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Recruta Zero



Soldado irreverente e anarquista, criado pelo norte-americano Mort Walker, completa 60 anos de sucesso e conquista leitores de quadrinhos em todo o mundo

Ele era apenas um universitário norte-americano no início dos anos de 1950. Com um ar de indiferença – mais tarde detectada como pura preguiça –, o rapaz era do tipo que “não queria nada com nada”, como se diz. Até que um fato mudou sua vida: ele se alistou no exército, em 1951, durante a Guerra da Coreia, na qual os Estados Unidos eram um dos aliados da Coreia do Sul contra a Coreia do Norte.

Ao contrário do que acontece com muitos jovens que partem para defender pontos de vista desconhecidos, numa terra distante, o final dessa história não foi triste. Esse é um relato de sucesso, e seu protagonista não morreu em combate – na verdade, são muitas as chances de ele viver para sempre. Como assim? É que estamos falando de um personagem de quadrinhos: o mundialmente conhecido Recruta Zero, criado pelo norte-americano Mort Walker e que completa 60 anos em 2010.

Os primeiros traços de Beetle Bailey, nome do personagem no original em inglês, são de 1949. É no ano seguinte que o simpático jovem, com o característico chapéu enterrado na cabeça – impedindo que enxerguemos seus olhos –, aparece pela primeira vez em uma tira de jornal.

“Eu desenhava para revistas e um editor, que estava comprando alguns dos meus cartuns, me perguntou por que eu não fazia algo para universitários, já que eu fazia muitas piadas sobre crianças”, contou Mort Walker durante entrevista concedida por telefone, de seu estúdio em Connecticut, nos Estados Unidos.

“E eu aceitei. No começo, o novo personagem foi chamado de Spider, [aranha em inglês]”, explica Walker, que tinha 23 anos na época. Mas quando o desenhista passou a vender sua nova invenção, teve de trocar de título, porque o nome já pertencia a outro personagem. “Eu apenas escolhi outro inseto”, diz, referindo-se à palavra beetle, termo em inglês para besouro. A dica do tal editor foi certeira. Com Bailey, Walker passou a ser o cartunista mais vendido dos Estados Unidos.


Zero entra para o exército


Pouco tempo depois, com o país envolvido no conflito militar coreano, Mort Walker começou a ser questionado sobre por que o seu jovem estudante não se “alistava” nas forças armadas. “No início eu resisti à ideia”, lembra o desenhista.

“Nós tínhamos acabado de sair da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], havia a Guerra da Coreia, enfim, não achei que as pessoas quisessem ler sobre mais guerra.” No entanto, para sorte de todos, Walker se convenceu a colocar seu personagem num contexto militar – influenciado, principalmente, por sua própria experiência no exército, ao qual serviu de 1943 a 1947. “E é como eu sempre digo: ‘Sou como o Recruta Zero, não gosto de regras’.”

“Cidadania” brasileira


No Brasil, o personagem já chegou como soldado, na década de 1960. O ilustrador e quadrinhista italiano, radicado no Brasil, Primaggio Mantovi, conta que o nome brasileiro foi dado pelo então secretário de redação da editora Rio Gráfica – a primeira a publicar revistas com histórias do Recruta por aqui –, Wilson Drummond.

“O Recruta Zero chegou ao Brasil com uma revista própria, com histórias longas”, informa Primaggio. “As tiras foram publicadas depois, pelo jornal [carioca] O Globo.” O próprio quadrinhista chegou a desenhar o personagem para as edições brasileiras, criando também os argumentos das histórias, de 1968 a 1971 – período em que protagonizou uma passagem curiosa.

“Lá na editora a gente assinava todos os trabalhos que fazíamos”, narra. “Quando eu comecei a fazer o Zero, ingenuamente eu assinei as histórias, e a diretoria da Rio Gráfica, ingenuamente, também não falou nada.” Com o sucesso que o Recruta fez no Brasil, Primaggio tornou-se ainda mais conhecido por meio do personagem, que muitos chegaram a achar que era dele.

“Até que num dado momento, uma dessas edições brasileiras caiu na mão do Mort Walker. Ele gostou muito do material, mas falou: ‘Poxa, estão assinando. Eu sou o autor’.” A partir desse momento, o ilustrador parou de colocar seu nome nas histórias que criava para o personagem de Walker. “Mas também eu já tinha assinado tantas que tudo bem”, brinca.


