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Motos invadem as ruas das cidades
Apesar da queda nas vendas, país atrai fábricas de motocicletas
MIGUEL NÍTOLO
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Como aconteceu em anos passados com a montagem de carros, que já comeu muita poeira por causa dos humores da economia, a indústria brasileira de motocicletas esteve às voltas com um revés fenomenal em 2009. Depois de anos seguidos de crescimento, ela amargou uma queda de produção da ordem de 33,8%. A redução das vendas, quase sempre concretizadas através do crédito direto ao consumidor, modalidade comercial que foi diretamente afetada pela crise de setembro de 2008, é, de longe, a grande responsável pelo estrago. Segundo a Abraciclo, a entidade que reúne os fabricantes de veículos de duas rodas, a oferta do setor, que alcançara 2.325.436 unidades em 2008, caiu para 1.539.473, um recuo que assustou as pessoas que vivem desse mercado e acendeu o sinal amarelo em Brasília. O Ministério da Fazenda tratou logo de reativar os ânimos com a renovação da isenção de cobrança da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) para motocicletas de até 150 cilindradas – correspondentes a 90% das vendas –, que havia expirado em setembro do ano passado e começou a vigorar novamente em 1º de janeiro, estendendo-se até 31 de março deste ano. Ao anunciar a importante decisão, no final de 2009, o ministro Guido Mantega informou que a desoneração implica a renúncia fiscal de R$ 54 milhões. E aproveitou para dizer que os fabricantes se comprometeram a manter os empregos nesse período.
O estímulo às vendas de motos ganhou ainda um outro reforço de peso. A Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil disponibilizaram uma linha de crédito da ordem de R$ 3 bilhões para o financiamento desses veículos. O expressivo montante reservado pelos dois maiores bancos oficiais reflete a importância do crédito ao consumidor no comércio de motocicletas. Nos primeiros seis meses do ano passado, por exemplo, 45% das transações foram celebradas através de empréstimos concedidos ao cliente, tendo restado ao consórcio 32% e ao pagamento à vista 23%. Em 2008 esses percentuais foram, respectivamente, de 60%, 22% e 18%.
É possível que o socorro governamental não tivesse o mesmo vigor se o setor não apresentasse o potencial de crescimento que mostra atualmente. Pouco mais de uma década atrás era apenas um ramo industrial como tantos outros, mas, de uns tempos para cá, a indústria de motos assumiu reconhecida importância no contexto fabril brasileiro, desempenhando um papel relevante como fomentadora de empregos, tecnologia e valores. Hoje o Brasil ocupa a quarta posição no ranking mundial do setor, atrás da China, Índia e Indonésia, nações onde a motocicleta é, muitas vezes, a única alternativa de transporte para as classes trabalhadoras.
Para se cientificar do tamanho do avanço experimentado pela indústria de motocicletas em território brasileiro é preciso olhar para trás, por cima das últimas duas décadas. Em 1990, quando eram apenas três os fabricantes associados à Abraciclo (Agrale, Honda e Yamaha), foram montadas 146 mil motos. Dez anos mais tarde, as quatro marcas então em atividade (Cofave, Caloi, Honda e Yamaha) colocaram no mercado 645 mil unidades. Dali em diante, até a queda registrada no ano passado, os números de produção do setor só conheceram bons resultados: 753 mil motocicletas em 2001, 862 mil em 2002, 955 mil em 2003, 1 milhão em 2004, 1,2 milhão em 2005, 1,4 milhão em 2006 e 1,7 milhão em 2007. Em 2009, sempre com base em dados fornecidos pela Abraciclo, totalizavam dez as montadoras ligadas à entidade, todas com linhas de produção em Manaus: Bramont, Dafra, Harley-Davidson, Honda, Kasinski, Kawasaki, Sundown, Suzuki, Traxx e Yamaha.
