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Entrevista
Escritor fala dos métodos criativos desenvolvidos ao longo da carreira e comenta a atual condição da literatura brasileira
O carioca Sérgio Sant’Anna começou a carreira de escritor aos 28 anos, quando lançou o livro de contos O Sobrevivente, em 1969. A estreia lhe rendeu uma participação no International Writing Program da Universidade de Iowa, nos EUA, e permitiu que ganhasse fôlego literário para desenvolver o próprio estilo. Afeito a temas urbanos, Sant’Anna trabalha a estrutura dos textos de várias formas – nunca de maneira engessada.
“Considero-me um autor experimental, mas no sentido de sempre procurar novas formas de dizer. Não tenho rejeições. Se sair, por exemplo, uma narrativa mais tradicional, a aceito desse jeito”, disse em entrevista à Revista E, na qual também comentou a produção literária do país. “A literatura brasileira tem qualidade e acho até que ela é esquecida no resto do mundo.”
Além de abocanhar prêmios como o Jabuti, Status da Literatura e Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Sérgio teve dois livros adaptados para o cinema, A Senhorita Simpson, que recebeu o título de Bossa Nova (2000), do Bruno Barreto; e Um Crime Delicado, que rendeu um filme homônimo em 2005, dirigido pelo Beto Brant. A seguir, trechos da conversa.
Quanto tempo você dedica ao trabalho? Você prefere escrever em algum horário?
Procuro escrever todos os dias, a partir da hora que acordo. Mas não tenho um horário fixo para acordar. Às vezes, escrevo um pouco à tarde também, nunca à noite. Escrevo umas três ou quatro horas por dia.
Quando vai escrever um conto ou um romance você tem um planejamento anterior? Escreve, digamos, os principais momentos e depois trabalha esse plano ou a coisa sai sem planejar?
Não tenho um planejamento rigoroso porque escrevo a partir das ideias que me vêm à cabeça. Depois vou trabalhando aos poucos cada uma delas. Mas também escrevo mais de uma coisa ao mesmo tempo. Paro um conto, pego um outro. Por exemplo, tento trabalhar num romance encomendado que é ambientado em Praga [capital da República Tcheca].
Participei em 2007 do projeto Amores Expressos [que reuniu 17 escritores brasileiros, enviados cada um para uma cidade do mundo, para, na volta, escreverem um livro sobre o amor ambientado nesses locais]. Muito lentamente, vou escrevendo também esse romance passado em Praga. Nesse, sim, procuro ter um pouco de planejamento.
Como você escreve seus diálogos, uma coisa que geralmente é considerada complicada na escrita?
Tenho facilidade com diálogo. Quando comecei a escrever, não conseguia
fazê-lo. Mas depois me treinei aos poucos. O diálogo é para mim uma das coisas que saem mais naturais num texto. Há o problema total da literatura, que é uma coisa difícil mesmo. Mas, das técnicas que sou obrigado a usar para escrever, o diálogo domino bem.
Você disse que teve de treinar. Como é um treino para fazer diálogo?
Escrevi o meu primeiro livro há muitos anos, em 1969, chama-se O Sobrevivente. E notei que o livro muito subjetivo, muito fechado, um monólogo interior. Então, no segundo livro [Notas de Manfredo Rangel, Repórter, de 1973], me obriguei a colocar os personagens falando. Digamos que houve aí um pouco de intenção. Ultimamente, o diálogo puxa até uma narrativa inteira e brota mesmo nos personagens. Não é uma coisa que me cria problema.
Como vem a fala do personagem? Ela surge muito de pessoas que você conhece, de pessoas que ouviu na rua? Como é a criação desse ritmo de fala?
Aproveito, sem dúvida, a linguagem que ouço. Por exemplo, moro no Rio de Janeiro há muitos anos. Sou carioca, mas morei fora um tempo. A linguagem que assimilo naturalmente é a ouvida nas ruas. Existe tanto a fala autoral, cuja característica é do autor, quanto a fala baseada na minha observação. Aproveito a linguagem corrente, pois ela é fundamental na literatura.
"Os escritores dizem que os personagens se libertam da tirania do autor. Mas acredito também que os autores – ainda que inconscientemente – acabam como eles próprios na hora de narrar"
Você é do tipo que fica “perseguido” pelos personagens? Ouve-se de escritores que o personagem “entra” neles e ganha autonomia, mudando até as ideias iniciais imaginadas. Ou você é tomado pelo experimento da linguagem?
