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Ilustrações: Marcos Garuti

Uns aos outros


Os registros históricos indicam o quanto é difícil viver em sociedade. Na filosofia e na literatura contemporânea, os insucessos e as frustrações se acumulam. O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), por exemplo, cunhou a frase que ficaria cravada nas mentes e corações: “O inferno são os outros”. A considerar as características da sociedade moderna, o individualismo se intensifica como um comportament

o social. Mesmo com a pregação dos Direitos Humanos e o coro por um mundo mais tolerante, o mandamento do “amor ao próximo” talvez esteja ainda distante. Para discutir a questão do Viver Junto no mundo atual, escrevem o professor do Departamento de Filosofia da Unicamp, Oswaldo Giacoia Junior, e o também professor de história da Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade de São Paulo (USP), Franklin Leopoldo e Silva.

 


VIVER JUNTO



por Franklin Leopoldo e Silva

É perfeitamente possível estar junto de outra pessoa sem viver junto com ela, isto é, sem partilhar valores de vida, sem cultivar aspirações comuns, sem esboçar qualquer movimento em direção a uma vida em comum, a uma convivência. Basta olharmos ao redor para verificar que há inúmeros exemplos de como se pode viver em sociedade sem viver em comunidade, e isso vale tanto para grupos sociais menores como a família, quanto para a sociedade em geral.

A razão histórica dessa situação é o individualismo como princípio da vida social, característico da sociedade moderna, que se organiza em torno do indivíduo e de seus direitos naturais, entendendo que a individualidade é a condição natural do ser humano. Nesse sentido, o grupo social seria a agregação de indivíduos com a finalidade de defender de modo mais eficaz os direitos de que cada um é detentor.

Há nisso um contraste com a sociedade antiga e medieval, em que cada um traz em si o lastro comunitário que o liga aos demais, motivo pelo qual os gregos, por exemplo, não concebiam que um humano pudesse viver só.
Uma vez que na modernidade desapareceu essa relação intrínseca entre os indivíduos e a cidade, já não podemos dizer que a organização política seja uma comunidade, porque os vínculos que os indivíduos mantêm entre si e com o grupo social são extrínsecos.

O indivíduo moderno não é, essencialmente, cidadão, ou seja, ele não vive intimamente a experiência ética e política de ser como o outro, em termos igualitários, de participar de uma totalidade; apenas segue padrões de democracia formal em relação aos quais não há diferença entre a convivência e a conveniência.
Isso tem consequências de grande alcance. Estando o indivíduo no centro do grupo social, é natural que entenda que o interesse próprio deva predominar.

Ele é encorajado pela ideia moderna de que a sociedade progride por via dos empreendimentos individuais, e a busca de satisfação do interesse particular é o que move a todos. Inevitavelmente, ocorre um aprimoramento geral da própria sociedade, ao menos no que diz respeito à produtividade econômica. Mas, para que o interesse próprio possa desempenhar esse papel, ele deve ser transfigurado em critério ético, isto é, valor nuclear do individualismo.



"A solidão numa sociedade massificada encoraja o indivíduo a buscar alívio e abrigo em grupos sectários, nos quais a homogeneidade representa a segurança que não está presente na experiência autêntica da diversidade"



Nas sociedades contemporâneas, altamente complexas, as relações interindividuais devem ser regidas por regras objetivas, para que o individualismo se torne compatível com a sociabilidade. Isso significa que há poucas oportunidades para que a aproximação entre as pessoas se faça por intermédio de movimentos subjetivos, isto é, por via de impulsos de liberdade.

Como as relações devem ser objetivas e sistemicamente reguladas por mecanismos de controle social, tanto o eu quanto o outro se transformam em elementos de uma funcionalidade sistêmica, e os vínculos tendem a ser objetivamente utilitários.

É preciso entender ainda que a sociedade de indivíduos é também uma sociedade de massa. Há indivíduos, mas as diferenças tendem a se anular: os indivíduos são separados, mas homogêneos. Esse aparente paradoxo se explica pelo fato de que a separação é necessária para a manutenção da particularidade individual, mas não há qualquer interesse dos poderes estabelecidos no cultivo de uma individualidade singular, que só viria a se constituir como obstáculo à administração e controle da sociedade como sistema.