A pujança desse segmento, notória a despeito do desastre do exercício passado, tem motivado outras fábricas ainda não presentes no Brasil a considerar a hipótese de se estabelecer aqui. Especula-se mesmo que até agora dez empresas já teriam demonstrado esse interesse, investida que, se confirmada, poderá elevar a capacidade produtiva anual para 3 milhões de unidades até 2013. Um exemplo do fascínio exercido pela indústria brasileira de motos e seu potencial de crescimento culminou, meses atrás, com a aquisição da brasileira Kasinski pela chinesa CR Zongshen, montadora de veículos e uma das quatro grandes fabricantes de motocicletas do planeta. Foi a primeira vez que uma fábrica de fora assumiu a totalidade do controle de uma firma nacional do ramo. “Entendo que é de suma importância destacar que se inicia aqui um processo de consolidação do mercado com a participação de empresas que são reconhecidamente produtoras mundiais de motocicletas”, afirma Cláudio Rosa, presidente executivo da CR Zongshen. Ele revela que a capacidade instalada de produção da filial brasileira será de 90 mil unidades/ano por turno e que ela também fabricará motores estacionários e de popa.
Estimativas
Para chegar à oferta que se espera para daqui a alguns anos será preciso, antes, retomar rapidamente o terreno perdido em 2009. Em 2010, por exemplo, há estimativas de montagem de 1,8 milhão de motos e de comercialização de 1,88 milhão de unidades (os estoques dos lojistas se mantiveram sensivelmente elevados nos últimos meses), projeção feita a partir de um cenário com crescimento do PIB da ordem de 5%, juros na casa de 9% e inflação contida em 4,5%. Espera-se, também, que as exportações retomem o caminho trilhado até 2008 e cujos gráficos apontavam para cima. Em 2009 foram comercializadas no exterior 60.516 motos (45.310 pela Honda e 15.206 pela Yamaha), um recuo de 50% em relação ao ano anterior, quando teriam sido embarcadas 131.720 unidades (101.315 e 30.405, respectivamente).
É no plano interno, porém, que reside o naco mais gordo do faturamento do setor. É sabido que as vendas são sacramentadas com pessoas que consideram a moto uma boa alternativa aos transportes públicos (40%), uma ótima opção de lazer (19%), uma importante ferramenta de trabalho (16%) e um substituto ideal para o carro (10%). Os 15% restantes dizem respeito a outras aplicações. Esse perfil de consumo e a enorme frota circulante deram vida a uma estrutura funcional que, de certa forma, espelha o prestígio alcançado por essa indústria. A cultura da motocicleta é uma verdade inquestionável que ganha terreno no Brasil e é movida, especialmente, por três poderosos trunfos: economia de combustível, facilidade para estacionar e deslocamento rápido no meio do caos em que se transformou o trânsito nos grandes centros.
“Na cidade de São Paulo somos algo em torno de 1,1 milhão e no estado 5 milhões”, diz Lucas Pimentel, presidente da Associação Brasileira de Motociclistas (Abram), referindo-se à quantidade de motos em uso. Já em todo o Brasil, conforme depoimento de Valdenir dos Santos Galvão, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes e Atacadistas de Motopeças (Anfamoto), “o número de motocicletas em circulação com até 15 anos de idade é de 13,3 milhões de unidades, boa parte delas destinadas às atividades de transporte e serviços”.
Graças a esses números, hoje, as revendas, lojas de motopeças e oficinas especializadas no conserto de veículos motorizados de duas rodas integram a paisagem da maior parte das cidades brasileiras, coisa impensável em anos anteriores. Essa expansão motivou o surgimento de uma indústria local de peças e componentes que não para de crescer, conferindo ao ramo de motocicletas a força e a evidência de que desfruta atualmente. “A Anfamoto congrega, atualmente, em torno de 250 empresas, 60% delas do ramo manufatureiro e 40% dos segmentos atacadista, varejista e de representação”, esclarece Galvão. Segundo ele, a demanda anual por peças e acessórios de motos se traduz num faturamento da ordem de R$ 7 bilhões, possibilitando às empresas que operam na área contabilizar 1,3 milhão de empregos diretos e indiretos.
