeia produtiva.

Segundo o professor Floriano Carlos Martins Pires Junior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que trabalha com desenvolvimento de sistemas integrados para acompanhamento e supervisão de projetos de construção naval e monitoramento e análise de risco, China, Coreia e Japão, líderes mundiais no setor, conseguem construir navios num prazo muito acelerado, com produtividade e custo muito mais baixo do que são capazes, neste momento, os brasileiros, porque os asiáticos dominam tecnologias de processo. Nesses países, a indústria naval está afiada em todos os seus aspectos.

Os estaleiros de nosso país não fazem planejamento nem sequenciamento das etapas necessárias para um eficaz e moderno desempenho da construção naval, como acontece no restante do mundo. A China, que importa a maior parte de seus insumos da Alemanha, Japão e Coreia, prioriza essa tecnologia. O estaleiro brasileiro que mais se aproxima de um padrão razoavelmente eficaz nesse aspecto, segundo o professor Floriano, é o EAS, que utiliza tecnologia licenciada de sua parceira coreana, a Samsung Heavy Industries.

Outro aspecto fundamental para a conquista da eficiência, segundo os estudiosos, é a modernização da indústria de navipeças nacional. No caso do Japão, por exemplo, o percentual nacional dos componentes de seus navios atinge 98% e é grande o volume de exportação desses itens. Os navios coreanos têm 90% das peças fabricadas no próprio país. No Brasil, ao contrário, a cadeia de navipeças está praticamente desmantelada, mas começou a ganhar novo fôlego com a inclusão no edital de licitação de plataformas da Petrobras da exigência de pelo menos 60% de conteúdo nacional, relata Júlio Vicente Rinaldi Favarin, do Centro de Estudos em Gestão Naval, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). A primeira dessas plataformas construídas aqui foi a P-51, semissubmersível, inaugurada em janeiro de 2009 e instalada na bacia de Campos. “Temos, porém, grandes desafios pela frente, entre os quais reconstruir a cultura de fornecimento por empresas nacionais para a indústria naval. Os armadores e estaleiros ainda não mantêm especialistas para avaliar as possibilidades concretas da indústria brasileira”, diz Favarin. Entre as metas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior está aumentar o uso de navipeças nacionais para 85%. Para isso, no entanto, terá de haver profunda modernização da estrutura industrial. “Vivemos o ápice das encomendas, mas ainda não da produção. A partir de agora os fornecedores de conteúdo nacional devem acreditar que os investimentos compensam”, acrescenta o especialista.

Outro sério problema apontado pelo professor Floriano, da UFRJ, diz respeito aos recursos humanos. A quantidade de navios encomendada pela Petrobras, segundo ele, é muito grande para a disponibilidade atual. É preciso que o treinamento de pessoal receba investimentos contínuos a médio e longo prazos, e isso ainda não está acontecendo. A demanda é grande e o nível de complexidade, alto. Embora a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia, tenha apoiado propostas voltadas para a indústria naval nos últimos quatro anos, as dificuldades persistem. Diante da situação, os próprios estaleiros têm oferecido treinamento a engenheiros navais recém-formados. É pequena também a disponibilidade de mão de obra técnica e operacional de nível médio e básico. O Estaleiro Atlântico Sul, por exemplo, tenta atrair do Japão 200 decasséguis brasileiros para vagas de soldadores. O principal critério de seleção é experiência comprovada na indústria naval e de construção de plataformas petrolíferas. O objetivo é evitar custos de treinamento e ganhar tempo.

