Postado em
Enem: será o fim do vestibular?
Exame criado para avaliar ensino médio vive crise de identidade
SILVIA KOCHEN
|
Apesar de ter recebido cerca de 4,1 milhões de inscrições em 2009, em sua última edição, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é um programa que ainda não foi devidamente avaliado pela sociedade. Criado em 1998 para medir o desempenho do estudante ao fim do período de escolaridade básica, tinha como proposta inicial formar um banco de dados para a elaboração de estudos e políticas educacionais no Brasil, além de oferecer uma referência de avaliação não só para o próprio estudante, mas também para seus futuros empregadores e as instituições de ensino onde ele buscasse continuar seus estudos. Passados 12 anos, o projeto foi alvo de um dos maiores escândalos na área de educação no Brasil e enfrenta uma série de críticas de especialistas, que dizem que é preciso (re)avaliar o Enem.
O projeto de criar uma ferramenta de avaliação ampla como o Enem teve seu início na reforma do Estado empreendida em 1995 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso com a meta de imprimir caráter gerencial à administração pública. Sob essa ótica, os serviços públicos deveriam se tornar eficientes e voltados ao atendimento das necessidades do cidadão, que passava a ser visto como uma espécie de consumidor. No ano seguinte, veio a reforma promovida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que incluiu o ensino médio na educação básica e instituiu como foco a criação de competências e a empregabilidade.
Segundo o professor João dos Reis Silva Junior, especialista em políticas públicas do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a nova lei estabelecia um modelo de ensino que privilegiava o adestramento para o trabalho em detrimento da formação para a cidadania. “A ideia era construir um cidadão útil, mudo e solitário, com conhecimento amplo, prático e raso; não havia a preocupação de criar um ser reflexivo.”
Um ano depois da nova LDB, foi instituído o Enem. O exame foi apresentado à sociedade como uma forma de avaliação das políticas educacionais que estavam sendo implantadas e, também, como um instrumento para que os próprios alunos pudessem estimar suas condições para dar continuidade aos estudos. Segundo o Relatório Final do Enem 1998, a prova deveria representar “um marco inovador nas avaliações educacionais do Brasil” e procurava sinalizar, aos participantes e educadores em geral, “as tendências e direções que a educação escolarizada deverá atender no próximo milênio”.
De acordo com a especialista em políticas públicas educacionais Nora Krawczyk, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Enem nasceu no bojo da ideia de que a avaliação é o mecanismo mais adequado para aprimorar a qualidade do ensino. “Há 30 ou 40 anos, acreditava-se que a ferramenta ideal para melhorar o ensino era o planejamento; há 20 anos, passou-se a usar a avaliação institucional como instrumento para promover melhorias.” Nesse contexto, surgiram vários mecanismos, voltados para todos os níveis escolares – além do Enem, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), com foco no quarto e no oitavo ano do primeiro grau, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), que avalia os alunos no final do primeiro ano e no término do curso universitário etc.
A primeira edição do Enem teve cerca de 157 mil inscritos, dos quais apenas 115 mil realmente fizeram as provas. Os resultados foram assustadores, pois 58,7% dos participantes acertaram no máximo 40% das questões objetivas de conhecimentos gerais e 37,8% tiveram desempenho considerado insatisfatório (com até 40% da pontuação) em redação. Com o tempo, a adesão ao exame do Enem foi crescendo, devido à sugestão do Ministério da Educação (MEC) de que as notas fossem usadas no processo seletivo de universidades. Paralelamente, a avaliação dos alunos também melhorou. Em 2007, último ano com dados consolidados, apenas 28% apresentaram desempenho considerado insuficiente na parte objetiva da prova e 14% obtiveram nota insatisfatória na redação. Esse progresso, porém, nem sempre é considerado de forma positiva. Na opinião de Silva Junior, ele apenas mostra que a implantação de determinado modelo de educação avançou, mas é preciso questionar se ele é adequado à população brasileira.
Opção ao processo seletivo
Foi somente em 2005, quando os resultados do exame passaram a ser critério para a distribuição de benefícios do Programa Universidade para Todos (ProUni), lançado naquele ano, que o Enem ganhou verdadeiro impulso. As inscrições saltaram de cerca de 1,5 milhão, no ano anterior, para 3 milhões. Desde então, muitas universidades passaram a utilizar a nota do Enem em seus processos vestibulares, o que foi visto como uma forma de democratizar o acesso à educação superior no Brasil.
A receptividade a esse sistema tem sido maior nas escolas privadas. Muitas oferecem ao aluno a possibilidade de utilizar a nota do Enem, em vez de fazer uma prova vestibular. A Universidade Anhembi-Morumbi, de São Paulo, por exemplo, há cinco anos usa o Enem como opção em seu processo seletivo, uma vez que, como explica o diretor pedagógico da instituição, Nelson Bomtempi, trata-se de “uma prova bem elaborada, e o aluno bem avaliado pelo Enem é bom”.