O personagem adquire uma autonomia sim, mas ela é relativa. Porque a linguagem talvez se dissemine, então ele nem sempre age e fala como eu planejava para ele. Mas isso vem muito em função da própria ação, da própria linguagem. Às vezes, os escritores dizem que os personagens se libertam da tirania do autor. Mas acredito também que os autores – ainda que inconscientemente – acabam como eles próprios na hora de narrar. Ou seja, um autor como a Clarice Lispector, por exemplo, pode ter diversos personagens, mas há sempre a voz dela ali. Guimarães Rosa também, por mais que ele varie as histórias, há sempre a voz de Guimarães.
Como você escolhe o seu modo de narrar, uma vez que a narrativa de seus romances e contos é variada?
Costumo ser linear desde o momento em que vem a inspiração – é uma palavra meio maldita essa... Mas ao surgir uma ideia, ela já vem com uma determinada linguagem. Por exemplo, em O Monstro [Companhia das Letras, 1994] achei absolutamente adequado usar essa linguagem da entrevista para fazer o conto. Surgiu imediatamente essa ideia de entrevistar o personagem.
Em que momento você avalia o seu trabalho? Constantemente ou deixa passar algum tempo depois de escrever?
A avaliação vem desde o primeiro momento. Assim que começo a escrever, há um diálogo crítico do autor consigo mesmo, ou seja, de mim comigo mesmo. Ver o que não está bom, o que precisaria ser de outra forma ou ser ajustado. No entanto, isso pode surgir a qualquer momento.
Você é identificado como um escritor que realiza experimentos com a linguagem. Nos seus últimos livros, pratica isso ou se tornou uma coisa secundária no seu trabalho, abrindo espaço para uma exposição maior da narrativa como instrumento?
Considero-me um autor experimental, mas no sentido de estar sempre procurando novas formas de dizer. Não tenho rejeições. Se sair uma narrativa mais tradicional, por exemplo, a aceito desse jeito. Embora todos digam que sou um autor experimental, tenho um leque variado. Posso ir ao experimento mais radical – que continuo a prezar muito – como ir ao narrado.
Por exemplo, em Confissões de Ralfo [de 1975, reeditado em 1995 pela Companhia das Letras], você faz uma série de sátiras a estilos. Isso nasce como uma necessidade da narrativa ou é uma ironia com a própria literatura?
Na época em que escrevi o Confissões de Ralfo, era um experimentalista radical. Quis fazer um livro que tivesse mesmo essa multiplicidade de linguagens. Assumi isso. Mas tem um livro meu em que também há uma mistura de narrativas, que é um romance-teatro, A Tragédia Brasileira [de 1984]. Ele não vende muito, mas é o livro que mais prezo.
Está em catálogo pela Companhia das Letras [edição de 2005]. Ali tem uma fusão de linguagens do teatro com o romance, numa narrativa que me seduz pelo entrecho e, ao mesmo tempo, pela linguagem, que considero muito feliz. E esse livro é de uma época em que tinha mais domínio desses meios de expressão, mesmo os mais experimentais.
"A linguagem que assimilo naturalmente é a ouvida nas ruas. Aproveito a linguagem corrente, pois ela é fundamental na literatura"
Você concorda que existe no seu trabalho um humor sarcástico e que aparece como arma para expor certas hipocrisias da sociedade brasileira?
Concordo. O humor é parte visceral do meu modo de narrar. Às vezes mais, noutras menos. Mas nada tão planejado assim. O humor ocorre, para mim, muito espontaneamente. É algo muito pessoal esse olhar para as coisas com um viés humorístico. O humor traz em si uma crítica social, uma crítica aos poderes constituídos, uma crítica à própria literatura, à própria arte, ou seja, uma forma de nunca levar nada totalmente a sério.
Você navega por romances e contos. Qual é mais “fácil”?
A minha forma mais adequada é a narrativa breve. Pode ser um conto, uma novelinha. É a forma na qual me sinto mais à vontade porque gosto da linguagem condensada e elaborada. E essa característica do conto, no meu entender, se aproxima mais de um ideal estético, que é fazer de uma peça literária uma amostra de inquietação. Também se pode fazer isso no romance, mas sinto que tenho um formato natural.
O conto voltou à moda hoje?
Acho que está do mesmo jeito que era. Até pelo contrário, as editoras preferem o romance, e o leitor também. Se você olhar qualquer lista de mais vendidos, os romances são maioria em comparação aos contos.
E isso seria por causa da linguagem mais confortável, menos concisa?