O fato é que à medida que o universo sobre duas rodas vai se expandindo, muda, na mesma proporção, a face das vias públicas. Considerando que as motos adquiridas especificamente para levar as pessoas ao trabalho passam a maior parte do tempo estacionadas, assim como, em geral, as utilizadas apenas para o lazer, está claro que os veículos comprados para prestar serviço nas ruas traduzem, com maior precisão, a força do setor, porque são mais visíveis aos olhos dos cidadãos. Eles são encontrados atravessando as cidades de um lado para o outro, várias horas ao dia, atendendo a chamados, realizando entregas de encomendas e fazendo o transporte de passageiros nas localidades onde essa atividade é permitida. “Segundo estimativas de 2008, chega a cerca de 70 mil o número de motoboys só no município de São Paulo, 250 mil no estado e 700 mil em todo o país”, relata Rogério dos Santos Cadengue, presidente do Sindicato das Empresas de Distribuição das Entregas Rápidas do Estado de São Paulo (Sedersp). “Esse número, porém, deve ter aumentado muito, devido ao rápido crescimento do segmento de entregas rápidas, que é proporcional à piora das condições de trânsito nas grandes cidades”, ele diz. Na verdade, cálculos mais encorpados sobre a quantidade de motoboys na capital paulista resultam em números que vão de 150 mil a 200 mil, chegando a cerca de 1 milhão no Brasil.
É um negócio que não para de crescer e de atrair interessados porque, a despeito das peculiaridades que envolvem o uso da moto como ferramenta de trabalho, ela é, na maior parte dos casos, o ganha-pão de famílias inteiras. “Moram comigo sete pessoas – mulher, filhos, genro e netos –, que sustento com o trabalho de motoboy desde 2003”, diz Antonio Carlos Biscaino, que também é dono de oito motocicletas que aluga a outros motoboys. Ele conta que trabalha diariamente das 6 às 24 horas e, nos finais de semana, 24 horas corridas. Biscaino, de 50 anos de idade, trilhou um longo caminho até se tornar motociclista. “Fui caminhoneiro durante 20 anos e cheguei a ser dono de duas carretas, com as quais cobria o percurso do bairro de Vila Maria, em São Paulo, a Belém do Pará, no nordeste”, relata ele. No início da década passada, quando o carreto deixou de ser interessante financeiramente, ele se desfez dos veículos e aproveitou o ensejo para se fixar comercialmente no interior de São Paulo. “Não sabia o que fazer até que a oportunidade de trabalhar como motoboy bateu em minha porta”, comenta.
Motogirls
Definitivamente, a motocicleta veio abrindo novos nichos de mercado de norte a sul do país. “Em Porto Alegre somam mais de 70 mil os motociclistas e, desse total, pode-se afirmar, 10 mil são motoboys que atuam na capital e na região metropolitana trabalhando essencialmente com a tele-entrega”, conta Leandro Balardin, presidente da Associação dos Motociclistas do Rio Grande do Sul (AMO-RS).
É errado pensar que o trabalho de entrega rápida é uma atividade exclusiva do homem. Como em todas as áreas, também aqui as mulheres estão mostrando do que são capazes. As estatísticas da Abraciclo não deixam dúvidas quanto a isso: hoje, 25% das motos novas são adquiridas por elas. Vem de Porto Alegre a história de uma mulher que, ao guidão de uma motocicleta, fez sucesso como motogirl e, agora, se projeta como empresária do ramo – um exemplo que vem se repetindo em basicamente todos os cantos. Há sete anos Ana Laura de Souza Baroni, a Alemoa, usa a moto profissionalmente. A princípio fazia o transporte de encomendas, documentos e pequenos volumes, além de realizar serviços bancários e de cartório, um trabalho em que ingressou pelas mãos do marido, que era motoboy e a presenteou com o curso de direção e uma motocicleta cor-de-rosa.