As universidades públicas, no entanto, demonstram certa resistência à avaliação do Enem. O professor João Cardoso Palma Filho, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), lembra que inicialmente a classificação das instituições produzida pelo Enem era criticada e até se falava em eliminar o exame, mas que a partir do lançamento do ProUni esse sistema de avaliação ganhou força e apoio popular.
Palma, que também é presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, não acredita que o Enem seja capaz de ajudar alunos menos favorecidos, oriundos de escolas públicas, a entrar em boas universidades. Sua argumentação baseia-se num estudo realizado pela Unesp em 2000 sobre o impacto dessa avaliação. “Em um universo de cerca de 5 mil vagas, apenas 17 estudantes se beneficiariam com a utilização da nota do Enem no lugar dos exames vestibulares usuais.”
O professor Silva Junior, da UFSCar, afirma que essa ideia de democratizar o acesso à universidade pública por meio do Enem é enganosa. “As boas universidades públicas resistem a aceitar a avaliação do Enem.” E acrescenta que, quando a utilizam, elas o fazem apenas como uma concessão ao MEC, com o objetivo de obter mais verbas para pesquisa.
O professor da Faculdade de Educação da Unicamp Luiz Carlos de Freitas, especialista em avaliação, também discorda dos que dizem que o Enem pode democratizar o acesso ao ensino superior, pois as desigualdades sociais já estão presentes antes mesmo de as crianças iniciarem sua vida escolar e é isso o que vai definir boa parte das oportunidades que terão na vida. Em sua opinião, as mudanças que acabam de ser anunciadas para o Enem, de uso da prova como uma espécie de vestibular nacional, constituem um retrocesso, pois determinam a vida acadêmica do aluno e responsabilizam a escola por seu fracasso ou sucesso.
A professora Nora, porém, coloca outra questão. “O Enem tem como objetivo avaliar competências e habilidades que devem ser adquiridas por todos ao longo do ensino médio, enquanto o vestibular tradicional privilegia a memória e questões não significativas”, diz. Segundo ela, o vestibular é um sistema elitista porque cria um círculo vicioso, já que o nível de exigência das provas é proporcional ao prestígio da universidade e os exames mais difíceis favorecem os jovens de elite, que podem pagar cursinhos para aprender a resolver pegadinhas.
Resultados localizados
A partir de 2006, o Enem passou a divulgar os resultados por escola, a pretexto de permitir uma intervenção mais localizada no ensino. O objetivo era possibilitar aos educadores de instituições com desempenho ruim trabalhar melhor os conteúdos em que os alunos não tinham ido bem. A medida gerou várias críticas. “Isso faz com que a ‘teoria da responsabilização’ funcione somente para baixo, nunca para cima”, diz Freitas, da Unicamp. Em outras palavras, dá a ideia de que os culpados pelos maus resultados são sempre os alunos e os professores, e não as pessoas que definem as políticas e diretrizes da educação nacional.
Segundo Silva Junior, da UFSCar, desde sua criação, o Enem tinha dois objetivos: um declarado e outro oculto. O primeiro era medir a eficiência e a qualidade da educação. O segundo era preparar o aluno para ser um bom empregado e, a partir do momento em que o Enem se propõe a avaliar não só os alunos, mas também as instituições, estas passam a se empenhar nessa tarefa.
“Essa meta oculta é perversa porque induz o aluno a se sentir culpado por não conseguir emprego, dando a entender que o problema seria de sua avaliação, quando a realidade é que a reestruturação da economia ceifou inúmeros postos de trabalho.” Para reforçar a concepção de que o desempenho no exame é uma questão individual, do aluno e das escolas isoladamente, e internalizá-la no corpo docente de instituições públicas, foram utilizados vários artifícios, como a concessão de prêmios e incentivos diversos a professores e diretores daquelas com melhor desempenho. “As consequências são nefastas para 90% da população, já que se busca formar um profissional e não um cidadão”, afirma Silva Junior.
Novo Enem
Em 2009, o MEC apresentou uma proposta de reformulação do Enem que tinha como ponto-chave tornar o exame um mecanismo unificado de seleção para o ingresso em universidades públicas federais. Os objetivos da proposta do novo Enem, segundo o MEC, eram democratizar o acesso ao ensino público de nível superior, permitir a mobilidade de alunos dentro do país (um estudante de Manaus, por exemplo, faz a prova lá para disputar uma vaga em universidade de qualquer lugar do Brasil) e “induzir a reestruturação dos currículos do ensino médio”.
Apesar de cerca de 500 instituições públicas federais de ensino superior terem aderido ao novo Enem, o professor Palma, da Unesp, se opõe à proposta de substituir o vestibular por esse exame, porque ele não foi criado com esse objetivo.
Na opinião do professor Silva Junior, da UFSCar, a utilização do Enem como critério para a concessão de bolsas do ProUni reforçou a ideia de que o ensino médio não é suficiente e que há necessidade de fazer um curso superior. Como resultado, afirma o especialista, “nas universidades federais, o sistema está se cindindo em dois núcleos: um formado por centros de excelência, que resistem a adotar a avaliação do Enem, e outro por escolas voltadas apenas a despejar profissionais no mercado.”