Personalidade forte


O Recruta Zero vem atravessando as gerações nesses últimos 60 anos. No Brasil, até hoje suas tiras são publicadas – entre outros veículos, pelo jornal O Estado de S. Paulo, onde divide a página com outro sessentão: Minduim de Charles M. Schulz, criado em 1950.

Mas de onde vem tanta identificação por parte dos leitores brasileiros? Afinal, o Brasil não tem com seu exército a mesma relação que os norte-americanos têm com seu U.S. Army. “Recruta Zero é meio que um malandro brasileiro, tem essa identificação que tem o Zé Carioca, por exemplo [personagem criado por Walt Disney especialmente para o Brasil, no início da década de 1940]”, responde o jornalista e pesquisador de quadrinhos Gonçalo Junior, autor de A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras, 2004).

“É uma coisa meio subversiva, um personagem que não gosta muito de cumprir regras, gosta de questionar a autoridade.” Já Primaggio inclui em sua explicação a “genialidade do Mort Walker” a tratar o tema que escolheu para sua criação, mas concorda com Junior. “A personalidade irreverente do Recruta Zero é muito próxima da do brasileiro.”

Para o jornalista, escritor e especialista em quadrinhos Álvaro de Moya, co-curador da exposição Recruta Zero 60 Anos, realizada pelo Sesc Vila Mariana [veja boxe Feliz aniversário!], o segredo do sucesso e da longevidade do simpático soldado está mesmo na maestria de Walker. “Eu sempre achei que o Recruta Zero tem um humor excepcional”, afirma Moya.

“Em termos de fazer uma piada rápida, numa tirinha só, é perfeito.” O especialista comenta ainda que esse know how é, de fato, uma especialidade norte-americana. “Eles têm essa técnica, até mesmo se a história em quadrinhos for mais longa. Os americanos conseguem fazer com que, logo na primeira leitura, você já saiba quem é o mocinho, quem é bandido e qual a situação.

Eles imediatamente prendem você.” E no caso de Zero, muitos foram os “agarrados”: cerca de 280 milhões de leitores diários, em 53 países. “É um humor que chamo de pastelão, e que todas as camadas gostam. É como Charles Chaplin”, compara Moya. Primaggio complementa: “E o Zero também é como o Mickey ou o Pato Donald [também personagens de Walt Disney], no sentido da personalidade forte, tão marcante que você pode jogá-lo na história e ele trabalha para você”.


Grande família


Primaggio também chama a atenção para outro trunfo de Walker: a diversidade de tipos do universo do Recruta Zero. “Mort Walker criou uma fauna de outros personagens – antagonistas, amigos etc. – que é uma grande jogada”, analisa. “Porque a ‘família’ do personagem, como a gente diz, tem que ter todo tipo de sujeito para você fazer os cruzamentos.” E nas tiras do soldado preguiçoso o que não falta são figuras com as mais variadas características.

Ao longo dessas seis décadas, já apareceram 30 delas. Do soldado com o Q. I. de um dígito Dentinho e o conquistador Quindim ao incompetente e babão General Dureza e o glutão e truculento Sargento Tainha, que vive perseguindo e espancando Zero.

“O quadrinho foi acusado de tratar, na década de 1950, de assédio sexual”, lembra Gonçalo Junior. “Porque tem o general [Dureza] que descaradamente assedia sua secretária [a personagem Dona Tetê].” Recruta Zero foi também a primeira tira periodicamente publicada em jornais norte-americanos a incluir um personagem negro em suas histórias, o Tenente Mironga, que surgiu no acampamento na década de 1970.


Final feliz


Uma das maiores polêmicas provocadas pelo Recruta Zero, porém, envolveu o próprio exército – muito criticado por Mort Walker por meio das situações criadas no Acampamento Swampy, quartel onde mora Zero e os outros soldados – e cujo nome, em português, poderia ser traduzido por algo como lamacento. “No Recruta Zero, Mort Walker se mostra extremamente subversivo, sobretudo nos primeiros dez anos de personagem”, explica Gonçalo Junior.