A impressão que tenho é de que as pessoas gostam de embarcar numa história e conviver muito tempo com ela. Mas, como leitor, adoro conto. Sou um leitor diferente. Gosto de pegar uma narrativa breve hoje e outra amanhã. Recentemente peguei para reler um livro de contos do Kafka [Franz Kafka, 1883-1924], Um Artista da Fome [a edição mais recente é da L&PM, de 2009]. Sinto prazer de pegar um livro de narrativas breves. Mas o leitor em geral prefere o romance.
Como é você como leitor?
Leio de tudo. Entro em livraria e gosto de comprar livro ou então chego à minha própria estante e pego um livro que muitas vezes já li. Acabo de ler um livro, daí olho para minha estante e penso: “O que vou ler agora?”. Aí pego um e leio. Mas também gosto de entrar em livraria e escolher um título.
Como os contos que compõem seu livro O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982, foram estruturados? Você se recorda?
Do conto-título me lembro bastante – mesmo porque o próprio conto diz um pouco de como ele surgiu. Eu estava levando uma vida dispersiva, no Rio de Janeiro, indo muito a bares, com pessoas de teatro, tinha arrumado uma namorada havia pouco tempo. E um dia liguei o rádio e estava tocando Retrato em Branco e Preto, com o João Gilberto, uma música do [Tom] Jobim e do Chico [Buarque], linda.
E era a época em que o João Gilberto havia se recusado a dar um show no Canecão [famosa casa de espetáculos carioca]. E aquilo moveu uma associação de ideias muito veloz na minha cabeça. Montei um mosaico em cima desse show de música que ele não deu. O livro O Concerto de João Gilberto é de uma fase minha bastante experimental.
Você tem dois livros adaptados para o cinema. Um é A Senhorita Simpson, que virou o Bossa Nova (2000), do Bruno Barreto; o outro é Um Crime Delicado, dirigido pelo Beto Brant em 2005. Como vê essas adaptações? Reconhece seu trabalho nesses filmes?
O Bruno aproveitou a minha história e fez uma coisa completamente diferente, da cabeça dele. Não me reconheço nem um pouco naquele filme. Já em Um Crime Delicado me reconheço bem mais. Gosto muito do trabalho do Beto Brant. Embora, toda vez que você é adaptado, haja sempre aquele choque entre o literário e a filmagem inevitavelmente. O diretor embarca na sua viagem própria.
Em um blog você falava de um filme sobre o Milton Nascimento e sobre sua convivência com os músicos mineiros. Como foi isso?
Vivi em Belo Horizonte por 17 anos, e uma das turmas de amigos que tinha lá, muito chegada, era essa do Clube da Esquina [coletivo de músicos mineiros e que gravou um aclamado disco homônimo, em 1972]. Eram meus amigos de bar, me dava com o Milton e tinha muitos amigos entre os músicos, como o Fernando Brant. Tenho uma ligação afetiva, sentimental, e sou grande admirador do trabalho deles.
Há aquele conto sobre o show do João Gilberto que não ocorreu e você falou agora também da sua proximidade com o pessoal do Clube da Esquina. A música acaba se imiscuindo no seu trabalho?
Ah, sim. Ela se transforma num personagem de certa forma. Mas há uma resposta ampla para isso: meu trabalho tem uma influência muito grande das artes plásticas, teatro e até um pouco menos de música. Porque essas manifestações artísticas me atiçam muito a imaginação. Quando desfruto de alguma obra que me seduz, é muito comum que se torne um pensamento, uma assimilação para a literatura.
Você é de uma geração que viveu a ditadura, seu primeiro livro é de 1969. Em função do momento histórico e por conta da forte censura da época, surgiram influências no seu trabalho?
Na época de Notas de Manfredo Rangel, Repórter e de Confissões de Ralfo era praticamente impossível ser um artista e não se envolver com uma crítica feroz à ditadura. Tive na minha vida pessoal uma participação política, sou preso anistiado. Não recebi essa grana que o pessoal está recebendo [indenizações pagas pelo governo federal], mas sou anistiado. Os anos de 1970 – em que a ditadura foi forte no Brasil – foram também o período de grande fermentação nas artes, aqui e no mundo.
Esse experimentalismo, portanto, tem a ver com isso também. São as duas coisas: participação política e experimentalismo. Por exemplo, em maio de 1968 [época em que uma greve geral na França congregou trabalhadores, intelectuais e estudantes e ganhou significado de revolução, tornando-se mundialmente famosa] eu estava estudando na França, e aquilo tudo mexeu muito comigo. Depois, em 1970, estava nos Estados Unidos, em plena época do rock, da Guerra do Vietnã. O autor acaba influenciado pelo ambiente histórico, político e estético no qual ele vive. E não há como não ser, é quase obrigatório.