Por isso viver em sociedade não envolve solidariedade, que dependeria de movimento interno dos sujeitos sociais, mas simplesmente a observância de padrões de comportamento externo que garantam a justaposição de interesses. Não é por acaso que os teóricos da sociedade política moderna se preocuparam tanto com a questão do contrato como instrumento de regulamentação objetiva da experiência coletiva.

Dentre essas regulações objetivas está a tolerância. Como já está inscrito na própria palavra, trata-se menos de compreender o outro do que de concordar com certas diferenças, desde que essa pluralidade atenda às conveniências de uma sociabilidade relativamente estável. Não significa aceitar o outro; antes, trata-se de relegá-lo à sua solidão, esperando que ele me deixe viver a minha: cada um com as suas crenças, que nos isolam uns dos outros. Esse tipo de tolerância é abstrato porque o outro é objetivado como diferente e não assimilado como uma subjetividade singular.

A solidão numa sociedade massificada encoraja o indivíduo a buscar alívio e abrigo em grupos sectários, nos quais a homogeneidade representa a segurança que não está presente na experiência autêntica da diversidade. Nesses agrupamentos restritos e de convicções predefinidas, vigora um simulacro de solidariedade que, de fato, não é outra coisa senão a uniformidade de pensamento, portanto, a ausência de liberdade.

O outro só é aceitável quando reproduz a minha individualidade e, nesse sentido, viver junto significa a justaposição de unidades em série, como os números. Aquele que é externo à seita, e que afirma outra individualidade em vez de reproduzir a do grupo, não é aceito. Por isso a tolerância é frágil: temos de nos lembrar continuamente de que devemos praticá-la, mas é muito difícil fazê-lo inteiramente.

Os direitos humanos padecem de uma contradição permanente: eles estão na origem das grandes proclamações das revoluções modernas, onde aparecem como princípios fundamentais. Mas a prática nunca foi consistente com a integridade formal dos princípios e, por isso, experimentamos concretamente o antagonismo entre as consequências e as grandes formulações fundadoras da modernidade política. Princípios não são guardiões adequados da dignidade; esta só pode ser preservada se o valor que encerra tornar-se
critério concreto da vida em comum.

Por razões análogas, a globalização não aproxima as pessoas. Aliás, seria ingênuo supor que tal motivação estivesse na sua origem. A globalização é uma reengenharia: ela redesenha os contornos externos das sociedades para que todas possam pautar-se pelas mesmas referências de ordem econômica, o que propicia um controle global, mas não uma integração de fato. Aqui também as regras objetivas de administração do sistema prevalecem sobre a realidade das relações entre pessoas ou grupos.

A dificuldade de viver junto é histórica. O ser humano não está essencialmente destinado ao isolamento ou à comunidade. Movido pelas condições objetivas da história vivida, ele, subjetivamente, constrói uma coisa ou outra, isto é, se constitui como indivíduo separado ou como pessoa solidária. Não posso abstrair os fatores objetivamente históricos (sociais, econômicos) que me impelem ao isolamento e até mesmo à hostilidade em relação ao outro, como é próprio de uma sociedade competitiva.

Mas também não estou necessária e fatalmente determinado a me conformar aos modelos de vida que me são oferecidos. A liberdade não é dada; ela se faz num exercício difícil. Viver junto é um exercício de liberdade, e isso é tanto mais verdadeiro quanto mais as condições sociais impõem a perspectiva contrária.

A esperança é de que o indivíduo contemporâneo possa recuperar a condição de sujeito da qual foi destituído no contexto de degradação ético-política nesta fase da modernidade. Para isso é necessário mudar a si mesmo e mudar as coisas, isto é, tornar-se novamente sujeito da sua história e da História, para que seja possível construir outro modo de vida.

É uma atitude de resistência e, em toda resistência, o resultado é duvidoso. Mas, como o outro lado da alternativa é a anulação da consciência, rendida à força das coisas, parece que vale a pena correr o risco.