“Ele falava de uma forma que fazia tudo [no exército] parecer idiota e inútil, como o sargento gordo e que roncava.” Junior dá como exemplo uma piada na qual Zero e o soldado de outro quartel colocam seus sargentos adormecidos lado a lado para comparar quem roncava mais. “Ou seja, ele expõe tudo aquilo ao ridículo, anarquizando tudo.”

As gozações não passaram despercebidas. Não muito tempo depois de se alistar, Zero recebeu “baixa” do exército, tendo suas tirinhas proibidas no jornal oficial que circulava entre os soldados durante a guerra. No entanto, os ofendidos estavam apenas entre as patentes mais altas.

“As famílias dos solados recortavam as tiras e mandavam para eles pelo correio”, conta Álvaro de Moya, que acredita, no entanto, que as sátiras de Walker ao sistema eram mais “afetuosas” do que exatamente agressivas. “Essa crítica não é forte, contumaz, é mais de afago na cabeça, até de uma simpatia”, analisa o especialista. “Claro, ele é contundente na sua crítica ao militarismo, mas tem certo respeito por aquilo. Não é uma coisa rancorosa.”

Talvez o próprio exército tenha percebido isso com o tempo, já que, em 2000, Mort Walker recebeu dos militares norte-americanos a Decoration for Distinguished Civilian Service – condecoração por destaque em serviços civis, em tradução literal –, a maior honraria que a instituição pode conceder a um civil.


Feliz aniversário!


Exposição organizada pelo Sesc Vila Mariana reúne originais e edições raras do Recruta Zero

O lugar é ideal: o Atrium, ambiente do Sesc Vila Mariana onde livros e revistas ficam à disposição dos frequentadores e o silêncio impera. Impossível não pensar o quanto o Recruta Zero iria adorar tirar um cochilo ali, escondido do Sargento Tainha.

Mas o personagem, juntamente com a galeria de tipos que interagem com ele nas histórias, não está lá para dormir. É em plena ação que ele aparece nos painéis, displays, originais e edições em diversos idiomas da exposição Recruta Zero 60 Anos, organizada pela equipe de programação da unidade, com co-curadoria do jornalista, escritor e especialista em quadrinhos Álvaro de Moya.

“Resolvemos montar a exposição devido à importância da linguagem dos quadrinhos na cultura contemporânea”, explica João Paulo Guadanucci, técnico do Vila Mariana. “Além disso, o Sesc entende que a compreensão dos clássicos em qualquer área, como os quadrinhos, ajuda a entender melhor a produção contemporânea.”

Os originais das tiras já publicadas foram trazidos ao Brasil especialmente para a mostra, que apresenta ainda desenhos animados do personagem, objetos raros de merchandising, publicações inéditas no Brasil e uma dedicatória do autor gravada em vídeo. O acervo da exposição é da Creative Licensing Brasil, que licencia o título aqui.


Sonho americano

Guerra fria, crescimento econômico, divas de Hollywood: os Estados Unidos nos anos de 1950

Beetle Bailey – o nosso Recruta Zero – “nasceu” num dos momentos mais importantes da história dos Estados Unidos. Período pós-Segunda Guerra Mundial, conflito que durou de 1939 a 1945, a década de 1950 consolidou muitos dos símbolos norte-americanos, exportados para praticamente toda a metade ocidental do planeta.

No cinema, por exemplo, Grace Kelly, Rita Hayworth, Marilyn Monroe e Audrey Hepburn colocavam plateias e mais plateias aos seus pés. Nas artes plásticas, o pintor expressionista Jackson Pollock tornava-se expoente da chamada action paiting, ou pintura em ação – em tradução livre –, e que consistia em criar quadros por meio de gestos pictóricos.

No esporte, o mítico Joe DiMaggio ajudava a elevar o beisebol ao status de modalidade nacional, e a american pie – torta americana, nome dado à sobremesa feita à base de maçãs – perfumava as cozinhas dos subúrbios feitos de casas praticamente idênticas.

No campo dos direitos civis, a década de 1950 viu o fim das leis de segregação racial norte-americanas – sobretudo como resultado do poderoso discurso do pastor negro e protestante Martin Luther King. Enquanto a economia norte-americana vivia um momento de euforia, o mundo sofria com a tensão criada pela Guerra Fria, período de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, marcado pela possibilidade de uma guerra nuclear.