A questão dos portos

A lei 8.630, de 1993, que tornou possível a privatização dos terminais, permitiu o atendimento da crescente demanda por transporte marítimo de carga sem muito investimento público durante quase 15 anos. Nos últimos três anos, porém, esse modelo se esgotou. A construção de novos terminais fora dos portos públicos, que começou a ser feita sem legislação, gerou conflitos entre empresas concorrentes. O fim da crise veio com o decreto 6.620, de 29 de outubro de 2008, que redefiniu as políticas para o desenvolvimento e o fomento do setor de portos e terminais marítimos. “O decreto garante a melhoria de diversos portos brasileiros com investimentos da iniciativa privada, mas muitos de seus artigos e parágrafos precisam ser normatizados”, diz Alfonso Gallardo, também do Centro de Estudos em Gestão Naval da Poli-USP. Segundo o ministro Pedro Brito, da Secretaria Especial de Portos (SEP) da Presidência da República, já se estima que US$ 20 bilhões serão investidos pela iniciativa privada nesse setor nos próximos cinco anos.

Gallardo diz ainda que o aprofundamento da calha para dar acesso a navios de maior calado, um dos requisitos principais na modernização dos portos, está acelerado, principalmente no caso de Santos (SP). “Investimentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) têm permitido ampliar a profundidade, que varia de 12 a 14 metros, para 15, e a largura do canal de navegação de Santos de 150 para 220 metros”, explica. “Isso vai permitir o trânsito simultâneo de embarcações e dar ao porto condições de receber navios de grande porte.”

Dessa maneira, Santos voltará a ser o mais eficiente porto concentrador de cargas até o final de 2010. A área de influência desse terminal é formada por São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a região mais rica do país, responsável pela geração de cerca de 50% do PIB e das exportações brasileiras.

Com isso, se todas as promessas e expectativas se concretizarem e os desafios tecnológicos forem vencidos, o Brasil voltará a ser, nos próximos anos, referência internacional no estratégico setor naval. Cientistas, industriais e armadores torcem e, mesmo com ressalvas, acreditam que assim será.


Um laboratório de Primeiro Mundo

O mais moderno laboratório naval da América Latina está instalado no Centro de Engenharia Naval e Oceânica (Cnaval), uma das nove unidades do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em São Paulo. Um investimento de R$ 9,5 milhões – 90% da Petrobras e 10% da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia – permitiu reformular suas instalações, de quase 50 anos.

Cerca de R$ 5,5 milhões desse total foram utilizados pelo IPT na compra de equipamentos, como um impressionante braço robótico que ajuda a construir modelos de embarcações em escala, substituindo os antigos feitos por marcenaria. O braço economiza tempo e permite que as miniaturas sejam esculpidas em poliuretano. O restante dos recursos destinados ao IPT foi aplicado em obras civis, como a troca da cobertura do tanque de provas e a renovação e ampliação das áreas técnicas do centro. Com 280 metros de comprimento, 6,6 metros de largura e 4,5 metros de profundidade, o tanque se destina ao teste das miniaturas, que simulam o comportamento do navio verdadeiro depois de pronto. Entre os destaques tecnológicos do laboratório está o novo gerador de ondas para o tanque.

A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) também recebeu investimentos da Petrobras, que reserva 1% de seu faturamento para pesquisas tecnológicas na área de petróleo. Na Poli foi inaugurado o primeiro tanque de provas virtual do mundo, com tecnologia 100% brasileira. Esse modelo, chamado Tanque de Provas Numérico, é um simulador de plataformas e estruturas flutuantes de exploração marítima de petróleo e gás. Ele é capaz de incluir elementos como vento, ondas e correntes marítimas nos testes realizados. Utiliza um conjunto de 60 computadores que, juntos, podem processar 21 bilhões de operações por segundo e as transformam em informações em 3D estéreo. Na sala de visualização, as cadeiras simulam os movimentos da plataforma, o que permite aos técnicos verificar se seriam suportáveis ou provocariam mal-estar. Utilizando também dados matemáticos, os pesquisadores avaliam, assim, se o local escolhido para a plataforma é o mais indicado, se a estrutura é adequada para as condições de vento e correntes marítimas e diversos outros fatores. Os softwares usados foram desenvolvidos pela equipe da Poli. O estudo se completa com ensaios experimentais feitos num tanque físico de provas.

 

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