Franklin Leopoldo e Silva
é professor titular de História da Filosofia Moderna e Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP)





PODER TOLERAR A DIFERENÇA



por Oswaldo Giacoia Junior

Temos hoje poucas dúvidas acerca de nossa própria tolerância liberal, a respeito do que exigimos de nós mesmos como comportamento ou postura tolerante, sobre o politicamente correto – e reconhecemos nisso um traço característico de nossa identidade.

E, no entanto, ao assumir essa evidência, talvez tenhamos nos obliterado para o sentido autêntico de alteridade, de distância, da experiência que nos remete à possibilidade radical de viver o singular e único com relação a nós mesmos, e que mediatiza talvez a apreensão possível do que possa ser, de fato, o outro.

Nesse sentido, gostaria de confrontar três imagens, que nos dão algo a pensar em relação à convivência, ao viver com o outro: a primeira é aquela que somos praticamente compelidos a considerar em primeiro lugar, à vista de nossa formação cultural, ética e religiosa: a perspectiva do amor ao próximo, em consonância ao mandamento divino, que nos ordena a abdicar de nós mesmos e amar o próximo como a si.

Nesse reconhecimento, abolimos toda distância, porque no essencial seríamos todos um, irmãos e filhos de um mesmo Pai. Amar o próximo como a si mesmo – esse é o lema e a divisa éticorreligiosa de nossa autocompreensão como sujeitos morais.

E, no entanto, se fizermos abstração da evidência religiosa dessa convicção, não há nenhuma razão para que, do mais profundo de nossa autoconsciência, reencontremos como o próximo aquele cuja face nos mostra, por contraste, nossa autêntica identidade. Desse ponto de vista, a civilização cristã foi, por certo, a realização perfeita dessa ideia do universal, essa ideia dilemática – eticamente superlativa – de um mandamento do amor ao próximo, e não apenas de tolerância e vida em comum.

A antítese dessa autocompreensão seria, evidentemente, o autocentramento nos interesses egoístas, que consideram a preservação de si e a autorreprodução como as máximas incontornáveis e imperativos antropológicos do gênero humano. Conviver, tolerar e suportar o convívio, seria, ao mesmo tempo, uma espécie de arte e imposição, capaz de conciliar os individualismos privados num egoísmo coletivo sublimado, altamente produtivo, do ponto de vista sociopolítico, que tem em vista a conservação e reprodução da espécie. Egoísmo seria, portanto, a antítese do autêntico amor ao próximo.

Teríamos, no entanto – e isso introduz minha terceira ordem de considerações –, outra ideia da convivência tolerante, que se afirma justo a partir da diferença, no espaço da alteridade radical. Uma diferença que se assume, que não ignora, mas preserva a especificidade, a idiossincrasia – em definitivo, a singularidade, unicamente a partir da qual somos capazes de encetar um diálogo que não reconduza sempre as diferenças à figura triunfante do mesmo.

"Porque o que nos recusamos a pensar é a diferença, a alteridade, a incômoda e próxima presença do outro, que a todo dia nos confronta cara a cara, que se nos oferece como margem irrecusável e intransponível"



Sob essa ótica, que, aliás, não se limita ao plano das relações íntimas e privadas, mas adquire pleno sentido se considerada no plano das relações internacionais, a alteridade, que deve sempre ser reconhecida, como base e ponto de partida – evitando, como precondição, uma assimilação desrespeitosa e arbitrária do outro, propiciando a convicção de que, no limite, somos todos espécie de um mesmo gênero, embora nossa comunicação seja somente possível sobre a base da inevitável diferença que nos define, da separação que nos propicia aparecer como a especificidade que somos.

Se pensarmos no plano das relações supraindividuais, como, por exemplo, no plano das relações internacionais, uma lição como essa poderia nos ser muito útil. Hoje em dia, falamos muito, e operamos pouco, sobre o reconhecimento das diferenças. Será que seríamos efetivamente capazes de uma abertura para um horizonte de autocompreensão que não se pautasse precisamente por nossos próprios balizamentos e parâmetros?

Num mundo globalizado, no qual a unificação planetária se faz pela lógica e dinâmica do mercado, seria o caso de se perguntar se, de fato, a imposição desse modelo societário – pautado em ideais de racionalidade e justiça próprios da democracia liberal –nos garantiria, em situações extremas, abertura efetiva para a “voz do outro”.