Alemoa ou Moa, como também é chamada, diz que encarou o desafio para não fazer feio e acabou descobrindo que tem vocação para a coisa. “Superei o preconceito, consegui o respeito da classe e da população e, hoje, sou bastante popular em Porto Alegre”, diz Ana Laura. Alemoa repartiu o trabalho de motogirl com outras meninas e se envolveu com um outro negócio que também requer os préstimos da motocicleta. “Entrei no ramo de brindes, e muitos dos clientes de agora foram meus fregueses no tempo da tele-entrega”, afirma ela. A motogirl de Porto Alegre não passou incólume nesses anos todos no meio do trânsito infernal da cidade. “Em 2007, me acidentei. Era uma sexta-feira, final de tarde, quando todos estão ávidos para chegar logo em casa. O farol abriu, eu acelerei, mas o carro que vinha na transversal simplesmente não parou”, ela relata. Ana Laura diz que quebrou o braço e machucou os joelhos, as mãos e o pulso. “Fiquei quatro meses de molho e amarguei um enorme prejuízo”, conta.
Periculosidade
Acidentes com motocicletas viraram uma triste rotina, especialmente nas grandes cidades. “O desemprego, a falta de qualificação profissional, a facilidade na aquisição da motocicleta e a situação de autônomo, tudo concorre para fazer o indivíduo ingressar nesse mercado de trabalho que, inicialmente tido como temporário, por falta de outras opções pode acabar se transformando em definitivo”, observa Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). “Com isso, a categoria profissional passa a agrupar cada vez mais motociclistas e aumenta a frota de veículos, mas os espaços para o trânsito são os mesmos”, ele diz. Alves Júnior destaca que a falta de medidas preventivas governamentais, a convivência problemática entre motoristas e motociclistas, a escassa conscientização do motoqueiro quanto aos riscos a que está submetido, a ausência de treinamento continuado e do uso de equipamentos de segurança, além da inexistência de pista de rolamento própria, são alguns dos motivos que têm contribuído para encorpar as estatísticas de acidentes no trânsito. “A imperícia, a negligência e a imprudência, responsáveis por 90% dos acidentes, são fatores sempre presentes, mas não podemos deixar de frisar que a pressa para dar cabo do trabalho, a marca registrada da atividade de motoboy, também é um agente desencadeante”, salienta. O especialista da Abramet revela que 70% dos acidentes com moto resultam em morte e lesões graves, e 73% dos acidentados sofrem fraturas de membros inferiores.
O que fazer para mudar esse quadro? “É um prazer enorme trabalhar sobre uma motocicleta, mas há um lado negro que nos assusta muito”, pontifica Leandro Balardin, o presidente da AMO-RS, que se diz penalizado com o fato de, volta e meia, amargar o recebimento de notícias a respeito da ocorrência de acidentes com amigos e mesmo parentes. Balardin conhece bem essa dor. No dia 12 de janeiro último ele perdeu a filha em um acidente de moto. “Ela estava na carona da motocicleta de seu namorado, que teve a frente cortada por um veículo”, relata.
Preocupadas com o grande número de acidentes, algumas empresas estão colocando tacógrafos em suas motos ou advertindo e mesmo demitindo funcionários que levam multas por excesso de velocidade. Outras preferem oferecer cursos de treinamento e de segurança. Paralelamente, especialistas salientam a importância de construir motovias. Já o deputado federal Carlos Zarattini, de São Paulo, optou por apresentar um projeto de lei para proibir a circulação de motos pelos corredores entre os carros em movimento e limitar sua velocidade a 30 quilômetros por hora quando o trânsito estiver parado.
“O número de acidentes com motocicletas aumenta cada vez mais e é a principal causa das mais de 35 mil mortes no trânsito anualmente no Brasil”, justifica-se Zarattini. É claro que os motociclistas, especialmente os motoboys, não gostaram. “O projeto é inócuo e não traz nada de novo, pois o Código de Trânsito Brasileiro já proíbe o tráfego de motos entre os carros”, diz Santos Cadengue, o presidente do Sedersp, acrescentando que, nas grandes cidades, a velocidade de deslocamento oferecida pelos motoboys é uma necessidade. Zarattini se defende com o argumento de que “mesmo com as restrições, as motos ainda serão mais rápidas que os automóveis e os caminhões”. O controvertido projeto de lei se encontra em regime de urgência para ser votado no plenário da Câmara dos Deputados. Posteriormente, deverá passar pelo Senado e, provavelmente, retornar à Câmara. “Acredito que isso possa demorar pelo menos um ano”, calcula Zarattini.