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Inéditos
por Claudio Willer
CINEMAS
1
ANOTAÇÕES PARA MINHA BIOGRAFIA,
NO CENTENÁRIO DE ALFRED HITCHCOCK
sempre amei as imagens
mas eu queria mesmo era ser um narrador
modo de assemelhar-me ao cineasta da vertigem
e foi assim que passei a sentir vontade de escrever
sobre o mistério do rosto daquela mulher
que segue ao encontro do aventureiro
que a cada dia tem que reiniciar
a dolorosa caminhada
rumo á torre, à esquina, à margem, ao centro
à fatal reconquista da felicidade a dois
quando tão pouco importa o abismo
pois a vida passa depressa demais
e só queríamos um momento, um único instante nosso
e agora sou eu
aquele que mergulha
no frio oceano da paixão
e caminha
cego e surdo
através do estrondo, da revelação, do clarão, da
imensidão
para sempre prisioneiro dessa história
da vida como risco permanente de um passo em falso
as fachadas de San Francisco se fecham em círculo
cuidado
o efêmero está aí
é preciso desvendar desvencilhar-se
saber
quem fui
o que sou
cuidado
2
PARA CARLOS REICHEMBACH,
DEPOIS DE ASSISTIR A UM DE SEUS FILMES
ensinar a enxergar
é não ter medo dos símbolos
ver o mundo com olhos de cineasta
ver o cinema com olhos de poeta
saber que a força das operações mágicas
está em sua repetição
e o alto é o baixo e o extremo mal é o bem
e que sempre existiu – apenas isso – um fio sobre o abismo
e atravessá-lo é o mesmo
que percorrer a cidade
ao acaso
o pleno é o vazio
pois também no cinema há bruxos
grávidos de imagens
explodindo em metáforas e visões
fazendo que a linguagem fale
através das cores
mostrando como achar
as pistas dos caminhos dos subterrâneos
POESIA PICTÓRICA, VISUAL: SIMBOLOGIA DA ÁGUA
Quando a praia onde você está é sentida como real unicamente por trazer a lembrança viva dos cheiros, claridade e ruídos da outra praia onde você já esteve, tanto tempo atrás,
quando nada mais resta, a não ser a impressão de que viver foi inútil e de que morrer é algo totalmente idiota,
filtrada por uma sensação do sublime, de estar com os pés no chão.
ou então
quando, ao retornar já madrugada, deu-me a impressão de que se abria um abismo, passagem para outro plano, no encontro
das ruas Pernambuco, Rio de Janeiro, Praça Vilaboim, e isso foi igual a perceber que em toda a minha vida nada mais fiz
exceto seguir os rastros da minha própria morte.
quando a vida é apenas um pretexto: então, selecionar para publicação o que for mais estranho, anguloso, geométrico, fora
de esquadro, que possa ser recitado em um tom de voz bem inocente, de quase surpresa, simulando alguém que mal
acredita no que está a dizer
A NOVA SINTAXE
a liberdade de nunca mais sair daqui
quando a vida se condensa em um movimento
é igual àquela outra vez, há tanto tempo, havia um enorme luminoso no topo do
prédio perto do cais do porto piscando vermelho, iluminando e apagando-
se em sucessões de claro-escuro na água-furtada do casarão, pé direito alto,
passei a noite toda com ela, é claro que pelo prazer, também pelo vento
fresco de mar entrando pelos enormes vitrôs, por ser desproporcional o
espaço todo, hipnótico com aquelas luzes vermelhas fazendo-nos brilhar
em intervalos de segundos ao rebaterem sobre nossos corpos
no êxtase animal reencontramos a parcela do divino em nós
lençóis, segmentos da eternidade
sentimos sede, é quase meia-noite
confundimo-nos, a nós e o sonho
marcar um novo encontro, na próxima quarta-feira
O VIAJANTE
1
da janela do quarto de hotel (Belo Horizonte, acho,
e às seis da tarde, é sábado)
o mundo é uma página que se abre
e o vento vem de longe
preparo-me para falar sobre Blake, Baudelaire, Rimbaud
recebo notícias de tigres e unicórnios
– o que restará de tudo isso?
sabores novos
e todas as coisas que acontecem em quartos de hotel
(vontade de grafitar as paredes)
2
que aconteçam maravilhas
em março, em abril
às segundas, terças e quintas-feiras
quando vestidos de vento e baforadas de fumo
caminharmos sobre trilhos fosforescentes
gritando: “que tudo vá bem! que tudo vá bem!”
profetas do sonho, sátiros da osmose, conspiradores
da ilusão
o calmo relógio desta primavera
fora de época
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO XX
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: mente na alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente – lavanda
e também sombra de árvore
montanha inteiramente nossa
intimidade sorridente no calor da tarde
Iris, o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa que você fez que eu visse
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
o acaso nos transportava e podíamos ir a qualquer lugar
(que vontade de grafitar as paredes do quarto)
é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa em prosa (Iluminuras, 2004); Lautréamont – Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas – Obra Completa (Iluminuras 2008), entre outros