Sobretudo porque o que nos recusamos a pensar, o que obliteramos, é a diferença, a alteridade, enfim, essa incômoda e próxima presença do outro, que a todo dia nos confronta cara a cara, que se nos oferece como margem irrecusável e intransponível – o espelho em que nos refletimos a nós mesmos, e, no entanto, aquilo ou aquela(e) que representa a irremissível transcendência.

E talvez por isso mesmo, naquilo que, felizmente, não conseguimos dobrar, para forçar a conformar-se com nossa própria ideia de autorrealização, quem sabe se nesse irredutível se abriga nossa única chance, a única verdadeiramente ao alcance das mãos, de nos tornarmos, de fato, uma subjetividade – ou seja, uma pessoa individual ou coletiva. Homens e mulheres, cidadãos capazes de ouvir, de compreender-se sempre em relação com a alteridade, com todas as limitações e contingências que fazem parte de nossa condição existencial.

Sabendo que ninguém, nem nada, existe em separado; que ninguém nem nada é responsável por cada um de nós; que só existimos em completa e mútua dependência, em interconexão, e que nossa crença na autarquia e independência – sobre a qual se funda, por exemplo, a ilusão do livre arbítrio – é, de fato, um ofuscamento da percepção, um déficit de amadurecimento, que vale no plano individual assim como no plano político e social.

O anúncio profético da “morte de Deus”, por parte de Nietzsche, nos deixa hoje no âmbito de um vazio. Nesse vácuo, procuramos nos orientar de modo cada vez mais atropelado, a cada dia mais sofregamente e, no entanto, desesperados – sempre numa perspectiva reconfortante do reencontro da identidade, da reconciliação, do reconhecimento de uns com os outros.

Entretanto, aquilo que dramaticamente faz falta, no limite máximo, é exatamente o contrário daquela ilusão reconfortante de que nos encontramos sempre em casa; de que somos sempre próximos uns dos outros, mesmo nas situações mais amargas.

O que faz falta talvez seja a vivência da alteridade genuína, a possibilidade de ser e, sobretudo, de deixar ser – a abertura para a liberdade absoluta, que não se deixa recolher na unidade de nenhuma essência identitária, que se impõe como tarefa de uma vida, a construção existencial de uma verdadeira experiência de si, a cada momento da própria duração.

Talvez tenham sido essas as palavras de Nietzsche que mais tenham nos incomodado, como uma provocação e um abalo em nossa autocompreensão como mulheres e homens piedosos, solidários e compassivos – porque justamente essa autocomplacência nos veda e barra o caminho para uma autêntica personalidade e singularidade: “Tu és ar puro e solidão, e pão e remédio para teu amigo? Alguns não podem se libertar das próprias cadeias, e, entretanto, ele é para o amigo um redentor. Tu és escravo? Então não podes ser amigo. Tu és um tirano? Então não podes ter amigo”.

Entre a escravidão e a tirania se coloca o espaço entre, a abertura para a amizade, o reconhecimento do outro na alteridade que lhe é própria. Saber ser nada mais do que o âmbito e o horizonte de acolhimento do outro; e quando isso ocorre – e é extremamente raro que ocorra, de fato – temos uma aproximação da maturidade, daquele estado em que somos efetivamente capazes de uma existência que tolera e acolhe, não por fraqueza, ou impossibilidade de resistir, mas pela plenitude e fortaleza que só são possíveis no registro do dom e da graça – que acolhe a presença do outro, na radicalidade de sua diferença, na alteridade que se manifesta em cada pessoa, em cada gesto, em cada rosto.

Se pensarmos assim, tanto no plano mais íntimo de nossas relações pessoais como no domínio político mais amplo, em nossa cidade, em nosso estado e país, talvez tenhamos alguma chance de perceber aquilo que pode subsistir, ainda hoje, como apelo e chamamento do universal, que não é a negação da diferença, mas a elevação da singularidade ao plano de sua concreta e efetiva realização.



Oswaldo Giacoia Junior
é professor livre docente do departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros livros, de Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida (Editora UPF, 2005) e Os Labirintos da Alma (edunicamp, 1997)