Você tem livros traduzidos para diversos idiomas. E tem se observado que a literatura brasileira tende a ficar mais globalizada, ou seja, títulos publicados em romeno, em húngaro e por aí vai. Isso é resultado de uma descoberta da qualidade da nossa literatura ou é um movimento mundial?
A literatura brasileira tem qualidade e acho até que ela é esquecida no resto do mundo. Essa tradução de autores no exterior, vejo como um fenômeno natural que deve ser da globalização. Mas é preciso saber uma coisa, a literatura brasileira, embora traduzida hoje em vários países, não vende bem, ela não tem muitos leitores em vários países.
Fica aquilo de o Brasil ser distante, exótico. Não há um mercado [externo] grande para a nossa literatura. As traduções de livros meus nunca chegaram a vender bem. Não que meu objetivo seja esse, mas a gente sempre fica sabendo.
"O humor traz em si uma crítica social, uma crítica aos poderes constituídos, crítica à própria literatura, à própria arte, de nunca levar nada totalmente a sério"
Diz-se que seria conveniente que se começasse o ensino da literatura nas escolas pelos contemporâneos, para depois chegar aos clássicos – Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo. Isso porque a linguagem contemporânea seria mais próxima do universo cultural dos alunos. O que você pensa sobre isso?
Acho importantíssimo que a escola indique livros que despertem o interesse dos alunos pela leitura. E os clássicos são, realmente, levados para a escola muito cedo e corre-se até o risco – e acho que isso acontece – de os alunos implicarem com a literatura, acharem uma coisa muito grandiloquente e afastada do universo deles.
Não vejo, por exemplo, o aluno do ginásio se interessar pelo Machado de Assis. Machado é um cara para ser lido mais tarde. Euclides da Cunha também. A escola deve, sem dúvida, usar os autores contemporâneos.
Parece que o escritor hoje se furta ao debate cultural, a criticar um colega, por exemplo. Você acha que o intelectual brasileiro, incluindo o escritor, amoleceu?
Essa é uma relação complicada. Deveria, sim, existir um debate crítico, mas hoje os escritores são muito isolados. Na época em que comecei a escrever, em Belo Horizonte, havia aquele grupo de escritores que estavam sempre juntos. Não tenho frequentado grupos de escritores jovens para saber até que ponto eles debatem, mas no jornal o escritor foge de criticar outro escritor. Acho natural porque afinal de contas é o seu colega.
Mas, por exemplo, quando o Tom Wolfe lançou o último livro dele, o Norman Mailer e o John Updike, que estavam vivos na época, foram aos jornais americanos e escreveram críticas desfavoráveis ao livro de Wolfe, que respondeu depois. A impressão é de que isso ajuda na construção de uma literatura mais sólida, mais crítica. Você concorda?
Concordo. Inclusive essa é uma tradição americana isso de os escritores serem convidados a escreverem resenhas sobre os livros de outros, e acho sadia. Pode ser difícil, mas é uma verdade. Porque o ser humano é muito vaidoso, pois, quando você escreve uma crítica desfavorável sobre o livro de um colega seu, é praticamente certo, se você for amigo daquela pessoa, que você vai perder uma amizade. A gente, de certa forma, se julga suspeito para falar de determinada coisa.
De que maneira a internet tem se relacionado com a literatura em sua opinião? Você acha que essa relação ajuda ou afasta o leitor?
Acho a internet um dado favorável, porque coloca o fenômeno literário na ordem do dia, como as próprias TVs que têm programas dedicados à literatura. Tudo isso soma, não subtrai.
A indústria cultural entrou, de fato, na literatura também. Há escritores que lançam livros novos a cada dois anos. Como apreciador de música, você deve ter visto que isso aconteceu nesse mercado também e que os resultados não foram bons. Você acredita que esse seja o motivo para a literatura hoje produzir poucas coisas boas?
Se o autor criar para si essa obrigação, a tendência é ele piorar. O livro deve ficar pronto quando ficar. Não que se deva atender a nenhuma imposição mercadológica de publicar um livro de tanto em tanto tempo. Mas, por outro lado, há o chileno Roberto Bolaño [1953-2003], de quem sou muito fã como leitor, e que escreveu muitos livros, praticamente um atrás do outro – e cada um melhor que outro. Não há uma regra geral, se o cara consegue. O autor deve dar ao livro o tempo que ele precisa, nem mais nem menos.
"A impressão é de que as pessoas gostam de embarcar numa história e ficar convivendo muito tempo com ela. Mas, como leitor, adoro conto"