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, a nota do Enem tem um peso pequeno no vestibular de medicina. Contudo, ela é a única que conta na disputa por uma vaga de terapia ocupacional, um curso ministrado no campus de Santos, que concentra os menos nobres da instituição.
Quem disputa uma dessas vagas é a paulistana Marina Guin Otsuka Padovani Figueiredo, de 17 anos. Ela prestou vestibular para terapia ocupacional na Universidade de São Paulo (USP), uma das mais prestigiosas do país, que desistiu de usar a nota do Enem como uma das fases de seu processo vestibular após o escândalo do vazamento das provas. O consequente adiamento do exame inviabilizaria o cronograma da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), responsável pelo processo seletivo da USP.
Marina é uma entre os cerca de 2,5 milhões de estudantes que fizeram o último exame do Enem, em dezembro. Por muito pouco, porém, ela não esteve entre o 1,5 milhão de inscritos que não compareceram à prova. “Na verdade, eu não queria fazer o Enem, mas no colégio onde estudo insistiram, pois poderia ser importante numa entrevista de emprego... Então, acabei participando.”
Apesar de a prova poder ser a ponte para ingressar no curso da Unifesp, Marina está interessada apenas na vaga da USP. “A maior parte de meus colegas fez o Enem como ‘treineiro’ para o verdadeiro vestibular, já que a USP não usou essa nota”, diz ela. O exame, entretanto, foi uma surpresa para ela e seus colegas. “A primeira prova, que vazou, estava fácil, e esperávamos que a segunda fosse igual, o que não aconteceu”, conta. Marina acha que o tempo foi insuficiente para resolver todas as questões e havia alguns itens que exigiam “decoreba”, o que não deveria acontecer. “Fiquei nervosa, pois me preparei para um tipo de prova e encontrei uma coisa diferente ao chegar. No primeiro dia, fiquei arrasada; no segundo, fui melhor.”
A vestibulanda estudou em uma boa escola particular e não frequentou um “cursinho preparatório para o Enem”, como muitos jovens começaram a fazer desde que foi anunciado que o exame substituiria o vestibular. A professora Nora, da Unicamp, diz que esses cursinhos existem porque o mercado viu uma oportunidade de oferecer um novo serviço, mas acredita que, como o Enem avalia apenas o que é visto no ensino médio, eles vão perder sua razão de ser à medida que as escolas melhorarem.
Melhorias no ensino
Afinal, o Enem vem contribuindo para melhorar o ensino médio no Brasil? O professor Palma, da Unesp, lembra que junto com esse exame foram implantadas várias outras ferramentas para medir a qualidade da educação no Brasil – como o Saeb, o Enade, a Provinha Brasil, que avalia a alfabetização ao final do segundo ano do ensino fundamental –, mas diz que não se veem resultados. Ele sintetiza a questão em uma única frase: “Há muita avaliação, mas pouca intervenção”.
Segundo o professor Freitas, da Unicamp, o Enem não tem alavancado mudanças efetivas na educação, falhando em sua finalidade básica. “Aperfeiçoar o Enem significa restituí-lo à sua destinação natural, que é ser um avaliador das políticas públicas.”
A professora Nora Krawczyk acredita que o Enem não ajudou a melhorar o ensino médio no Brasil, até porque o índice de evasão continua alto. De 1996 a 2007, registrou-se um aumento de 41,7% nas matrículas do ensino médio no país, mas a evasão em 2007 estava em 13,3%, praticamente o dobro da verificada do quinto ao oitavo ano do nível fundamental, em que houve 6,7% de abandono. Ela lembra que estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que 40% da população em idade de frequentar o ensino médio não estuda.
A professora da Unicamp também observa que o Enem é um exame prestado ao final do curso médio e, portanto, indicaria resultados, e não o que ocorre durante os três anos de estudo. Assim como Freitas, Nora afirma que não basta avaliar, é preciso tomar medidas para melhorar a qualidade do ensino no contexto de políticas públicas. Entre as providências que ela cita está a valorização profissional do docente, por meio da oferta não apenas de salários maiores mas de melhores condições de trabalho, com tempo remunerado para pesquisa e convívio com os alunos. “Hoje temos o ‘professor-táxi’, que fica o tempo todo se deslocando de uma escola a outra.”
Nora lembra que desde os anos 1960 não se investe na melhoria da qualidade do ensino. É urgente, segundo ela, aplicar pesadamente em pesquisa pedagógica e melhoria do espaço físico da escola, que pode muito bem dispensar o luxo, mas necessita de aconchego. “O jovem de hoje é diferente do de 30 anos atrás e precisamos de pesquisa para saber como motivá-lo e criar novas metodologias de ensino.” Ela ressalta também que a escola não é uma ilha e, por isso, é necessário combater desigualdades e outros problemas sociais para melhorar a educação como um todo.